sábado, 26 de fevereiro de 2011

Documento e Monumento

Estátua de Tenreiro Aranha, Praça da Saudade, Manaus.
Jacques LeGoff, em sua série de artigos sobre a história e a História Nova, discorre sobre a relação documento/monumento.
O que temos por monumento é todo aquele objeto construído por determinada autoridade para que seja lembrado para a psoterioridade. O monumento geralmente exalta alguém ou algum ato.
Contra á noção de monumento, criou-se a noção de documento como aquele objeto que contém a verdade, que não tem a preocupação em exaltar algo. Não preciso dizer que essa noção de documento nos foi legada pelos historiadores positivistas que consideravam as fontes principalmente escritas e oficiais como objeto privilegiado da pesquisa histórica. Nestes documentos estava o fato tal qual aconteceu.
LeGoff lembra que com os Annales essa visão positivista começou a cair e alargamos nosso rol de fontes para além da fonte escrita e oficial. Isso só foi possível com uma análise mais crítica e menos dogmática da pesquisa histórica.
O documento não diz toda a verdade, até porque quem o escreveu não estava totalmente neutro. Muitas vezes o documento é produzido, como o monumento, com o objetivo de exaltar alguém, principalmente as fontes oficiais em que tanto os positivistas se deteram.
Assim sendo, o monumento também pode ser uma fonte. Só que temos a fazer é medir bem o seu grau de parcialidade, como devemos fazer com qualquer fonte. Toda fonte tem sua subjetividade, afinal ela é produzida, em sua maioria, por seres humanos e ser mais subjetivo que nós impossível.
Concluindo, documento e monumento não estão assim tão distantes. São fontes históricas e devem ser tratadas como tal: com uma análise crítica e uma boa interpretação.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Um passeio pelo Vale antigo com Sérgio Buarque

Foi relançado em fins de 2010, mas só tomei conhecimento agora o livro Vale do Paraíba - Velhas Fazendas, produzido pelo historiador Sérgio Buarque de Hollanda em 1975 para o prefácio de um álbum de desenhos feitos com  bico de pena pelo pesquisador vale-paraibano Tom Maia.

Fazenda Pau D'Alho, em São José do Barreiro, conhecida por ter hospedado o Imperador D. Pedro II, no traço de Tom Maia.
É o encontro de dois monstros da historiografia do Vale: embora Sérgio Buarque seja mais conhecido por sua produção ensaística (Raízes do Brasil, Visões do Paraíso), em suas últimas obras (Caminhos e Fronteiras, Monções) se preocupou com seu estado-natal, São Paulo, e não somente com São Paulo capital. Nestes livros estão informações e considerações que ainda são essenciais para qualquer pesquisador do Vale, principalmente no contexto de seu povoamento. Tom Maia, junto com sua esposa Thereza Camargo Maia, já vem produzindo desde o final dos anos 60, por sua vez, importantes estudos sobre o folclore local e sobre a cultura dos tropeiros, por exemplo.
Nesse livro, Sérgio Buarque explicará o contexto da construção das fazendas retratadas por Tom Maia, as fazendas do barões do café, mas também dos antigos senhores de engenho. Assim, antes de chegarmos ao período da economia cafeeira temos um rico painel da colonização do Vale e dos efeitos do bandeirismo e da mineração na região. Quanto á abordagem sobre o período em questão, Sérgio não deixa a deseja, fazendo de sua explanação quase um trabalho literário, tamanha a erudição e o conhecimento sobre o assunto.
Para todos interessados no Vale do Paraíba ou mesmo em Taubaté, aqui fica a dica.

Da série sínteses numa mesa de bar: Marxismo

Karl Marx, segundo Ricardo Musse, fez uma crítica á filosofia (romântica), á economia (liberal) e á história (positivista) que vinha se produzindo na sua época, mas principalmente á filosofia.

Marx era um seguidor de Hegel, o grande papa do idealismo. Para ele, as idéias vinham antes das ações e a Humanidade era guiada por uma força superior, chamada Espírito do Mundo, para uma humanidade mais racional e "mais humana". Marx critica seu mestres depois de um tempo: as condições materiais de existência geram as idéias e as ações e o homem é guiado através da história pelas suas próprias ações. Daí o nome de sua filosofia ser no início materialismo.

Assim sendo, a ação humana (principalmente o trabalho) está no centro de tudo. O grande tema de Marx é o capitalismo, ele só se envolve na História na tentativa de entender como o capitalismo surgiu. Aí ele vai lá na época do comunitivismo primitivo, onde não existia propriedade nem Estado, passa pela escravidão, feudalismo, mercantilismo e, enfim, o capitalismo. Marx usa para classificar as sociedades desses períodos dois conceitos: a idéia de que uma sociedade tem níveis e o modo de produção (o trabalho onde a sociedade se baseia, pra simplificar) é o principal deles e a dialética, que é mais um método filosófico que um conceito. A dialética busca achar as contradições nas sociedades, confrontá-las e tirar disso uma conclusão, pra deixar bem resumido (outro dia falo aqui da dialética, ok?)

Chegando no capitalismo, o que Marx vê? Ele vê a exploração do homem pelo homem, mas uma exploração muito mais poderosa e escancarada que antes. Agora você tem um cara que controla os meios de produção e um cara que tem a força de trabalho, ambos fazem um contrato. Um trabalha e em troca ganha uma remuneração, o outro ganha um produto manufaturado para vender no mercado. Pronto: taí o patrão, o trabalhador, a mais-valia e o salário. Com o capitalismo você tem a luta de classes, onde cada um desses personagens luta pelos seus interesses.

O capitalismo reproduz desigualdade, aliena e tudo mais. Como escapar dele? Marx acreditava que a única pessoa que poderia mudar o status quo era a classe operária, uma vez que ela numerosa e se desenvolvesse uma consciência de classe poderia facilmente derrubar o capitalista, assim como os burgueses fizeram com o absolutismo. Seu trabalho seria, portanto, ajudar a classe operária tomar consciência através da política e aí temos o nascimento do comunismo. O comunismo tenciona mudar o regime para o socialismo, onde teremos uma sociedade menos desigual e "mais humana". Marx, deixa escapar em alguns momentos, que o capitalismo poderia cair por suas próprias mãos, assim como aconteceu com os outros regimes (escravidão, feudalismo, mercantilismo). O socialismo seria, é o que muitos interpretam, inevitável - repetindo assim a idéia de história como uma evolução linear que Hegel tinha.

Como vocês podem ver, Marx foi importante em muitos ramos do que hoje chamamos ciências humanas: filosofia, política, economia, história, sociologia, etc. Mas durante os séculos seguintes á sua morte, muitos pensadores fizeram suas próprias interpretaçãos de suas idéias e, assim, chegamos ao dia de hoje passando por vários "marxismos", mas isso é assunto pra outro post.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Olhares

Amazônia, Paraíso dos Naturalistas é um artigo do Prof. Hideraldo Costa Lima que se debruça sobre o rico acervo dos viajantes, nacionais e internacionais que passaram pela Amazônia nos últimos séculos.
Ilustração de Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagens Filosóficas ao Rio Negro.

Hideraldo privilegia os viajantes estrangeiros porque seu objetivo, afinal, é analisar o olhar dos europeus sobre a região amazônica.
Entre o século XVI e XVIII, somos visitados pelos cronistas, a maioria de ordem religiosa como os jesuítas João Daniel, Samuel Fritz, etc. Nesse período, embora seja conhecido como idade moderna, o homem ainda possue uma mentalidade religiosa. Assim, quando a Amazônia é descoberta ela é interpretada ora como paraíso ora como inferno.
Esse olhar religioso chega no homem amazônico, o indígena, e enxerga nele uma espécie de subhumanidade. O índio é marginalizado e perseguido por, segundo esta mentalidade, não possuir alma, ser ímpio. Aí temos uma justificativa para a escravização e genocídio da população local que seria amplamente utilizada pelos colonizadores.
O século XVIII pode ser entendido como a entrada da ciência na Amazônia através das expedições científicas. A pioneira foi a do cientista francês La Condamine, parte de um projeto que pretendia determinar onde passava exatamente a linha do Equador. Mesmo assim, La Condamine, apesar de seus objetivos e seus métodos, não estava isento ainda de um imaginário místico: em suas anotações percebemos sua preocupação em encontrar a tribo das amazonas, as mulheres guerreiras descritas pelo Frei Carvajal que tornaram a região famosa.
Anos depois chega á Amazônia o pesquisador baiano Alexandre Rodrigues Ferreira. Esse sim se despe de todo o imaginário anterior sobre a região. O resultado de sua pesquisa, Viagens Filosóficas ao Rio Negro, é muito exato, descritivo. O motivo é simples: intimamente ligado ao governo português, Alexandre foi mandado para a Amazônia justamente para investigar como a administração local estavam utilizando os recursos naturais, denunciando improbidades e propondo soluções. É exatamente o que Alexandre faz: primeiro, descreve cada ponto e depois sugere o que se pode aproveitar dele. Por exemplo, os índios: eivado ainda de um preconceito para esse povo que parece ser selvagem, Alexandre, contudo, vêe neles uma mão-de-obra em potencial, basta discipliná-los.

Ilustração de Spix em Viagem ao Brasil, Spix e Martius.
Quando chega o século XIX, a Amazônia está devidamente consolidada como local por excelência dos naturalistas, seja pelo que foi dito anteriormente ou pelo desenvolvimento das ciências na Europa. Inúmeras expedições são feitas: Alfred Wallace, Karl Von Martius, Henry Bates, casal Agassiz, dentre outros. Entre suas anotações científicas, estes homens deixam sempre pequenas observações sobre a sociedade local e são essas observações que Hideraldo analisará.
Martius, por exemplo, considera o índio, assim como Bates, um povo destinado ao fracasso, seja pela sua apatia, seja pela miscigenação. No período, a população local é composta basicamente de índios, mas também existiam negros, europeus (principalmente portugueses) e os mestiços. Cametá, uma cert ailha no Pará, era onde mais essa miscigenação tornava-se aparente. Exatamente por isso Louis Agassiz ficou enojado com a ilha. A miscigenação acabava com a pureza da raça branca infectando ela com as características das outras raças, características não só físicas, mas, principalmente, morais e psicológicas. Explicava-se assim a pobreza e a promiscuidade da região com a miscigenação.

