sábado, 28 de maio de 2011

Aprendiz de equilibrista

É impossível falar de História do Brasil sem passar por ele. Getúlio Vargas conquistou um espaço considerável na memória de muitos brasileiros pelo seu carisma e por suas medidas. Realmente entrou para a História, como queria em sua carta-testamento, sendo até hoje uma figura discutida seja na academia quanto nas ruas.
Uma amiga minha dizia que Getúlio encanta as pessoas porque ele é ambíguo: conciliador, mas autoritário; populista, mas anti-comunista, etc. Já li em algum lugar que Getúlio era um caudilho político, uma vez que ele sabia manipular o jogo político e a propaganda para fortalecer sua imagem. Quem será realmente Getúlio?
Não tentarei aqui chegar a uma versão definitiva da verdade, apenas sigo uma visão que acredito ser mais corente. Vamos lá:
Getúlio Vargas nasceu no Rio Grande do Sul, em São Borja para ser mais específico. Uma região de grandes estancieiros, sendo o seu pai um deles. Uma região fronteiriça também, onde a ameaça dos argentinos e uruguaios invadirem foi alvo constante de preocupação desses estancieiros. Além desse sentimento de protecionismo é importante lembrarmos que como estava o Rio Grande do Sul alguns anos após a Proclamação da República.O ideal positivista tinha entrado no estado tempos antes da mudança de regime e encontrou no político Júlio de Castilhos seu maior defensor. No entanto, o positivismo de Castilhos era uma adaptação bem singular do positivismo de Comte. Enquanto Comte acreditava que a sociedade entraria na idade positiva, científica, através da ação dos intelectuais, principalmente os positivistas, Castilhos considerava que o meio para se chegar á essa época de maior esclarecimento seria através da ação de um Estado forte.

Júlio de Castilhos
Acontece que existia também aqueles que não acreditavam no autoritarismo de Castilhos. Seu ideal era mais liberal, desejavam mais autonomia para a elite regionais. Os federalistas, no entanto, eram perseguidos pelos seguidores de Castilhos. O senador Gaspar Silveira Martins era o seu líder e alvo dos ataques de Castilhos. Esse eterno ódio entre castilhistas e federalistas (ou entre chimangos e maragatos, como eram conhecidos) atingiu seu auge com a Revolta Federalista em 1894, quando Gumercindo Saraiva, um caudilho vindo do Uruguai, invadiu o Rio Grande do Sul com o apoio de Martins para derrotar Castilhos. O governador então pediu a ajuda do presidente Floriano Peixoto que já tinha problemas na capital com uma revolta de marinheiros (a Revolta da Armada) que mandou muitas tropas para acabar com os rebeldes. Saraiva foi capturado e degolado. Interessante que o pai de Getúlio, Manuel Vargas, lutou do lado dos republicanos enquanto seu tio por parte de mãe, Dinarte Dornelles, lutou pelos federalistas.

Tropas comandadas por Gumercindo Saraiva na Revolta Federalista de 1894.

Essa curiosidade serve apenas para demonstrar como o Rio Grande do Sul estava dividido politicamente. Essa divisão se fazia presente não só em algumas regiões, mas em todas. E nas famílias também. O historiador Bolívar Lamounier acredita que seu descontentamento em não poder reunir sua família, principalmente os parentes que mais gostava, por conta dessa luta política foio que motivou Vargas a ser uma grande conciliador.
Getúlio Vargas em sua foto de formatura, 1907.
Vargas começou seguindo os passos do pai: entrou para o Exército, mas por ser altamente desorganizado e nada acontecer onde ficou aquartelado (em Corumbá, Mato Grosso, por conta de uma possível ameaça de invasão da Bolívia) logo pediu para entrar na reserva e com o prestígio do pai conseguiu. Foi então cursar Direito na Faculdade Direito de Porto Alegre onde veio a se formar em 1907. Seus colegas de turma passaram a ser colegas de política também, caso de Oswaldo Aranha, João Neves da Fontoura, etc (mais tarde conheceria os cadetes Eurico Gaspar Dutra e Góes Monteiro, outros amigos duradouros). Se tornaram conhecidos como Geração de 1907. Em comum tinham o ideal de que o Estado devia intervir na economia e disciplinar o povo - denunciando assim a sua influência castilhista.