Alfred R. Wallace.
Dentre os naturalistas, apenas um dispensa aos nativos uma visão positiva: Alfred Russel Wallace, conhecido atualmente como precurssor da teoria da evolução das espécies. Wallace demonstrava imensa simpatia para com o indígena pelos conhecimentos que possuiam sobre a natureza e pela sua generosidade. Para ele, o índio fora condenado pela colonização, com a ajuda da Igreja Católica, á perder sua cultura e em breve a sua própria existência.
Em suma, o homem amazônico era, por excelência, mestiço. A miscigenação era o que mais chamava a atenção desses homens que cresceram acreditando que a civilização européia era a única mais desenvolvida do mundo graças ás qualidades intrínsecas á sua própria raça. Essa era a mentalidade de então. O que podemos ver é que a mentalidade religiosa, movida pela teologia, sai de cena e entra uma mentalidade pautada pela razão, mas que o preconceito para com o homem amazônico continua o mesmo. Á essa persistência no olhar dos viajantes Hideraldo chama de "peversão da memória".
O discurso etnocêntrico agora é justificado por paradigmas científicos, como o evolucionismo, e se apropria até da mais moderna tecnologia: Agassiz, para provar ao mundo os males da miscigenação, tirou fotografias dos tipos locais para demonstrar quão feios e assimétricos os seres humanos podiam ficar uma vez que fosse mestiço.
A mensagem do artigo é clara: cuidado com a "peversão da memória"! Afinal, ela atravessou cinco séculos e, com certeza, ainda sobrevive hoje.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A cidade

Apresento á vocês uma poesia do mineiro Deivid Júnior de seu blog Paralelepipedopoema:

a cidade; minha idade

como se nunca efêmera, a cidade estará, enfim, projetada em meu rosto. o traçado de suas vielas, seus relevos, anjos, torres, esteios tortos. pensamentos. janelas, olhos das casas. tudo desenhando minha pele, definitivamente. outros rostos: de infantis a velhos, pombos e cachorros. estarão gravados todos os trajetos, cada passo nestas ruas de pedra nas rugas mesmas da minha cara. e tal como ela, pó seremos uma dia, na mesma terra. da que nada passa, meus duelos. também meus cabelos e o éden e a via láctea.

Certos e Errados

Na segunda-feira, dia 21, o prefeito de Manaus, Amazonino Mendes, foi visitar o bairro de Santa Marta onde ocorreu no final de semana um deslizamento que resultou na morte de duas crianças. Ouvindo os moradores locais, Amazonino começou a pedir para que eles se mudasse, procurassem um lugar seguro para morar. Uma moradora retrucou que não tinha condições e ele respondeu com a frase que tornou-se célebre: "Minha filha, então morra!" Logo depois pergunta de onde ela vem e ao ouvir a resposta ("do Pará"), desabafa com um "Pronto. Tá explicado."

O caso repercutiu por todo o Brasil e, principalmente, na faculdade entre os colegas. A entrevista virou símbolo do desrespeito do prefeito com os moradores de área de risco e do seu preconceito para com os paraenses. Agora, vamos analisar o caso com um pouco mais de precisão.

A situação: as mortes provocadas pelas chuvas são mais um episódio da velha história da má ocupação das cidades e da falta de fiscalização urbana. Amazonino tenta explicar como evitar uma nova tragédia para os moradores, mas esbarra na resposta da moradora de que eles não tem condição de se mudar. Acho que o sociólogo Luiz Nascimento comentou que os moradores que ocupam área de risco o fazem não por opção, mas por falta de opção. Concordo em partes, também existem aqueles que se aproveitam da situação e fazem uma espécie de especulação imobiliária informal, ocupando apenas para vender terrenos. De qualquer forma, a má ocupação é errada.

Quais as causas da má ocupação? Inchaço urbano. A cidade cresce cada dia, pelos mais variados motivos: falta de planejamento familiar e a migração (seja rural ou mesmo de outro estado, como acontece no Amazonas) são os principais. Assim temos uma ocupação desordenada. Solucionar esse problema passa sim, como tentou fazer o prefeito antes de perder a cabeça, por conscientizar a população, mas não pode parar só nisso; tem que vir coordenada com a fiscalização e maior infra-estrutura no interior e no Estado vizinho, se for possível fazer um plano conjunto.

Os personagens: o outro lado da moeda é que o governo tem responsabilidade no problema por não resolvê-lo com fiscalização e terrenos próprios para a habitação disponíveis aos cidadãos. Amazonino, já conhecido da população local pela sua passagem no senado, governo do Estado e prefeitura nos últimos anos, também é conhecido pela população nacional como um dos principais nomes do mapa da corrupção no Amazonas em reportagens feitas anos atrás. Aliás, durante o período em que foi governador do Estado incentivara a imigração para o Amazonas e o desmatamento da floresta como forma de solucionar o inchaço urbano.Pode até ser que ele tenha sentido os efeitos de sua campanha no passado cairem sobre suas costas agora e esteja realmente tentando mudar o problema.

Quanto ás palavras finais do prefeito, está claro que se trata de preconceito. O velho preconceito do amazonense para com seu vizinho do Pará. Embora sua assessoria tente se retratar dizendo que Amazonino se referia aos imigrantes de uma maneira geral, sabemos que o buraco é mais embaixo. Longe de tentar aqui fazer um tratado sociólogico do preconceito amazonense, isso é fruto de uma longa história de submissão ao Pará, politíca e economicamente, durante seus primeiros anos de existência. Mesmo assim, esse preconceito, pelo que conheço da cidade, está sumindo ou se disfarçando muito bem, aflorando somente em situações intensas, como essa. Ainda não sei qual dos casos é, mas é por aí mesmo.

Conclusão: quem está certo aí e quem está errado? Curiosamente, ambos estão certos e errados: a moradora está errada por ocupar uma área de risco, certa por (talvez) não ter opção de moradia; Amazonino está certo tentando conscientizá-la e errado por perder as estribeiras e cair em contradição com suas gestões anteriores e a atual. Ninguém tem culpa da situação estar assim, é algo mais profundo e histórico, algo que vem antes de nascermos, mas está aí, na nossa frente. Estaremos errados em não tentar solucionar a situação, fazermos o possível, entrarmos na luta com força e bom senso.

Conto do vigário

Deixo vocês hoje com uma pequena anedota política contada pelo sociólogo Nelson Pesciotta:

O Vale sempre foi patologicamente político. Nas nossas cidades, tudo era motivo para disputas políticas, da eleição da diretoria do clube á da mesa da Santa Casa, da esoclha do paraninfo na escola até a escolha da comissão de festa da Igreja.
o envolvimento dos vigários, então, é um tema fascinante à espera de um bom pesquisador. Seus poderes não eram apenas espirituais, a política os atraía bastante a alguns se envolveram discretamente, enquanto outros tiveram participação bem ativa, chegando a conflitarem até mesmo com alguns fiéis por causa das eleições.
Lembro-me de uma cena que presenciei na década de 30. Eu, menino, acompanhei meu pai numa "visita eleitoral" a um bairro da cidade que agora está próspero e até quer emancipar-se, mas naquele tempo era pequenininho. O horário do "comício" era depois da missa. Chegamos lá quando a missa estava em andamento e entramos na igreja. A caravana era do Partido Constitucionalista, que se opunha ao P.R.P. - Partido Republicano Paulista. O P.C. era o partido do engenheiro Armando Salles de Oliveira e dos Mesquita. Gente fina. E o nosso vigário estava com o P.C.
Chegamos e entramos na igreja. O vigário pregava o evangelho. Não lembro bem o que ele falava quando entramos, mas me recordo, como se isto tivesse acontecido hoje, de uma sua expressão:
-"Esse amaldiçoado P.R.P., com letras deste tamanho..." e fez um gesto com a mão direita esticada á frente, dando uma razoável altura para representar o grande tamanho de tais letras.
Do envolvimento político de tal religioso (cuja vida pessoal ao que consta, era absolutamente ascética, piedosa, caridosa e tudo o mais) constam inúmeras passagens curiosas. Dizem que num bairro distante, naquela famosa eleição de 47, quando o eleitor podia levar consigo as cédulas para votação, teria ele levado as cédulas do seu candidato e dito aos presentes a um ofício religioso:
-"Estas são cédulas sagradas".
Não preciso dizer que seu candidato ganhou e com boa margem...
O bom padre tinha obsessão com o comunismo, isto é, contra o comunismo. Quem o desagradasse na política era comunista e como tal denunciado por ele, que era mestre em mandar telegramas às autoridades com tais "informações". Algumas pessoas tiveram sérias dificuldades por esse motivo.
Certa feita estava ele na casa de um veterinário participando de uma recepção - um almoço, churrasco ou coisa parecida - quando se encontrou com um velho companheiro de bancos escolares, médico na cidade, político militante, pessoa de muita influência, e pergunta a este:
-"Fulano, se o comunismo vencer no Brasil quem vai mandar nesta cidade?"
O interlocutor, mal contendo um sorriso sarcástico e com a voz anasalada, responde incontinente:
-ora, as pessoas que você denunciou assumem o poder imediatamente". Eu, o dono desta casa, mais Fulano... e desfilou nomes.
Resposta que encerrou o diálogo...

Referência:
PESCIOTTA, Nelson. Episódios Pitorescos da Política Vale-Paraibana. In: CHALITA, Gabriel (coord.). Vale do Paraíba: Política e Sociedade. Aparecida: Editora Santuário, 1993. pgs. 58-59.
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Para os interessados na disputa entre o PC e o PRP, temos esse artigo de Carolina Soares Souza que analisa como ambos tentaram se apropriar da memória sobre a Revolta Constitucionalista de 1932. Recomendo.