Borges de Medeiros
Vargas se afiliou ao Partido Republicano Rio-Grandense, templo dos castilhistas, muito cedo. Desde que Castilhos veio a falecer, Borges de Medeiros veio a substituí-lo na presidência do PRR e no governo do Rio Grande do Sul. Vargas, contudo, não o seguia cegamente. Pelo contrário, muitas vezes o criticou por suas decisões arbitrárias como impedir vereadores da oposição ou dissidentes de assumirem seus cargos. Assis Brasil, descendente político de Silveira Martins, criticava o autoritarismo de Borges de Medeiros. A gota d'água para Assis veio com a reeleição fraudulenta de Borges em 1923. Começou assim uma nova guerra civil entre chimangos e maragatos. Ao saber dessa notícia, Getúlio Vargas, então deputado federal, quis viajar imediatamente do Rio de Janeiro para lutar no Rio Grande do Sul, mas recebeu uma ordem expressa de Borges para que ficasse lá. Na realidade, Vargas ajudou mais na capital federal que no seu estado, uma vez que ele conseguiu se aproximar de deputados da oposição e de políticos de outros estados para acabar logo com o conflito e evitar uma intervenção federal. Assim em 1923 é selado na fazenda de Assis Brasil o Acordo de Pedras Altas, onde fica definido que Borges de Medeiros não poderá mais se reeleger.

Getúlio Vargas lidera a Junta Revolucionária que chegou ao poder em 1930
Nas eleições para governador em 1926, Borges indicou Vargas. Reconhecido por sua atuação no Acordo de Pedras Altas, Vargas conseguiu ser eleito e conciliar chimangos e maragatos em seu governo. Pelo menos assim, o Rio Grande do Sul naõ sofreria mais com guerras civis. O objetivo de Vargas era justamente fortalecer o estado para, unido, reinvindicar um papel de maior importância na política nacional - temos que nos lembrar que nesse período, as oligarquias mineiras e cariocas dominavam a política federal. Castilhista que era, Vargas reprovava a Constituição republicana de 1891 pois construiu uma política federalista, onde cada estado tinha autonomia, sendo que isso possibilitava assim que os estados mais fortes se sobresaíssem e dominassem os demais, como de fato veio a ocorrer. Portanto, a política nacional precisava de um Estado forte que equilibrasse os poderes regionais. Vargas aprendeu com sua carreira política do Rio Grando do Sul que para conseguir esse objetivo algumas concessões precisariam ser feitas. Como um equilibrista, ele aprendeu a conciliar os interesses de duas correntes políticas rivais há décadas. Foi essa habilidade que conquistou no Acordo de Pedras Altas que lhe seria útil anos depois quando conseguiu chegar ao Palácio do Catete. Vargas construiu o que Boris Fausto chama de um Estado de Compromisso, ou seja, um governo que se compromete com vários grupos sociais para evitar conflitos e assim conseguir seu apoio para suas medidas. Isso explica como personagens tão diferentes se reuniam em torno e sua figura, como o liberal Oswaldo Aranha, o tenentista João Alberto Lins, o fascista Lourival Fontes, o líder industrial Roberto Simonsen e os líderes sindicais.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Ode á borracha

Já que falamos sobre Álvaro Maia e seu sonho pela volta dos tempos do boom da borracha, colocarei aqui um de seus poemas, esse sobre a seringueira.

SERINGUEIRA

Seringueira (Hevea Brasiliensis) - foto: Washington Lins.
 Álvaro Maia

Ó gérmen do celeiro, ó bendita semente,
que trazes no tecido o vigor destas zonas,
brota, deslumbra, mostra o delírio fremente
das florestas, dos céus, dos rios do Amazonas.
Quantas bênçãos de luz nao te brilham nas franças,
que harmonizam de dia o rincão que adoramos...
Resplende em tua fronde um fanal de esperanças,
solta hosanas a noite o oboé dos teus ramos...
Rainha poderosa imperando na mata,
com tua ardente seiva o terreno enriqueces...
E, às carícias do sol e aos luares de prata,
esbanjas a bondade, entreabrindo-te em preces ...

És a imagem ideal do crescer formidando,
do holocausto divino em favor de quem chore...
Dão-te golpes na casca e, em resposta, cantando,
dás teu leite e teu pão, que são gotas da aurora...
Sacodes tua copa aos clamores do vento,
ofereces ao solo o teu pólen fecundo...
Sorves pela raiz o abençoado alimento
para dar alimento aos que vivem no mundo...
Ó florestas, ó céus, ó rios do Amazonas,
estacai um momento e, em delirio fremente,
levantai orações ao porvir destas zonas,
ao galho, à folha, à flor, ao perfume, a semente ...

Uma liderança política cabocla

Álvaro Maia
O título pegamos emprestado de Eloína Monteiro dos Santos. Segundo ela, Álvaro Maia poderia ser definido como uma liderança política cabocla. Mas quem é Álvaro Maia?
Filho de um cearense com uma amazonense, Álvaro Botelho Maia nasceu no seringal Goiabal no interior do Amazonas em 1893, época do auge da produção gomífera. Seus pais se mudaram para a capital e lá ele cursou o ensino secundário no prestigiado Ginásio Amazonense D. Pedro II. Se formou em Direito pela Faculdade de Direito do Recife e retornou ao Amazonas um ano depois. Maia gostava muito de escrever, principalmente poemas. Inspirado pelo parnasianismo, escreveu muitos sonetos sobre a vida amazônica.
Alguns anos depois da Revolta Tenentista de 1924 em Manaus conseguiu um emprego na prefeitura como secretário e posteriormente como secretário de Educação e Cultura. Entre os saraus e as reuniões burocráticas, Álvaro Maia passou a ser tornar cada vez mais reconhecido em Manaus como um homem talentoso e carismático. O auge desse reconhecimento viria em 1930, quando Getúlio Vargas o indicou como interventor federal no Amazonas. Apontado por muitos jornalistas, como Assis Chateaubriand, como um homem carismático e patriótico, Getúlio Vargas não tardou em nomeá-lo. Seu mandato foi breve, terminou em 1933, mas retornou ao governo do Estado em 1937, permanecendo dessa vez até a queda de Vargas do poder em 1945.
Álvaro Maia se tornou símbolo não só do Estado Novo, mas da elite amazonense. Em 1923, nas comemorações da adesão do Amazonas á indepedência do Brasil, o jovem Álvaro Maia recitou um poema que tinha composto no palco do Teatro Amazonas. Chamava-se Canção de Fé e Esperança. Fé no Amazonas, que tinha já presenteado o Brasil com muitos heróis e alcançado um progresso considerável com a borracha. Esperança de poder reerguer esse seu status mais uma vez, já que na época em questão (década de 1920) a borracha se encontrava em retração graças ao surgimento das plantações de seringueira na Ásia. Caberia aos jovens essa ação de reerguer a honra do estado. Eles deveriam fazer isso inspirados pelo patriotismo e pela tradição local.

Buzina dos Paranás, 1958.
Álvaro Maia tornou-se conhecido por iniciar um movimento cultural e político chamado por ele de "glebarismo". Glebarismo, a defesa da gleba, é nada mais que o regionalismo, a valorização de sua região. Por isso em seus livros dedicou-se a retratar a vida do amazonense, como o fez em Beiradão e Buzina dos Paranás. Álvaro Maia elege como o verdadeiro representante da cultura amazonense o caboclo, a união do colonizador (português) e colonizado (indígena).