Delírio líbio

Não, esse cara na foto não é o Falcão. Esse homem se chama Muammar Gaddafi e governa Líbia a 42 anos, quando chegou ao poder por meio de um golpe militar. Gaddafi, nos primeiros anos de seu governo tornou-se célebre por peitar o EUA fornecendo munição e abrigo para terroristas, ultimamente, no entanto, perdeu um pouco do radicalismo e vez ou outra aparecia nos noticiários por alguma atitude excêntrica, como aquela vez em que fez um discurso na ONU de 2 horas e meia, senão me engano, levando os tradutores á loucura.
Na metade do mês corrente, ele voltou aos palcos e, ao que parece, ao seu bom e velho radicalismo. A queda dos presidentes tunisiano e egipcío no começo do ano espraiou a revolta no povo árabe pelos mais diversos países, do Iemên á Argélia. Era inevitável chegar á Líbia, onde Gaddafi governa há anos e o índice de corrupção é altíssimo. No entanto, esse país está chamando a atenção do mundo pela ferocidade da repressão do governo: a polícia tem atacado os manifestantes, as cidades em que mais há protestos (Trípoli, Benghazou e mais duas outras menores) tem sido bombardeadas e vigiadas por milícias.
Suspeitas de que Gaddafi teria fugido para a Venezuela foram quebradas quando ele apareceu hoje em sua residência na capital (que desde que fora bombardeada em 1980 pelo governo americano não fora reformada á pedido dele mesmo, para provar o ataque) em uma mensagem ao povo líbio, no qual ele pede que ajudem a "matar os terroristas" que estão por trás das manifestações. Ele ainda disse que não entregará o poder, será um "mártir". Enquanto a região norte do país está cada vez mais nas mãos dos rebeldes, com a ajuda de oficiais do exército que desertaram e até um ataque de caças foi abortado.
Alguns dizem que se Gaddafi sair a situação ficará cada vez mais caótica, uma vez que não há uma oposição coordenada e forte no país, levando a uma nova guerra civil. Pode até ser, mas impedir uma guerra civil com outra não acho uma boa estratégia. O apoio de Gaddafi está caindo, mas ele tenta se agarrar desesperadamente na truculência que o levou ao poder á 40 anos atrás. Amr Moussa, secretário geral da Liga Árabe, em uma entrevista á Folha de S.Paulo ontem afirmou que "a região vive um efeito dominó e jamais será a mesma". "Está nascendo um novo mundo árabe", concluiu. Gaddafi representa um Oriente Médio que vimos se formar durante o século XX como uma região de extremismos e violência, suas ações agora demonstram que ele não mudou muito. Não sabemos o que acontecerá no futuro, mas uma coisa parece cada vez mais certa: o Oriente Médio deixará de ser um Parque dos Dinossauros.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Igarapé Antigo

Vou compartilhar (mania de facebbok) aqui com vocês um poema da grande Rosa Clement que também não deixa de ser um relato sobre as transformações urbanas em Manaus:


Igarapé Antigo
Rosa Clement

Esse pequeno rio que via
passar a minha infância
em suas águas de cristal,
mudou de rumo.
Passou a sustentar palafitas,
encher garrafas e latas atiradas
que lhes davam relevos sombrios.
Por fim, passado á limpo,
ressurgiu uma versão domada,
sem poderes cristalinos,
sem o movimento apurado
das ondas marginais,
com águas que passam o tempo
exercitando correntes
agora livres de detritos.
É rio que já não é tão rio
e eu também, quando passo por ele,
já não sorrio.

Lobato, Lobatos


Outro dia falávamos de Monteiro Lobato. Acho Lobato um dos escritores nacionais mais interessantes. Não é só pelo fato de escrever bem, mas pela sua ousadia. Lobato era um rebelde, um rebelde em partes.

Nascido em um contexto patriarcal e escravocrata, como dissemos, ele teve uma infância dividida entre leituras e brincadeiras pela chacará de seu avô, João Francisco Monteiro, o poderoso Visconde de Tremembé. Quando a República é proclamada, Lobato está ingressando no Colégio Kennedy, de propriedade de pastores norte-americanos na cidade, contudo logo é transferido para o Colégio Paulista (o Colégio Kennedy, por seu ideal protestante e liberal, é perseguido, principalmente pelo nosso velho e conhecido vigário Nascimento Castro, e se muda para São Paulo, onde veio a se tornar o Mackenzie).

Graças á um pistolão feito por seu avô (ele mesmo admite), consegue uma vaga na tradicional Faculdade de Direito do Largo de Sâo Francisco, na capital paulista. São Paulo ainda não era uma grande cidade, mas o dinheiro advindo do café, das ferrovias e o universo estudantil fazia dela, sem dúvida, uma cidade muito maior e cosmopolita que a velha Taubaté. Na faculdade, ele se envolve com a imprensa, com idéias anticlericais, as leituras de Nietszche que fez na juventude tornam-se mais encorpadas.

No entanto, ele precisava de um trabalho depois de formado e seu avô novamente consegue abrir portas com seu prestígio: Lobato vai ser promotor em Areias. A curta passagem pela promotoria de Areias foi um dos momentos mais duros da vida do escritor taubateano que havia se acostumado com aquele ambiente cosmopolita da capital paulista. Experiência pior viveria quando, logo depois, seu avô lhe dera a posse da fazenda de seu falecido pai em Buquira, na Serra da Mantiqueira. Lobato estava ansioso por tentar utilizar nessa terra todas as modernas técnicas agrícolas que ouvira falar nos jornais, essa fazenda seria o seu laboratório. No entanto, ele esbarrou na má vontade dos seu trabalhadores, capatazes e camaradas. Diante de tal fracasso, Lobato escreve um artigo para o Estado de São Paulo chamado A Velha Praga no qual ele identifica no caipira o motivo do Brasil ainda ser um país pobre e miserável. O caipiria seria um parasita da terra, dela apenas quer se alimentar, não está disposto á mudanças, ele trava o progresso. O artigo tornaria Lobato famoso, temos que lembrar que nessa época, começo do século XX, ainda era dominante o ideal romântico sobre o índio e nosso país, e Lobato desconstrói todo esse mito com base em sua experiência.

Essa visão romântica é coisa de quem não conhece realmente a situação do campo, dizia. É uma invenção de uma elite que vive olhando para a Europa, que se prende á futilidades, que quer aparentar ser culta e civilizada com seus bacharéis. Nesse momento podemos perceber como Lobato é pontual e como não dispensa ataques á ninguém, muito embora ele esteja também contaminado de um pouco desse "modismo" de nossas elites, principalmente no preconceito para o trabalhador nacional e a valorização do homem caucaseano, como falamos no post anterior. Além disso, localmente ele ainda era afiliado ao partido conservador de seu avô, ajudando-o inclusive no caso do crime do Visconde como advogado.

Ora, sua polêmica foi utilizada pela mesma elite que criticava como argumento para o projeto de embranquecimento da população local. O ponto máximo de sua consagração é quando o então candidato á presidência, o jurista baiano Ruy Barbosa adota a imagem do Jeca Tatu em sua propaganda. Anos depois, com base em estudos realizados por médicos sanitaristas em meio ao sertão, Lobato voltaria atrás, ele identificaria qual a verdadeira praga: as péssimas condições de vida. O caipira era assolado por doenças como o amarelão que lhe impediam de ser um trabalhador nato. Esse seria o problema vital, nome, aliás, de um de seus livros. Envolve-se então na campanha do sanitarismo, mudando então o Jeca tatu de preguiçoso incurável á homem rico e forte se tratado.

Lobato criticava a elite nacional por se apegar demais á Europa e uma de suas tentativas de emancipar o Brasil, por assim dizer, desse laço seria a construção de uma editora nacional (antes todos os livros brasileiros tinham que ser editados e publicados em Portugal), esforço para o qual contou com a ajuda de muitos amigos escritores e jornalista do Estado de S.Paulo, onde desde seu pioneiro artigo passou a trabalhar. Se não morria de amores pela Europa, admirava pelo menos o Estados Unidos, por ter ultrapassado a condição de colônia e se tornado uma república democrática e progressista (embora ele também tenha duras críticas á democracia, que podem ser conferidas n'O Presidente Negro). Admirava especialmente Henry Ford, o criador do carro Ford Modelo T que revolucionou o mercado por produzir carros em escala industrial, mas não por esse fato e sim por sua iniciativa de fomentar o trabalho (afinal, Ford queria que seus próprios trabalhadores comprasse seu carro, que ele fosse acessível á todos).Tornou-se adido da embaixada brasileira nos EUA durante o governo Washington Luís e essa experiência foi uma das que mais lhe marcaram.

Em busca de emancipar o Brasil economicamente, enquanto o fazia culturalmente com sua editora Companhia Nacional, Lobato se envolveu na campanha pelo petróleo. Estávamos nos primeiros anos da Era Vargas e Lobato já era visto como um elemento ligado ainda á República Velha. Além de mal visto pelo novo governo havia também a proposta de desenvolver a indústria de base no país e o medo do comunismo, por isso quando Lobato começa a atacar o governo por não incentivar á pesquisa do solo e por se aliar gradativamente aos governos fascistas europeus começa a ser perseguido. A partir da instituição do Estado Novo em 1937 ele passa a ser perseguido com mais força, chegando até a ser preso por um certo período. Quando no fim da ditadura, em 1945, é solto e a campanha do Petróleo é Nosso ganha força, mas agora pela voz do general Horta Lima.

Profundamente desiludido com a Segunda Guerra Mundial e o governo que se delineava com o Marechal Dutra, para ele simples instrumento dos militares e empresas estrangeiras, Lobato passa a se aproximar do comunismo, defendendo agora como solução para o desenvolvimento do Brasil a reforma agrária. Agora nasce um novo personagem Zé Brasil, que tem como seu principal inimigo um poderoso coronel. Lobato ensaia até alguns votos de entusiasmo á Luiz Carlos Prestes, mas então entra em profunda depressão quando seu filho falece, retirando-se da vida pública. Vem a falecer em São Paulo em 1948.

Como podemos ver, Lobato é um feixe de contradições: em determinado ângulo apóia a democracia e em outro a despreza, conserva um interesse no progresso acima de tudo, mas escorrega em muitos preconceitos ainda da sociedade escravocrata. No entanto, sua pena era afiada e ninguém escapava dela, nem seus amigos e nem seus inimigos. Se visse algo que não concordasse logo dizia e se visse uma deficiência logo colocava a mão na massa para saná-la. Lobato é um tema que não se esgota, pois ele próprio era um homem multifacetado, haviam muitos Lobatos e até hoje ainda há muito o que falar sobre eles.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Pensamentos do Lalau


Para começarmos bem a semana, deixo aqui alguns pensamentos de Stanislaw Ponte Preta, o pseudônimo de nosso querido Sérgio Porto (1923-1967):

No Brasil as coisas acontecem, mas depois, com um simples desmentido, deixaram de acontecer.

Nos trens suburbanos não livram a cara nem de padre, que dirá mulher de minissaia.

O mais perigoso é que já estão confundindo justa causa com calça justa.

O Reino Unido não é tão unido assim como eles dizem, não.

Consciência é como vesícula, a gente só se preocupa com ela quando dói.

Difícil dizer o que incomoda mais, se a inteligência ostensiva ou a burrice extravasante.

Quem não tem quiabo não oferece caruru.

Mania de grandeza é a desses suplementos literários que têm um aviso dizendo que é proibido vender separadamente.

Pode-se dizer a maior besteira, mas se for dita em latim muitos concordarão.

Homem que desmunheca e mulher que pisa duro não enganam nem no escuro.

Esperanto é a língua universal que não se fala em lugar nenhum.

Nem todo rico tem carro, nem todo ronco é pigarro, nem toda tosse é catarro, nem toda mulher eu agarro.

Nem todo gordo é bom, muitos se fingem de bonzinhos porque sabem que correm menos.