Cartão postal de Manaus, 1910.
Curiosamente, o ponto alto da cultura amazonense era tido como a Belle Epoque manauara, justamente um período em que a sociedade local se sujeitou á valores culturais europeus. O historiador Marco Aurélio Paiva, investigando o cinema de Silvino Santos, cria a tese de que a maior característica do intelectual amazonense nas décadas seguintes ao fim da Belle Epoque era demonstrar ao resto do mundo que o Amazonas, embora se encontrasse meio "estagnado", era uma região que alcançou progressos memoráveis, sendo o maior deles o domínio sobre a natureza amazônica. Lademe Corrêia Sousa acredita que esse Amazonas criado por esses intelectuais, sendo Álvaro Maia um dos principais deles, era não só uma forma de propaganda, mas uma maneira de pedir ao governo central que os ajudasse. Seria uma obrigação cívica do Estado ajudar a recuperar o auge do progresso amazonense, a Belle Epoque.
O objetivo maior da política de Álvaro Maia foi justamente esse, de voltar aos "tempos dourados" do boom da borracha. Tanto é que medidas relacionadas á outro tipo de atividade, como a indústria foram adiadas, uma vez que a elite local ainda tinha esperança de que a borracha voltasse a ser o motor da economia amazonense. Maia acaba se frustrando, pois o governo varguista não comprou sua idéia. Apesar de em discurso pronunciado em Manaus alguns anos depois do golpe de 1937 em que defendia a volta da economia gomífera, Vargas não estava interessado em  fortalecer o extrativismo. Sua preocupação maior era a industrialização e o Sudeste.

Assim, em 1942, com a Campanha da Borracha para Vitória, Álvaro Maia e boa parte da elite amazonense vêem uma chance de se reerguer com os Acordos de Washignton. No entanto, a campanha organizada pelo Estados Unidos e que contava com o apoio de Vargas era algo, desde o início, êfemero; duraria só o tempo em que as plantações de seringueira da Ásia estivesse sob o domínio dos japoneses. Em 1945, com o fim da guerra, a campanha também se acaba, bem como a esperança da elite amazonense.

Plínio Coelho
Álvaro Maia continuou sendo uma figura importante na política e literatura amazonense após o fim da Era Vargas. Mesmo não ocupando mais o cargo de governador, sua figura ainda era hegemônica na cidade. Os primeiros abalos á sua imagem virão com o surgimento de lideranças trabalhistas como Plínio Coelho e Gilberto Mestrinho no começo dos anos 50. Pelo seu apelo popular e seu ideal desenvolvimentista, essas lideranças vão pouco a pouco adquirindo prestígio na capital e as eleições passam a ser vistas como uma luta entre o "novo" e o "velho", sendo este último representado pelo estado-novismo de Maia que viera a falecer em 1969, enquanto ainda exercia o cargo de senador.
Uma das teses de Eloína Monteiro dos Santos é de que Álvaro Maia não conseguiu efetivar seu projeto político de ressuscitar a Belle Epoque (embora tenha feito algumas medidas urbanísticas que seguem essa linha) o que o fez se refugir na literatura. Seu sonho se materializou somente na literatura. Maia continuou escrevendo sobre o homem amazonense, mas imprimindo em seus livros agora esse sonho de voltar á essa época ideal que foi a Belle Epoque. O que orientava sua vida política e literária, portanto, era essa valorização da cultura amazonense e uma tentativa de reerguer o momento em que ela atingiu o seu auge, na sua visão.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão...