O importante é não deixar nunca que o menino morra completamente dentro da gente. Caso contrário, ficamos velhos mais depressa. Dizem que é por isso que os chineses, de incontestável sabedoria, conservam o hábito de soltar papagaio (ou pipa, se preferirem) mesmo depois de adultos. Não sei se é verdade, nunca fui chinês.

Profissão: Historiador

Outro dia, discutindo na faculdade com meus colegas sobre o caráter de nosso curso tocamos um ponto recentemente levantado, mas no momento em questão emperrado: a profissionalização do historiador.
Fazemos um curso de licenciatura, o que significa que nossa atuação, legalmente, será direcionada para o ensino, a educação, enquanto o bacharelado engloba também a pesquisa. Em certo ponto da discussão, alguém levantou a questão: mas existe mercado de trabalho para alguém dedicado á pesquisa em nossa região e em nosso país?
Quando se fala em pesquisa, ou falamos de universidades ou das fundações de amparo á pesquisa. Nos últimos anos, a pesquisa tem crescido bastante, estamos consolidando um ambiente acadêmico no país. Muito embora, esse ambiente ainda esteja centralizado no Sudeste do país. Acompanhando essa tendência, a ANPUH (Associação Nacional de Professores Universitários de História) desenvolveu um projeto de lei para a profissionalização do historiador no começo do ano de 2000. Só em 2009, o projeto ganhou o apoio dos políticos, quando o senador Paulo Paim tentou levar o projeto em diante. No entanto, a aprovação não saiu nem naquele ano nem em 2010, por estarmos próximos das eleições. O burburinho sobre o projeto desapareceu por um tempo, mas parece que tem se reacendido recentemente.
A questão é que a profissionalização apóia a consolidação da pesquisa histórica, mas não deve vir sozinha, como sabemos, mas acompanhada de outras medidas, principalmente na descentralização do incentivo á pesquisa. Enquanto isso, esperemos.

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Para os interessados em ver o projeto, aqui está ele.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Geny Marcondes

Com muito atraso, confesso, noticio aqui a perda de uma mulher pioneira em muitos aspectos: Geny Marcondes. Nascida em 1916, em Taubaté, Geny era música, começou sua carreira tocando na orquestra Fego Camargo, quando esta musicava os filmes mudos. Logo depois compôs operetas sobre o Sítio do Pica-Pau Amarelo, arrancando elogios de seu criador, Monteiro Lobato.
Sua carreira dá um grande salto quando muda para a então capital federal e cultural do país: Rio de Janeiro. Começa a trabalhar na Rádio MEC, aquela fundada por Roquette Pinto, dirigindo muitos quadros. Tempos depois passa para a trabalhar também na televisão, como produtora. Aliás, ela foi uma das primeiras mulheres a ministrar um curso sobre multimídia no país, quando a palavra ainda era nova. Morava em Petrópolis até que em 1988, as chuvas provocaram um desastre na região, parecido com esse último, e então muda-se para sua cidade natal.
Foto: Álbum Taubateano, 1945.
Geny veio a falecer no dia 30 de janeiro, perto de completar 95 anos.  Á família e á Taubaté, meus sentimentos. O Almanaque Urupês fez uma homenagem muito especial.

Apontamentos para a história do Cinema em Manaus

-Segundo Selda Vale Costa, entre 1920 e 1967 existiam em Manaus os seguintes cinemas:

Cine Alcazar, mais tarde Cine Guarany, fundado em 1907 e fechado em 1984. Localizado na Praça Heliodoro Balbi, parte central da cidade.

Cinema Avenida, fundado em 1909, sendo fechado, reaberto alguns anos depois até ser fechado definitivamente em 1973. Localizado na avenida Eduardo Ribeiro.

Cinema Popular, fundado em 1920, funcionou por um tempo até ser fechado, reabrindo seis anos depois. Então só fecharia totalmente em 1970. Localizado na avenida Joaquim Nabuco, numa região próxima do centro.

Cinema Rio Branco, cuja data de fundação ainda é um tanto misteriosa, no entanto fechou em 1920. Situava-se na região central da cidade, na rua Barroso.

Cine Ideal que funcionou até a década de 70 no bairro de São Raimundo.

Cine Ypiranga, fundado pelo empresário Adriano Bernardino em tempo recorde na praça General Carneiro em 1959 e fechado no dia de Finados de 1983, ficava no bairro de Cachoeirinha, na rua Carvalho Leal.

Cine Glória, fundado na década de 20 e fechado nos anos 50, justamente no bairro da Glóia.

Cinema Polytheama, fundado em 1912 e extinto em 1973, situado na avenida Eduardo Ribeiro.

Cine Odeon, fundado em 1913 e extinto no mesmo ano do Polytheama, localizado na mesma avenida.

Cine Vitória, aberto nos anos 50 e fechado também em 1973. Localizava-se na avenida Leopoldo Peres, no bairro de Educandos.

Ideal Cine, fundado em 1928 e fechado definitivamente em 1930. Situava-se no bairro de Aparecida, na rua Comendador Alexandre Morim.

Finalmente, o emblemático Cine Eden, que no decorrer de sua existência (1945-1989), mudou de nome diversas vezes (Cine veneza, Novo Veneza, Cine-Teatro Guarany).

Nas palavras do geógrafo José Aldemir de Oliveira, "o cinema constituiu-se, até o aparecimento da televisão no final dos anos sessenta, num elemento lúdico, empreendimento comercial e componente criador do imaginário coletivo pela possibilidade de criar condições de saber sobre o espaço. Era o lugar privilegiado do encontro não apenas para assistir ao filme, mas para ouvir as orquestras dos principais cinemas do centro ou para trocar gibi nos cinemas dos bairros". (p. 158, Oliveira, 2003).


Referências:
-COSTA, Selda Vale da. Eldorado das Ilusões. Cinema & Sociedade: Manaus 1897-1935. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1996. pgs. 258-266.
-OLIVEIRA, José Aldemir de. Manaus de 1920-1967: A Cidade Doce e Dura em Excesso. Manaus: Editora Valer/ Governo do Estado do Amazonas/ Editora da Universidade do Amazonas, 2003.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Proposta de expiação

Gostaria aqui de comentar um post do escritor paraibano Bráulio Tavares. O título é bem pontual: O nosso pecado original. Bráulio aborda um tema já saturado, seja nas Ciências Sociais ou na Literatura, por uma nova perspectiva.
O autor começa nos apresentando o que se entende por pecado original. Se formos á raiz do termo, chegaríamos então ao Jardim do Éden no instante em que Deus pune Adão e Eva do local por terem comido do Fruto Proibido. A partir daquele momento, Adão e seus descendentes seriam punidos com o trabalho duro como único meio de sobreviver e Eva e suas eventuais filhas com a dor do parto.
Em outras palavras, é "um pecado que não cometemos, mas que foi cometido por quem nos trouxe ao mundo, e que de certo modo nos influencia. Quando um indivíduo toma consciência desse pecado, que não dependeu de uma decisão ou de uma opção sua, sente uma culpa que o habita mas não lhe pertence, e que por isso mesmo lhe parece impossível de expiar".
Nós, brasileiros, teríamos além desses dois pecados originais mais um: a corrupção. A corrupção, em suas mil formas, está entranhada em nossa vida política, empresarial, econômica. Onde quer que exista muito dinheiro (e, de maneira perversa, onde exista dinheiro público) a corrupção surge. Acabamos entrando no labirinto da corrupção diretamente, através da nossa participação, ou indiretamente, principalmente através da vista grossa. Ser honesto e ético no meio de um ambiente viciado é quase impossível. Em outras palavras, no envolvemos na corrupção mesmo quando somos indiferentes á ela.
No entanto, o dinheiro desviado é usado em outra coisa, em outros setores, mesmo que seja de fachada, ajudando a financiar novas formas de produção. Do dinheiro sujo nasce, assim, algo diferente. Tentar limpar a nossa economia dele seria dificílissimo e até prejudicial á economia nacional.
Não, leitor, essa não é uma espécie de apologia á corrupção. Bráulio, diante das inúmeras afirmativas do cárater cultural da corrupção em nosso país e das propostas de "expiar esse pecado", manifesta uma certa descrença. Afinal, se é cultural uma medida política de última hora não mudaria tudo num piscar de olhos. Além disso, a maioria das alternativas propostas pregam uma reestruturação total de nossa cultura, como se para o Brasil se ver livre da corrupção teria que deixar de ser Brasil e se tornar uma espécie de país europeu nos trópicos.
A solução, melhor, a "proposta de expiação" que Bráulio imagina é diferente. A corrupção é um pecado original meu, seu, de todos nós. Mesmo não roubando acabamos, por vias transversas, nos beneficiando de coisas geradas com o produto do roubo (comércio, indústria, serviços, lazer). Não há batismo que nos purifique por inteiro. Talvez tenhamos que tratar a corrupção como outros pecados originais nossos (a escravidão, o latifúndio, os massacres étnicos) e tirar dela algo de positivo. O dinheiro pode ter origem suja, mas ainda assim pode ser reaplicado, num estado de limpeza provisória, na corrente econômica.  Ser honesto hoje passaria por tentar modificar o que nos chega em mãos, o dinheiro sujo, aplicá-lo em formas honestas e éticas de produção, "purificá-lo". Alguém poderia dizer que ele substituiu o combate pela corrupção pela aceitação; não acredito, penso que Bráulio apenas está propondo uma nova maneira de se combater a corrupção, que não é de certa forma uma aceitação, pois não passa pela indiferença. E o texto se endereça a todos, não a um círculo de pensadores e cientistas políticos. É uma proposta para o dia- a- dia. Uma proposta melhor que a apatia em que muitos vivem atualmente e, como dissemos acima, ajuda e muito esse status quo. Talvez assim o Brasil finalmente alcance a tão esperada "redenção".