Beato na Bahia, Pierre Verger.
Uma figura, dentre tantas, me chama muito a atenção quando se trata da História do Brasil. A figura do beato.
Sempre achei estranho e bizarro um homem envolto em roupas pobres e velhas a vagar pelo mundo profetizando o dia e a data do apocalipse. Bizarro e medonho, porque, afinal, vai que o homem sabe do que está falando!...
Mas essa é apenas uma representação sobre o beato. Uma representação construída pela literatura e que continua até hoje em nossa mente. Figura aliás comum em nossa história, mas só despertamos para sua existência após o caso de Canudos. Se Euclides da Cunha não acata a idéia defendida pelo governo de que Antônio Conselheiro era um conspirador monarquista, tampouco o valoriza. Na visão do escritor e jornalista, Conselheiro era um grande manipulador e um louco.
Euclides e muitos intelectuais de seu tempo conviviam com a questão da "civilização versus bárbarie". Enquanto os centros urbanos (no Brasil, localizados em sua maioria do litoral) eram vistos como estâncias da civilização, onde os ideais burgueses e europeus (tidos então como padrão de civilização) podiam ser cultivados, o campo era o seu oposto. Lá os homens viviam em meio á lei da selva, viviam como animais.
Os habitantes das cidades, o caso de nossos intelectuais, não conseguiam enxergar uma racionalidade sequer nos movimentos messiânicos que surgiram no país. Hoje, contudo, a dobradinha "civilização/bárbarie" está sendo revisitada. Hoje olhamos para esses movimentos com curiosidade, procurando achar a sua racionalidade, a sua razão de ser, a sua dinâmica. Logo, o beato passa a ser um personagem muito menos obscuro.

Beatos: boneco feitos em goma de mandioca por Demóstenes Fidélis e Lusyennir Lacerda.
Se entendermos a religião, por exemplo, como um espaço próprio munido de suas próprias regras, como o faz Pierre Bourdieu, onde existem os possuidores do conhecimento religioso (os sacerdotes) e os consumidores desse conhecimento (os leigos), o beato pode ser localizado justamente entre estes dois personagens. O beato faz sua própria interpretação do conhecimento religioso pregado por determinada doutrina e seus sacerdotes, por isso ele tem um cárater meio subversivo. O beato é o sacerdote popular, aquele que faz um releitura da religião que pode ser adotada ou não pelos leigos.
Mas tomemos cuidado: nem todo beato se auto-proclama messias e justamente por isso nem todo movimento dito messiânico é messiânico.
Exemplos? O movimento em torno de Padre Cícero Romão desde que fez uma hóstia sangrar na boca de uma beata é enquadrado na leva de movimentos messiânicos que surgiram durante os primeiros anos da República. Ora, Padre Cícero era um místico, mas não se proclamava um salvador da Humanidade, tampouco queria romper com a Igreja. Boa parte de sua vida foi uma tentativa de obter o reconhecimento da instituição. Claro que por muitos de seus devotos era idolatrado como um santo vivo, mas estudos nos demonstram um homem que se entendia mais por profeta que messias.

Estátua construída em Juazeiro do Norte atrai todo ano milhares de devotos do "Padim Ciço".
Aliás, o que causou a explosão de tantos movimentos do tipo (Juazeiro, Canudos e Contestado, respectivamente) num mesmo período? Simplesmente a fusão de elementos estruturais com fatores conjunturais: o quadro de distância entre Estado e Igreja para com o povo no interior do Brasil se agravou com a crise de poderes locais e o movimento de romanização (defesa do ortodoxismo católico) dentro da Igreja. Além disso, há também as condições propícias de cada local: no Contestado havia a disputa entre os governos estaduais por uma fronteira e a expulsão de moradores dela para a construção de uma ferrovia, enquanto em Juazeiro havia uma igreja débil e reminiscências de uma grande seca, por exemplo.
Outro alerta: o Nordeste não é o local por excelência dos movimentos messiânicos. Essa imagem foi construída graças aos dois episódios marcantes de Juazeiro e Canudos. Talvez o Nordeste tenha uma maior proporção de beatos (não sei, nunca ninguém fez uma estimativa do tipo) e movimentos do tipo por conta da forte presença do sebastianismo, mas essa é apenas uma suposição. Alerto para a existência de figuras parecidas com eles no Sul e Sudeste e não só no campo como na cidade também. Não é tão bizarro assim nos esbarrarmos em algum pregador popular pelas ruas dos grandes centros urbanos. Me vêem á mente o nome do Profeta Gentileza que andou por São Paulo e Rio de Janeiro divulgando sua mensagem de paz.