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Sagrado e Profano

O Jardim das Delícias, Hieronymus Bosch

Segundo um dos maiores pesquisadores sobre as religiões, o romeno Mircea Eliade o homem é formado por duas dimensões: a sagrada e a profana. A profana diz respeito á vivência cotidiana, á vida mundana, enquanto o sagrado fala sobre um mundo mais abstrato e metafísico, um mundo transcendental. Sempre foi assim, hoje, a dimensão sagrada parece ter sido um pouco reduzida, mas ainda está aí.
Eliade começa a analisar o sagrado e nos apresenta aquilo que acredita serem pontos fundamentais de sua estrutura: o sagrado é um canal para interagir com uma ou umas divindades, por isso o homem sempre procura em seus rituais e orações uma volta aos primórdios, quando elas criaram o mundo, por ser um momento onde sua ação e vitalidade é muito maior.
Assim sendo o sagrado tem sua própria temporalidade: é o eterno retorno. O rito, os altares, o mito tem essa função: a de ligar o homem ao início de tudo, ás divindades, no seu dia-a-dia. Claro que tudo isso também tem uma função social:  legitimar uma ordem através de tabus e rituais.
Eu entrei em contato com esse texto durante minhas aulas de Introdução aos Estudos Históricos. O objetivo da professora (Cristiane Manique, uma das melhores professoras que tive) era nos fazer repensar o conceito de tempo. O tempo em si é uma coisa inefável, indizível, impossível de ser capturado totalmente. O que existe são tentativa de defini-lo e de medi-lo. Essas tentativas se refletem no conhecimento histórico: cada historiador tenta entender os processos históricos, tenta conferir á história um sentido e uma finalidade. E o que a professora nos fez ver é que isso não é privilégio somente dos historiadores. O mito e a religião são uma forma de conhecimento, embora por anos tenhamos os desprezados por não terem uma "cientificidade". São uma forma de conhecimento e, em certos casos, uma filosofia da história também. Filosofia da História é toda tentativa de ver a história além dos acontecimentos, encontrar um nexo entre os diversos fatos, encontrar estruturas ou outra forma de totalidade. Assim, sendo uma religião pode ser uma filosofia da História pois ela confere á todos os fatos a vontade das divindades. O Cristianismo é uma das "filosofias da História" com quem mais os filósofos dialogaram, seja atacando ou acatando os desígnios da Providência na história. A filosofia da História, no ocidente, se "profaniza" com os iluministas, principalmente Voltaire, e desde então temos aí o idealismo, o materialismo histórico, o historicismo e por aí vai.
Como podemos ver, a história,. como a nossa própria vida, também está entre o sagrado e o profano.

Pais x Estado

Zanzando pela internet, me deparei com a seguinte notícia:  Condenado pela Justiça, casal de MG mantém os filhos fora da escola. O caso em questão é que esses pais decidiram educar seus filhos em casa e foram punidos pela Justiça por isso. Incomodados pela intromissão do Estado numa questão que consideram, antes de tudo particular, esse casal fundou uma associação para os pais que querem educar seus filhos sem precisar colocá-los na escola.
A questão reacendeu uma polêmica que já é lugar comum da história da educação de nosso país: a educação deve ser, antes de tudo, pública ou privada? Além disso, temos aqui o outro lado da moeda de um personagem geralmente odiado por pedagogos e educadores em geral: o pai que deixa para a escola toda a responsabilidade pela educação de seus filhos. O consenso hoje é de que o aluno é educado não só na escola, mas em casa e na rua e são justamente nesses dois lugares em que os pais teriam que tomar mais cuidado.
Os pais de que trata a reportagem decidiram reveter a situação: a casa vira o lugar da educação por excelência, e a rua e a escola locais de educação mais periféricos. Os pais tem direito de escolher que educação seus filhos terão, concordo, e a própria Constituição concorda com isso, no entanto, ela cai em contradição ao delegar ao Estado a última palavra na decisão do ensino.
Um argumento de um dos pais - a reportagem trata de casos em Lavras (MG), Serra Negra (SP) e Maringá (PR) - é justamente de que a educação nas escolas públicas está cada vez mais pobre e o ambiente mais perigoso. Ora, um dos argumentos da Defensoria Pública é de que essas crianças estariam privadas do contato social que a escola proporciona e isso acarretaria problemas psicológicos futuros. Concordo, o convívio social deve ser cultivado, mas que convívio é esse que muitas escolas públicas (e particulares) podem oferecer.  A pouco tempo se falava muito do buyilling, a perseguição á colegas menos populares. Temos que enfrentar isso, isso tudo. Temos que enfrentar a falta de infra-estrutura na educação e esta tradição do buyilling. Muitos podem dizer que isso é problema só do Estado, mas é mentira, o problema é de todos nós. Louvo a decisão desses pais por se preocuparem com a educação de seus filhos, mas acredito que eles deveriam fazer um movimento mais organizado para pressionar o Estado a não só respeitar sua decisão como também trabalhar por um ensino de qualidade.

Lusíndia

Samuel Benchimol é um dos monstros sagrados das Ciências Sociais no Amazonas. Intimamente preocupado com a região, propôs no decorrer de sua vida inúmeras alternativas e projetos para seu desenvolvimento. O empenho partia de alguém que sentia enorme admiração e encanto por esta terra, expressos na maioria de suas obras e ações.
Podemos percebê-lo em uma de suas últimas obras: Amazônia - Formação Social e Cultural (1999). Aqui, Benchimol pretende fazer um balanço da história não só do Amazonas, como do Pará, uma vez que falar de todos os estados que compõem a Amazônia Brasileira seria muito mais dispendioso. Logo na sua introdução percebemos que o autor toma esta obra como um compêndio de todo seu trabalho enquanto historiador, encontrando aqui dois de seus antológicos estudos sobre os judeus e os cearenses na Amazônia entre novos estudos.
Ainda na introdução podemos perceber os mestres de Benchimol, aqueles que lhe influenciaram muito: o antropólogo pernambucano Gilberto Freyre e o historiador amazonense Arthur Cézar Ferreira Reis. O último fora parceiro de Samuel por muitos anos, seja como pesquisador ou como político, e á ele cabe o posto de pioneiro na pesquisa e na divulgação do trabalho histórico no Amazonas. Freyre, dispensa apresentações, mas gostaria de ressaltar que sua influência sobre Benchimol se dá de duas maneiras: através da forma, como bem lembra o ensaísta Elson Farias, e da tese do luso-tropicalismo, mais perceptível que a primeira.
Na forma, porque o pensador pernambucano tinha um estilo que flertava com a literatura, muitos alegam até que suas obras são ensaios. Quanto á "tropicólogia", Freyre a desenvolveu como um ramo de sua sociologia dedica a estudar como se dá essa miscigenação principalmente cultural típica dos trópicos e que tem seu maior exemplo no caso brasileiro (daí luso-tropicalismo).
Como isso se reflete em Benchimol? Por meio de um estilo maduro e mais literário, típico de um ensaio, e na defesa de uma identidade mestiça por excelência por todo o livro. Nos trabalhos anteriores, o autor se dedicara á estudar a presença do judeu e do nordestino na Amazônia, nesse sua empreitada aumenta: agora ele quer ver a presença do negro, dos asiáticos, dos anglo-saxões e dos sírio-libaneses, dentre tantos outros.
Ao falar de todas essas presenças, Benchimol chega á conclusão de que a Amazônia é mestiça por excelência. Se Freyre dizia que o Brasil é a miscigenação em pessoa e o principal mediador desse processo fosse o negro, o historiador e empresário amazonense nos diz que a Amazônia é a coroação desse processo, embora o mediador aqui não seja o negro, mas o indígena. Esse processo, iniciado na colônia durante o processo de conquista, gerou uma fusão entre o elemento europeu e o elemento indígena, fusão que ele batizou de Lusíndia.
A Lusíndia permanceu assim por muito tempo, até a chegada do "cearense" (como os nordestinos em geral são chamados na região) que "abrasileira" a região, segundo Benchimol. 'Abrasileira" no sentido de integrar a Amazônia culturalmente ao resto do país, uma vez que sua formação sui generis, a Lusíndia, esteve isolada por tanto tempo. A Lusíndia, então, estaria hoje diluída graças ás levas de imigrantes e migrantes que aqui aportaram, mas a identidade caboca, filha dessa Lusíndia, ainda permance viva.
A Amazônia, uma vez destrinchada pelo escritor, é vista como uma grande lição ao mundo de harmonia, de coexistência entre tantas culturas diferentes, mas ainda cheia de contradições e problemas, principalmente econômicos e ambientais, que sua população não conseguiu resolver, seja por problemas internos (corrupção, analfabetismo) ou externos (a ganância de países estrangeiros). Á Benchimol, cabe criticarmos sua visão um tanto idílica da história amazônica, embora ele reconheça a violência desse processo de construção da Lusíndia, assim como criticamos Freyre pelo mesmo motivo. No entanto, muitas de suas reflexões ainda nos parecem válidas e promissoras, como o papel das culturas analisadas e da identidade local.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Dona Eugenia no Sítio do Pica-Pau Amarelo


Ontem, na faculdade, comecei uma discussão com meus colegas sobre Monteiro Lobato. A discussão não poderia ter sido outra senão sobre suas considerações preconceituosas expostas em um de seus livros sobre o Sítio do Pica-Pau Amarelo.  Ora, Lobato em um outro livro, O Presidente Negro, extrapola mais ainda nos comentários sobre os negros, mulheres, judeus e americanos.

Só relembrando, a pouco tempo atrás um grupo de professores queria retirar um de seus livros infantis da lista de leitura das crianças por expor racismo. Agora, não sei em que pé anda a discussão, mas alguns até sugeriram que o livro continuasse, mas com pequenas notas que expliquem o contexto do escritor. Lobato nasceu em uma família tradicional de cafeicultores, intimamente ligada ao Império (ora, seu avô era o prestigiado Visconde de Tremembé) e á escravidão. Mesmo se rebelando contra parte dessa  sua herança cultural, criticando os barões de café, o Império e a escravidão, Lobato também não estava livre limitações.

Ora, é reconhecido que ele tinha uma enorme simpatia com as idéias eugenistas, aquelas que propunham melhorar a população brasileira por meio de casamentos e uniões entre indivíduos mais fortes e aptos de "raças" melhores, como a européia. Só assim salvaríamos o Brasil da inércia em que se encontrava graças á sua população cabocla apática e preguiçosa. Contudo, o próprio Lobato reavaliou estas idéias no decorrer de sua vida: depois de entrar em contato com as pesquisas dos sanitaristas pelos sertões, o escritor taubateano reconheceria que o problema não era o caboclo, mas a situação precária em que ele se encontrava. Nos últimos anos de vida, depois da Segunda Guerra Mundial, o escritor até absorveria alguns pontos do comunismo, passando a criticar o latifúndio, segundo ele, principal causa da fragilização do povo.

Não creio que por suas limitações Lobato tenha de ser expurgado das escolas. Não defendo com isso que esqueçamos delas, não; o caso serviria até para ensinar aos alunos um pouco sobre o tempo em que ele vivia e como o ser humano pode ser contraditório. Mesmo cheio de muitos méritos, seja na literatura, na política ou na cultura, Lobato ainda tinha seus defeitos, como todos nós.