Profeta Gentileza
Aliás, a questão da mensagem também é importante. O beato, seja qual for, cria sua mensagem embasado na religião para criticar a realidade em que vive. Assim como Gentileza criticava o mundo indiferente e sombrio das grandes cidades, Antônio Conselheiro também criticava o sertão por onde circulou não só por conta das injustiças dos coronéis como principalmente por conta das medidas instaurada pelo novo regime (republicano) e pela distância entre os ritos católicos oficiais e a devoção popular. Quando diz que o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão, Conselheiro pode estar constatando que o mundo virou de cabeça para baixo e não apenas fazendo uma profecia apocaliptíca.

Sertão do Vaza-Barris (onde o arraial de Canudos foi construído) 100 anos depois de sua destruição (em 1997) foi retratado pelo fotógrafo Evandro Teixeira: as ruínas do arraial foram banhadas pelas águas da represa de Sobradinho - o sertão realmente virou mar?
Vimos acima, que poucos movimentos foram realmente milenaristas e messiânicos, como o caso de Contestado ou então da Pedra do Reino (movimento de cunho sebastianista que exigia sacríficios em nome da volta do "Encoberto" D. Sebastião que foi popularizado pela pena de Ariano Suassuna e seu personagem principal Pedro Quaderna).
Outro ponto muito interessante é que os movimentos messiânicos não começam no Brasil necessariamente com a colonização. Muitos povos indígenas, principalmente os que viviam no litoral, realizaram movimentos do tipo, onde um líder religioso ("pajé", "caraíba", etc) arrebanhava um séquito de seguidores na sua procura pela Terra Sem Mal. Tais movimentos explicam as levas de migração indígena que povoaram em certas regiões o interior do Brasil. Um caso famoso é o do povo Tupinambá que após serem expulsos pelos conquistadores (portugueses e franceses) de suas terras passam a subir a costa brasileira até chegarem na região do atual Maranhão, lá, segundo alguns cronistas, uma parte desse povo seguiu um caraíba que acreditava que a Terra Sem Mal se encontrava no interior da floresta amazônica. Os Tupinambá subiram o rio e vieram a se instalar numa ilha que se tornaria conehcida posteriormente como Parintins.

Os Tupinambás em ilustração do livro do viajante alemão Hans Staden.
É importante fazer duas ressalvas aqui: o conceito de messias, noção judaico-cristã, é similar ao do caraíba, termo tupi, mas não totalmente idêntico. O caraíba leva seu povo, quando esse se encontra em uma situação terrível, para o paraíso, que para as sociedades indígenas brasileiras se encontra na terra. Essas mesmas sociedades não tem em sua cultura a noção de apocalipse, portanto, a procura pela Terra Sem Mal não é o ponto final da história. A religião indígena nesse sentido é muito menos transcendental que a judaico-cristã. Enquanto o judaísmo ainda procura seu verdadeiro messias, o cristianismo acredita já ter achado-o, esperando somente que ele retorne e traga com ele um mundo justo, onde os maus serão punidos e os bons serão recompensados. Esse seria o fim da história mundana e o começo da história religiosa, onde, paradoxalmente, a vida seria eterna.
Afirmamos acima que o beato, inspirado pelo judaísmo, cristianismo ou até pelo sebastianismo, parte sempre de uma crítica á situação em que vive. Em contraposição á essa situação de injustiça, o beato se apóia no mundo transcendental, na religião. O beato renuncia justamente por isso dos prazeres mundanos (daí que muitos são representados como senhores de aparência frágil, mal-trapilhos, com longas barbas), ele deseja se unir ao mundo espiritual e tentar fazê-lo se sobressair ao mundo material em suas pregações. No caso dos caraíbas, existe essa crítica á uma realidade injusta, mas o mundo ideal não é procurado somente na espiritualidade, mas na própria geografia. Espiritualidade e materialismo, na cultura indígena, não estão divorciadas, pelo contrário, andam juntas. Por isso, a Terra Sem Mal está acessível á todos que se disponham a andar pelos sertões.
Eu gostaria de concluir, destacando que esse texto não pretende ser uma espécie de "tratado geral sobre os beatos e manifestações religiosas no Brasil" ou algo assim. Apenas estou discutindo alguns conceitos básicos de como os monges populares e movimentos messiânicos foram representados. Procurei relativizar alguns lugares-comuns quando se trata de religiosidade popular, mas com o intuito de fornecer uma base para uma discussão futura mais precisa. Não peço, portanto, que sigam minhas reflexões como uma procissão. Me contento com o diálogo, com contribuições. Sejam de quem for, beatos, caraíbas, messias...

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Lições de Mestre Capistrano

Capistrano de Abreu (1853-1927)
O historiador cearense Capistrano de Abreu é geralmente tido por muitos historiadores atuais como o pai da concepção moderna de história no Brasil. Antes de falarmos de Capistrano temos que falar da concepção moderna de história e do contexto deste historiador.
Já existia antes do Renascimento uma concepção de história tida como clássica, pois se inspirava nos grandes historiadores gregos (como Heródoto). Essa concepção enxergava a história como uma fonte de lições para a vida (daí seu nome História Mestra da Vida). Em nome de um valor, os fatos históricos eram desvirtuados. Essa oncepção começa a perder espaço em meados do século XIX, quando a História se torna ciência e surgem pelo mundo vários pesquisadores que propõem métodos mais críticos para o ofício do historiador.
A concepção moderna de história é aquela que preza pela verdade, por isso se utiliza da crítica ás fontes e da narrativa para apresentar suas teses. Essa concepção ainda acredita ser possível ser imparcial e objetivo, mas não enxerga os documentos como provas irrefutáveis em si (como os positivistas).

Francisco Iglésias
O historiador mineiro Francisco Iglésias utilizava muito uma periodização sobre a historiografia brasileira. Ele a dividia em três períodos: o primeiro engloba os cronistas e viajantes, desde o século XVI até o começo do XIX, já o segundo toma boa parte deste século e as duas primeiras décadas do século XX, enquanto o último período se inicia justamente em 1930 com as reformas educacionais e o pensamento investigativo de nossos grandes intérpretes (Freyre, Holanda, Prado Jr.).

O jovem Capistrano de Abreu.
Capistrano de Abreu se enquadra no segundo período. Nascido em 1853, na província do Ceará, se mudou com 22 anos para a então Corte do Brasil, o Rio de Janeiro. Graças á recomendação de um famoso conterrâneo, José de Alencar, conseguiu um emprego na Livraria Garnier, prestigioso espaço intelectual carioca. Lá, o jovem Capistrano começou a escrever críticas literárias, algumas contra Sylvio Romero e suas teorias sobre o cárater nacional.
A partir de 1876, gradativamente sai da crítica literária para a pesquisa histórica. Ganha notoriedade ao escrever duas homenagens póstumas; uma ao velho amigo José de Alencar e outra ao historiador Francisco Adolfo Varnhagen, que Capistrano considerava como mestre.