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Mais informações sobre o Lobato eugenista podem ser consultadas aqui, nesse ótimo artigo de André Fernandes de Castro no Almanaque Urupês.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Uma visão da Era Lula



No mês passado, saiu um artigo muito interessante do cientista político Wanderley Guilherme Santos na revista Carta Capital (cuja versão digital pode ser visualizada aqui). O artigo é baseado numa pesquisa do próprio em censos e levantamentos de dados dos últimos oito anos. A conclusão a que chega o cientista político é de que Lula mudou os rumos da República derrubando alguns mitos criados pelo conservadorismo entre 1945 e 1964 que continuam vivos até hoje. Quais sejam: a idéia de que crescimento econômico sempre viria acompanhado de inflação. De onde saiu essa idéia? Da experiência do governo de Juscelino Kubitschek, onde o PIB (Produto Interno Bruto) cresceu bombasticamente junto com o encarecimento dos produtos básicos. No entanto não foi isso que aconteceu nos dois governos de Lula:
A retomada do crescimento econômico veio acompanhada de inflação cadente e sob controle, acrescida de inédito aumento na massa de rendimento do trabalho. Em particular, o salário mínimo real dos empregos formais aumentou em 54% , entre 2002 e 2010, estendendo-se o número de trabalhadores com carteira assinada a mais de metade da população economicamente ocupada (...). A curva do desemprego, outro fantasma da excessiva prudência conservadora, apresentou uma evolução favorável, com taxas cadentes desde 2005 até o recorde favorável de 2010, quando a taxa de desocupação foi reduzida a 5,9 % da população economicamente ativa.

Além disso, com base em outros levantamentos, houve um maior cadastramento da população brasileira, o que poderá ajudar nos programas futuros do governo. A Justiça tornou-se mais acessível e as medidas implantadas pelo governo ajudaram a diminuir a pobreza e o preconceito no país, assim como suscitaram muitos debates na sociedade. Wanderley conclui:
Mas o pernóstico debate sobre o atribuído assistencialismo do programa ofusca o princípio ordenador das prioridades do governo e o sentido histórico dos dois mandatos do presidente Lula da Silva. Crescimento econômico, inflação sob controle, expansão do emprego e redução das desigualdades sociais são metas compatíveis, sim, entre si e com a democracia, desde que o governante adote política em harmonia com a agenda preferencial do povo - isto é, do povo de Lula.

Concordo com Wanderley em partes: o governo Lula, ao meu ver, seguiu uma cartilha econômica dos governos anteriores e inovou em outras partes, principalmente na "ousadia do crescimento econômico sem inflação" de que fala o cientista político. Quanto ás políticas públicas, é inegável que elas tenham algo de assistencialismo e politicagem, mas isso não deve ofuscar a outra face da moeda: a ousadia em propor tais medidas. Essas medidas realmente suscitaram e suscitam um debate enorme, principalmente as cotas raciais, o que, na minha opinião, é uma demonstração de que a democracia está deitando raízes em nosso país. No entanto, ela não foi a única coisa que se consolidou por aqui: a corrupção também. Se o governo Lula conseguiu superar um discurso conservador na economia não teve o mesmo sucesso em combater essa "instituição". Claro que mudanças nessa esfera são lentas, tão entranhada está a corrupção em nossa vida pública, no entanto, pode ser que o fortalecimento da democracia ajude a minar suas bases.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Novas esperanças ou novos temores?

Ainda sobre os movimentos no mundo árabe que tem tomado as manchetes dos jornais, gostaria de resumir aqui uma visão sobre estes acontecimentos.
Esta visão foi feita pelo analista do Oriente Médio do Woodrow Wilson Center, Roger Hadry, e tem como título "Revolta no mundo árabe é início de processo longo e incerto". Segundo Roger, é mais que evidente que os protestos se dirigem aos estadistas árabes que há décadas governam ditaduras, em grande parte apoiadas pelo EUA. No entanto, o alvo está mais centrado neles e não, como nas outras revoltas, a "nós", ocidentais, embora muitos culpem ambos pela situação precária em que vivem.
Sim, "nós" temos culpa no cartório, afinal os atuais ditadores árabes foram colocados ali graças aos planos dos estadistas ocidentais. Em outras palavras, durante todo o século XX, praticamente, o mundo árabe foi personagem secundário de sua própria história, sendo manipulado ora pelo neocolonialismo ora pela Guerra Fria. "Agora, líderes ocidentais, incluindo Barack Obama, se tornaram meros espectadores enquanto os acontecimentos se sucedem com velocidade rumo a um desfecho que ninguém pode prever".
De certa forma, todos foram transformados em espectadores, até aqueles que finjem terem controle, como o Irã e a Al-Qaeda. Enquanto o aiatolá Khamenei, autoridade máxima do Irã, diz que o Egito fará uma "revolução islâmica", Hadry diz que a maioria da oposição tem outros planos. Fazer do país uma democracia nos moldes da Turquia basicamente, adotando os confortos do mundo ocidental, principalmente as novas mídias sociais que foram tão importantes nas agitações.
No entanto, embora as aspirações liberais e democráticas sejam grandes, elas não são tão organizadas assim, como a Irmandade Muçulmana, que, com os anos, renegou um pouco de seu fanatismo inicial. Enquanto escrevo essas linhas é noticiado nos jornais e na internet que o presidente caquético do Egito, Hosni Mubarak, finalmente renunciou, daí me ater tanto nesses detalhes. Bem, uma especulação agora de que rumo tomará o Egito e o mundo árabe é um empreendimento muito vago e quase inútil, por isso faço minhas as últimas considerações de Roger:
A quem o futuro pertence?
Analistas fariam bem em exercitar um pouco a humildade.
Meu palpite, tenha ou não algum valor, é que isso não é o início de uma primavera árabe, mas algo mais confuso e longo.
A velha ordem ainda tem muito a lutar.
A batalha para o futuro árabe está começando. Já que as apostas são altas, a luta será feroz.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O Aeroporto

Merhan Karimi Nasseri e sua "casa".
Quem aqui nunca se estressou com a burocracia? Na vida atual ela é um dos personagens que mais teima em aparecer, principalmente aqui, no Brasil. Impossível não se lembrar de Franz Kafka, escritor tcheco que a transformou em material principal de sua obra. Nas páginas de seus livros as pessoas são apanhadas de surpresa pela rotina e pela burocracia, são sufocadas por procedimentos vazios e sem sentido algum. O maior exemplo, sem dúvida, pode ser O Processo, história na qual o protagonista vê-se repentinamente num processo assustador sem saber ao menos do que é acusado.
Bem, recentemente ouvi falar de um caso que bem poderia ter se tornado um conto de Kafka. O caso de Merhan Nasseri, um refugiado iraniano que por seus documentos terem sido extraviados teve que morar no Aeroporto Charles de Gaulle, na França, de 1988 até 2006, quando teve de ser hospitalizado e finalmente conseguiu novos documentos. Você deve estar pensando: já ouvi isso antes... Ouviu sim, melhor, viu. Ao ouvir falar do homem, Steven Spielberg decidiu fazer uma história sobre sua vida que acabou descanbando para um filme de ficção: O Terminal (2004). No final, o portagonista vivido por Tom Hanks consegue finalmente sair do aeroporto antes de completar uma década de espera. Na vida real, Nasseri, depois de ter sua vida legalizada, não conseguia mais se manter no "mundo lá fora" e decidiu voltar ao aeroporto. Pois é, Nasseri se acostumou com sua situação incomôda, tornando-a, assim, comôda. E é o que acontece quando aceitamos nossos absurdos kafkeanos de cada dia.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Felicidade...

(In)felicidade é só uma questão de prefixo.
Marina Prazeres


Eu gostaria aqui de contar uma história. Ela está presente no filme do cineasta francês Alain Resnais, A Vida é um Romance (1983). É uma das três narrativas que se desenvolve no filme.

Estamos acompanhando a jovem e bela Lívia (Fanny Ardant) e seu amado Raoul (André Dussolier) na visita á última iniciativa do excêntrico Conde Michel Fobrek (Ruggero Raimondi): o Castelo da Felicidade. Sim, o milionário nos apresenta a maquete de seu projeto e anuncia que se pretende casar com Lívia. Ah esqueci de dizer: estamos em 1914, então, a Primeira Guerra Mundial está prestes a explodir. E quando explode, Raoul é convocado para lutar no front. Lívia, sabe que ele morrerá e por isso aceita se casar com o quixotesco nobre e, assim, acompanhar a sua empreitada.


André Dussolier e Fanny Ardant em cena de A Vida é um Romance (1983)

Bem, quando o filme volta á história de Lívia e Fobrek o Castelo da Felicidade deixou de ser uma maquete. Agora ele é uma imponente fortaleza e seu interior lembra certamente uma paisagem extraterrestre, tamanha a estranheza. Como cobaias para a experiência, Fobrek contou com muitos de seus colegas aristocratas. Aliás, quem não queria ver um mundo melhor diante do espantoso cenário de uma guerra mundial? O experimento consiste em, por meio de uma poderosa droga, apagar a memória de seus "convidados" e pouco a pouco apresentar a eles tudo o que há de mais puro e inocente no mundo. Assim, o Conde lhes agracia com o mais extasiante perfume, a mais bela música e os pratos mais deliciosos. Lívia, a única a conservar sua memória, observa tudo com estranhamento e um fio de angústia.

No seu empreendimento, Fobrek não pode deixar ninguém fugir do castelo. Durante todo o processo, contudo, ele sofre algumas perdas como um convidado recente e misterioso (que no futuro se revelerá ser Raoul, de volta da guerra) que decidiu fugir e seu próprio pai que cansou de acompanhar "essa tolice". Abalado, mas não intimidado diante das perdas, Fobrek ordena: "Continuemos!"
.
A experiência é coroada quando todas as cobaias, até então reclusas e repousando em seus quartos, se encontram no salão principal. Purificadas pelas drogas e pelas sensações intensas que o conde lhes proporcionara nos últimos meses, todas passam a interagir entre si como se estivessem em um transe. Lívia observa tudo e se assusta. Atravessando o salão, em uma câmara separada, descobre um Fobrek contemplando dois corpos, sendo um deles o seu amado. Martíres na sua jornada para descobrir a fórmula da felicidade geral, segundo ele. Mas Lívia, abalada, o ataca, critica todo o seu absurdo projeto. O homem fica colérico e avança contra seu amor não-correspondido, recebendo um golpe na cabeça que o atordoa, mas não o bastante para seguir Lívia. Ela entra no salão principal e lhe apresenta o seu "magnífico" resultado: um bando de zumbis. O conde, atordoado pela cassetada e pelas críticas de sua mulher, parece reconhecer o seu completo fracasso, expressando-o em um olhar de frustração pungente.

Como vocês podem ver, essa história é muito interessante. Podemos extrair muitos significados dela, principalmente sobre a transformação de belas utopias em regimes de horrores, como a história tem nos revelado. Mas não é sobre isso que eu gostaria de falar. Esse texto pretende falar sobre o mote principal dessa história. Essa narrativa, onírica e ao mesmo tempo filha da ficção científica, funcionou no filme de Resnais como uma fábula, uma fábula sobre a felicidade.

O que é felicidade? Felicidade é um daqueles termos que todos levamos na cabeça, mas na hora de definirmos as palavras nos escapam. Talvez porque o termo seja muito relativo: o que é felicidade pra mim, pode não ser felicidade para você. Por efeito, tomemos uma definição usual: estado de espírito de satisfação. Todo aquele com o mínimo de experiência em viver, o que não é muito difícil, sabe que o ser humano nunca está satisfeito e por isso mesmo a felicidade é uma meta sempre perseguida e, segundo muitos, nunca alcançada.

Há sempre a desilusão. As pessoas pensam que uma vez alcançada a felicidade não fugirá, mas, como sabemos, isso sempre acontece. Por isso, há sempre a pergunta: há como "ser feliz" ou apenas o "estar feliz"? Tenho para mim que as duas alternativas são válidas, uma vez que é possível alguém ter mais momentos de felicidade e, assim, ser feliz ou estar feliz por mais tempo. Bem, maiores discussões sobre felicidade procurem o Espinoza, pois agora nos deteremos nas condições para a felicidade.

Alguns autores de livros de auto-ajuda ou de gerenciamento costumam sugerir um planejamento da felicidade, ou seja, estabelecer metas menores de felicidade e assim domesticando suas vontades. Resnais (e seu roteirista Jean Gulraut), no entanto, sugerem, através dessa fábula que as condições para a felicidade são simples e ao mesmo tempo complexíssimas. A primeira condição seria o amor, o amor que Fobrek não consegue ter de Lívia. A segunda a liberdade, a liberdade que Fobrek tira de suas cobaias em nome de uma felicidade geral. A terceira seria a aceitação da desilusão, o que Fobrek só consegue fazer no final e ainda assim de forma trágica. A desilusão é intrínseca á vida, todos temos falsas expectativas, o que é natural. Como diria Vinicius de Moraes, a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional. Vai de cada um como lhe dar com sua dor e com o que entende por felicidade, afinal todos somos livres. Alguém me perguntaria: livres até que ponto? Suponha que você nasça com problemas de locomação e sonhe em ser um corredor olímpíco, aonde fica a liberdade aqui? Claro, somos condicionados pelo passado e pela anatomia, mas fora isso, podemos muito bem escolher o que fazer com o que nos foi dado. Há problemas que podemos contornar, outros que não, é um fato; aceitar é diferente de se conformar.

E o amor? Há muitas formas de amor, mas é unânime que o amor é uma das maiores fontes de felicidade (e também sofrimento) do mundo. Penso que as mesmas condições estipuladas para a felicidade por Resnais possam ser aplicadas ao amor: liberdade, compreensão, aceitação, empatia, etc. Por maior empatia que Fobrek nutrisse pela humanidade e por sua amada Lívia, ele não poderia tornar ambas feliz suprimindo sua liberdade e parte de sua personalidade. Por isso, como disse antes, muito das utopias universais tem um "quê" de desprezo com a alma humana, mesmo a mais sombria de suas partes, pois, na maioria das vezes, retira ou da coletividade ou do indivíduo sua liberdade, o que revela um futuro anárquico ou totalitário. Não estou com isso declarando guerra ás utopias, somente pedindo cuidado na hora de transformar "teoria" em "prática".

No entanto, uma fórmula para o amor e para a felicidade, como procurava Fobrek, é uma experiência fadada ao fracasso. Ou por se remeter á algo que é indizível ou por ser um valor muito subjetivo. Não se pode construir um manual da felicidade, o ser humano é muito diverso e imprevisível (o que talvez seja sua maior força e sua maior fraqueza). A vida é e não é um romance, como afirma duas personagens do filme em momentos diferentes. Resnais nos dá assim a possibilidade de escolher qual dessas afirmativas escolher, sabendo que qualquer afirmativa taxativa, como seu conde o queria, é inútil. Dessa mesma maneira gostaria de terminar esse texto: a felicidade pode ser uma questão de prefixo... ou talvez não.

Ideologia


"Não é prudente nem econômico!
Abandonar uma ideologia só porque ela saiu de moda. Pois ela é, no fundo, a própria moda.
O que você tem a fazer é encurtar um pouco a bainha, ou mandar tingir de outra cor, talvez alargar um pouco aqui assim, nos ombros, alargar a cintura (a gente era mais jovem), colocar uns babados, e pronto!, A ideologia está de novo ápitudeite.
Você pode ir com ela ao baile sem nenhuma vergonha.
Ninguém vai notar que está com mais de 10 anos de uso".


Millôr Fernandes, jornalista e humorista brasileiro.

[Há dois dias atrás, o mestre Millôr foi internado na Clínica da Gávea. O motivo da internação não foi divulgado. Força Millôr!]

Tradição


“Sem dúvida, um povo só pode pensar o mundo através da sua tradição. Mas uma coisa é pensar através de uma tradição que passou por um desenvolvimento contínuo até o presente, uma tradição de que o presente faz parte integrante, uma tradição continuamente renovada, revisada e criticada; outra coisa é pensar através de uma tradição de desenvolvimento interrompido há séculos, uma tradição afastada do presente pelo profundo abismo que os progressos da ciência cavaram entre ela e a ciência.”

Mohammed Abdel al-Jabri, filósofo marroquino.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Uma sociologia da exclusão

Há mais ou menos um ano, entrei em contato com a obra de Robert Castel. Castel, sociólogo francês nascido em 1933 e formado pela tradicional Escola de Altos Estudos Sociais da França, que nos deu nomes como Levi-Strauss e LeGoff, por exemplo.


Li apenas um de seus livros, As Metamorfoses da Questão Social: Uma Crônica do Salário (Ed. Vozes, 1997). Questão social era como convencionou-se a chamar as preocupações suscitadas pela emergência do proletariado na Europa do século XIX. Preocupações sobre o trabalhador, que cada vez mais tomava consciência de seu peso político, e sobre o seu oposto, o vagabundo, que também representava um perigo em potencial, sinônimo de crime e insurreição. Castel vai mais longe e diz que essas preocupações sempre existiram, são intrínsecas a toda sociedade. Toda sociedade se preocupa com aqueles personagens que podem abalá-la.

O sociólogo mostra isso ao analisar a história da Europa, principalmente da França, com base nos estudos dos maiores nomes da Escola dos Annales. Assim que uma sociedade cresce, torna-se complexa, ela deixa de se autor-regular. Foi o que aconteceu na Idade Média. Para deter os trabalhadores e os pobres, a Igreja e o Estado, que vinha se consolidando, criaram medidas variadas de controle. As mais famosas vieram com o Antigo Regime, séculos depois: os asilos, as associações de caridade, etc.
O Estado geralmente toma a frente nas medidas, mas a partir do século XIX a iniciativa privada também participa do "jogo", por meio das associações de caridade e as sociedade de socorro, no caso dos trabalhadores. Chegamos aos nossos dias, num contexto de neoliberalismo, onde o papel do Terceiro Setor é forte através das ONGs, principalmente sobre o que fazer com os excluídos. O mesmo acontece na área dos "incluídos", os trabalhadores, sendo que aqui a iniciativa privada também adquire importante proeminência.
Castel revisita o termo exclusão, usado a torto e direito nas ciências sociais mundiais. Ninguém está excluído, mesmo os ditos excluídos, aqueles que não participam da sociedade seja produtivamente ou politicamente, pois eles estão dentro de uma rede de relações sociais. Os excluídos estão dentro da sociedade, a mesma que os cria. A oferta de trabalho, as crises, o estado de desenvolvimento de cada país, tudo isso ajuda a "fabricar" excluídos.
Parte da tese de Castel é justamente de que o capitalismo reproduz essa desigualdade e de que a estabilidade é um mito: o "incluído" pode ser facilmente "excluído". A partir da consolidação da Revolução Industrial, as corporações de ofício, responsáveis por proteger os trabalhadores, somem, assim como a idéia de uma sociedade estamental, onde cada um nasce e morre numa esfera da sociedade. Agora temos uma vulnerabilidade de massas, alguém que nasceu nobre pode se tornar pobre.

Essa vulnerabilidade só aumenta com o tempo e assim temos hoje um cenário onde o desemprego é uma realidade de muitos países, até os que se dizem mais desenvolvidos. O mercado pede profissionalização, as entidades trabalhistas se enfraqueceram e as flutuações na economia internacional só ajudam o desemprego. Assim temos uma grande parte da população que vive no mercado informal ou na sua própria subsistência. A realidade, para Castel, é essa: os "in" podem facilmente estar "out", apesar que precisamos relativizar ainda esse "out".

A "professorinha" Aleixo

Geralmente a visão que temos de professora é daquela mulher generosa, compreensiva e geralmente solteira. Tão carinhosa e próxima de nós que passamos a nos referir á ela no diminutivo: a "professorinha". Em suma, uma figura materna. Tão materna que passa a ser irmã da mãe dos seus alunos, tornando-se assim a tão adorada "tia".

Bem, alunos de uma escola em Vespasiano, na Grande BH, não vêem sua professora de Ciências exatamente como uma "tia". Alexandra Aleixo atraiu a atenção da imprensa por reclamações de pais e alunos contra a sua maneira de se vestir. A professora de 38 anos usa na sala de aula roupas pouco recatadas. Diz ela até que foi coagida pela direção da escola para parar de se vestir assim.


O caso deve ter lembrado muitos leitores do caso Geyse Arruda, claro. Levando em consideração as oportunidades geradas com a repercussão dos dois casos (Aleixo pouso para um ensaio fotográfico já e foi convidada para participar de um bloco carnavalesco no Recife), as semelhanças são grandes mesmo. Mas a questão aqui é que todo mundo é livre para se vestir do jeito que quiser. No entanto, vai de cada um a consciência do que é mais apropriado. O modo de se vestir diz muito de uma pessoa, mas não o essencial. Se for uma boa professora, tudo bem.
Mesmo assim o caso é divertido por sacudir um pouco com a imagem da "professorinha".
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A título de curiosidade: um trabalho sério sobre a imagem da "professorinha" e a ideologia por trás dela pode ser encontrado no livro do pedagogo Paulo Freire, Professora sim, Tia não!

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Trânsito e Democracia


Um dos maiores nomes da antropologia e do pensamento social brasileiro está lançando um livro sobre o trânsito. Hein? Isso mesmo. Roberto DaMatta publicou o livro Fé em Deus e Pé na Tábua no qual tenta analisar a situação do trânsito nas grandes cidades.

Morador de Niterói, DaMatta diz que a inspiração para escrever o livro partiu de sua convivência frustante com o trânsito em sua cidade. A quantidade de barbaridades nas ruas é uma realidade no Brasil inteiro e agora não só nas grandes cidades. O antropólogo, em uma entrevista para o Canal Livre da Band ontem (que pode ser vista aqui), disse que o livro não é um tratado sociológico sobre o trânsito, mas um grito de alerta para essa situação caótica no trânsito.

Segundo DaMatta, o Código de Trânsito Brasileiro não veio acompanhado de um debate, nem de maiores cuidados. O motorista, por sua vez, encara as leis impostas como um obstáculo á sua liberdade e dela tenta escapar, através do afamado "jeitinho". O problema do trânsito seria, portanto, político e cultural.

Ponto central da obra de DaMatta é essa "sociologia dual", segundo o pesquisador Jessé Souza, na qual o brasileiro, por meio de uma análise de suas imagens consagradas (como o carnaval, por exemplo) e de comparações com outras sociedades, é descoberto num espaço indefinido entre a ordem e a desordem, entre o autoritarismo e o "jeitinho". E essa indefinição do brasileiro é justamente o maior obstáculo para a consolidação da democracia no país.

O trânsito é um espaço privilegiado, pois nele podemos perceber muito bem essas tendências. Uma conjunção de fatores políticos, econômicos e culturais ajudam a criar um comportamento no trânsito pautado pela violência e o desrespeito para com os motoristas e os pedestres. O primeiro passo para acabar com essa cultura do desrespeito é a disciplina. “É um problema de internalizar regras igualitárias nos motoristas para que eles possam dizer não a eles mesmos”, afirma o antropólogo. Reconhecer no motorista/pedestre não um superior ou um inferior, mas um igual, esse seria o objetivo e as ferramentas para isso podem ser as mais diversas, como a educação, repressão e o debate, de preferência, todas se articulando entre si.

Uma questão atual e fundamental analisada por um dos monstros das Ciências Sociais brasileiras, portanto, um livro imperdível.

Revolução no mundo árabe

Nasser (1918-1970) falando ao povo, 1961.

Há 50 anos atrás, o oficial do exército egípcio Gamal Abdel Nasser e mais alguns colegas que ficaram conhecidos como o grupo dos Oficiais Livres lideraram uma insurreição no Egito contra o governo do rei Farouk I conhecida como a Revolução de 1952. O monarca foi expulso e os oficiais livres instituíram uma república secular. O movimento obteve forte apoio da população. O motivo? Farouk I, aos olhos de todos, era um "pau-mandado" do governo britânico que controlara o Egito por tantos anos. Os egípcios estavam cansados dessa dominação. Nasser surgiu com um projeto político que respondia essas expectativas: o pan-arabismo.

O pan-arabismo, ao contrário do que muitos pensam, não foi criado por Nasser, mas por intelectuais libaneses, como Michel Aflaq, na década de 1920. Era uma ideologia que apostava na união dos povos que habitavam a Península da Árabia, uma vez que estavam ligados pela história, contra o imperialismo ocidental. A inspiração do movimento era mais secular que religiosa, uma vez que esses intelectuais viam na religião um fator de potencial conflito entre os próprios povos árabes.

Precisamos compreender que o pan-arabismo era uma proposta para mudar o status quo de dominação que os povos árabes vinham sido submetidos desde o enfraquecimento do Império Turco Otomano, uma das maiores potências mundiais da Humanidade. O Ocidente se erguia triunfante com sua Revolução Industrial e os califas turcos, diferente dos séculos XVI e XVII, pareciam caquéticos e carcomidos senhores tentando governar um império que se desafazia em províncias corruptas e rebeldes. Nesse cenário de pobreza e miséria, os governos ocidentais, ávidos por mão-de-obra barata e consumidores, repartiram as sobras do Império entre si. Era um momento de vergonha para o mundo árabe, que fora um dos mais esclarecidos do mundo desde sua formação até a chegada dos mongóis.

Projetos para reerguer o mundo árabe então começaram a serem feitos: existiam primeiramente os que acreditavam que se adequar ao modo de vida ocidental seria a melhor maneira de sobreviver. Do outro lado, haviam aqueles que renegavam o modo de vida ocidental e valorizavam ao máximo o modo de vida local. Claro, que estou simplificando muito as coisas aqui: nem tudo era preto e branco, havia muitos tons de cinza. Estes dois lados são as raízes dos movimentos ocidentalistas e fundamentalistas atuais. Na fronteira entre os dois se desenvolveu o pan-arabismo: defendendo a cultura árabe, mas adotando alguns princípios do mundo ocidental como o governo laico e secular.

Esse debate entre contra e pró-Ocidente também se fazia no Egito. Em 1928, um jovem professor chamado Hassan al-Banna funda com mais cinco pessoas uma organização chamada Irmandade Muçulmana que tinha como proposta justamente uma regeneração do Egito e do mundo árabe através de uma volta radical para o islã dos primeiros tempos. A organização de Banna parecia a mais popular, até surgirem os Oficiais Livres e seu carismático líder Nasser. Nasser impulsiou o pan-arabismo, que parecia até então discussão para um pequeno grupo de intelectuais, com seu carisma e suas habilidades políticas e o transformou em um projeto político extremamente popular.

As primeiras medidas de seu governo, quando foi devidamente empossado, foram atacar o imperialismo ocidental, seja através da nacionalização do Canal de Suez (antes sob domínio da Inglaterra) em 1956 ou pela tentativa de dominar território de Israel, vista pelo mundo árabe de então (e até hoje) como representante local do imperialismo ocidental. A tomada do Canal de Suez levou a uma pequena guerra, em comparação com as posteriores feitas com Israel, na qual participaram inclusive brasileiros. É importante que se diga que Nasser era admirado em muitos países do Terceiro Mundo por representar uma política independente, ou seja, não se submeter nem aos EUA nem á URSS (embora ele tenha contado com a ajuda da URSS em determinados momentos para "peitar" Israel e os EUA).

O maior inimigo interno de Nasser era a Irmandade Muçulmana que via nesse governo secular um embrião de corrupção e imoralidade diante das leis do Profeta. Muitos atentados foram feitos contra Nasser e seus conselheiros. Com a morte de Banna, nos anos 50, um novo líder surge. Mais radical e mais influente que Banna, Sayd Qutb elegia como o "Grande Satã" os EUA devido á seu desrespeito para os seus próprios preceitos morais (ele se referia á religião cristã) e do Islã e apoiava toda sorte de atentados terroristas. Qutb foi preso e executado pelo governo de Nasser em 1966, o que lhe garantiu uma onda de violência. Mas a influência de Qutb já era grande demais: a direção que ele imprimiu á Irmandade Muçulmana pode ser responsável pela criação, nos anos seguintes, de grupos como o Hamas, Jihad Islâmica e o Hezbollah.

A derrota para Israel na Guerra dos Seis Dias (1967), a execução de Qutb e os fracassos da Liga dos Países Não-Alinhados e de uma República Árabe Unida com a Síria pesavam contra Nasser que faleceu no começo dos anos 70. O mundo árabe ficou órfão de um líder influente como ele (Yasser Arafat tentou em vão ocupar esse posto anos depois). Seu seguidor, Anwar Sadat ocupou o governo do Egito e decidiu levantar o país da inflação e do caos político. Sadat percebeu que a solução para o seu país passava pela paz e iniciou um diálogo com as autoridades israelenses. O diálogo resultou numa visita ao Parlamente israelense (Knesset) em 1977 e o Acordo de Paz de Camp David entre Sadat e Menachin Begin, premiê israelense de então. A aproximação com Israel custou a vida de Sadat, assassinado por membros da Jihad Islâmica em 1981. Seu sucessor foi Muhammed Hosni Mubarak, então membro do Estado Maior de Sadat, que desde sua posse demonstrou seu interesse em continuar a colaborar com o mundo ocidental e reprimir as organizações terroristas em seu país. Mubarak foi contudente e conseguiu diminuir e muito o alvo de atuação dos terroristas. Durante seu governo, a Irmandade Muçulmana renegara um pouco a imagem de Qutb, tornando-se mais moderada, mas mesmo assim defensora aguerrida do Islã.

Mubarak tornara-se um importante aliado tanto para os EUA quanto para Israel nesses últimos 30 anos, como podemos ver. Há anos no poder, Mubarak tem investido no turismo e no comércio, mas mesmo assim o país não tem se conseguido reerguer desde a crise financeira de 2008. Mubarak tornou-se símbolo de um pan-arabismo frustrado, que não conseguiu alcançar seu objetivo: desenvolver o mundo árabe. O Oriente Médio se encontra atualmente dividido em ditaduras e regimes fundamentalistas, onde pobreza, corrupção e violência são palavras-chaves, sede dos conflitos mais sangrentos de nossa época. O que aconteceu? Essa situação foi provocada pela combinação de fatores externos (guerra fria) e internos (grupos terroristas, pequenos movimentos nacionalistas, pan-arabismo, etc).

No entanto, protestos iniciados na Tunísia por causa de um jovem que ateoou fogo ao próprio corpo por ter perdido tudo que tinha culminou na expulsão do ditador Muhammed Zine Ben Ali e a formação de um novo governo popular em janeiro desse ano. A revolta se transformou em onda, espraiou-se pelo Iemên, Síria, Argélia, Marrocos, Mauritânia, dentre outros, e encontrou seu caso mais emblemático no Egito. Há dias manifestações na praça Tahrir, região central do Cairo, pedindo a saída de Mubarak do poder tem conquistado a atenção do mundo. A oposição, articulada entre setores mais liberais e a Irmandade Muçulmana, tem atacado o dirigente, que fez até algumas concessões, mas não arreda a idéia de fazer uma transição "lenta, segura e gradual". Negociações começaram essa semana, entre os líderes da oposição, destacando o premiado cientista Mohammed El-Baradei, e o governo, tendo como principal articulista o Exército (que conquistou essa posição de força com a chegada dos Oficiais Livres em 1940).

Por que devemos acompanhar essas mudanças? Estamos presenciando uma transformação que pode mudar a cara do Oriente Médio, para bem ou para o mal. Interessante é como essa transformação tem um caráter original: diferente das outras "revoluções" no mundo árabe, nessa muito dos atores políticos locais e internacionais que manobravam a política regional agora são, como disse um analista, meros espectadores. Daí o medo de Israel, EUA e até do Irã. O cenário no Egito é tão inovador, tendo em vista o que acontece na região nos últimos 30 anos, que ninguém sabe onde isso irá parar. Além disso, o Egito tem um caráter de vanguarda na região. É possível que as transformações ocorridas ali se alastrem para a maioria do Oriente Médio.