Francisco Adolfo Varnhagen, Visconde de Porto Seguro.
Varnhagen, que tinha ganho o título de Visconde de Porto Seguro, é considerado o pai da historiografia brasileira. Seu livro História Geral do Brasil foi a primeira tentativa de se escrever um resumo da história do país, desde seu descobrimento até o momento em questão. Varnhagen, contudo, unia ao seu fetiche pelos documentos (na expressão de R. Colingwood sobre esse ideal positivista) sua defesa da colonização e, consequentemente, do Império. Extremamente vinculado á monarquia portuguesa, o historiador enxergava a colonização como uma obra heróica, uma tentativa de civilizar esse país bruto e bárbaro.
Varnhagen construiu uma história oficial. Por isso ele é considerado por Iglésias um dos maiores nomes deste segundo período da nossa historiografia. Nesse período há a preocupação em se construir uma identidade nacional, por isso a história oficialista se torna predominante. Varnhagen foi o inaugurador dessa "história dos vencedores", mas o maior propagador desse gênero foi com certeza os Institutos Históricos e Geográficos espalhados pelo país. O primeiro deles foi fundado em 1838, por honoráveis membros da elite política imperial fluminense - nascia assim o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB).

Capistrano, que tinha por mestre Varnhagen e que colaborou para alguns IHGs, então pode ser classificado como um historiador oficialista, que guarda uma concepção clássica de história? Não. Capistrano venerava Varnhagen por sua valorização das fontes e sua preocupação com a identidade nacional, mas criticava o mestre justamente por essa sua falta de imparcialidade. Além disso, Capistrano não estava interessado em construir uma identidade nacional, como seus pares, mas em descobrir a verdadeira identidade brasileira (sentimento esse que uniu os membros do terceiro e último período, os intérpretes do Brasil e os universitários). Fora um grande crítico dos intelectuais dos IHGs, pois acreditava que eles era muito pomposos e pouco objetivos. Exatamente por isso propunha a criação de uma nova instituição - o Clube Taques - para intelectuais verdadeiramente comprometidos com a pesquisa histórica. Capistrano nunca conseguiu fundar tal clube, mas sua maior contribuição com certeza foi o livro Capítulos de História Colonial, publicado em 1907.

Neste livro, Capistrano mergulha nos documentos disponíveis na Biblioteca Nacional para entender como se deu a colonização do sertão. O historiador cearense acreditava que o grande vazio historiográfico era o sertão, pouco se falava dele (e de certa maneira, na época ainda se olhava mais para o litoral "desenvolvido" que para o sertão). Capistrano era um grande crítico do ideal "civilizador" da colonização portuguesa, pois nutria uma grande simpatia para com os indígenas (tanto que viveu entre algumas tribos por um momento e até publicou um livro sobre a lingúa de certo grupo indígena) e não conseguia ver no extermínio de uma cultura um ato de "desenvolvimento".
Mesmo possuindo esse olhar crítico, Capistrano ainda possuía um ranço de etnocentrismo: pelo fato da maioria das etnias nativas serem ágrafas, não possuírem escrita, ele considerava que a verdadeira história do Brasil começou com o descobrimento, repetindo assim algumas das afirmações de seu mestre.
Capistrano defendia uma história-síntese, que falasse do Brasil desde o descobrimento até os dias atuais, mas não conseguiu seguir este objetivo, se concentrando na história colonial. Sua análise desconfiava dos discursos de muitas fontes, ao contrário de Varnhagen, e exatamente por isso em seu livro apresenta outros pontos de vista possíveis. Em se tratando de estilo, o livro magno de Capistrano lembra muito um ensaio, por sua fluidez e erudição, também diferindo assim do estilo seco e arrastado de Varnhagen.

Ângela de Castro Gomes
A historiadora Ângela de Castro Gomes considera Capistrano como o pai da concepção moderna de história no Brasil justamente por seu método crítico e por sua narrativa compatível com a pesquisa. Ricardo Benzaquen de Araújo lembra que seu estilo aproximava-o mais dos intérpretes do Brasil que viriam a seguir, que produziram seus trabalhos em forma de ensaios, do que os textos burocráticos do IHGB. O reconhecimento de Capistrano de Abreu, contudo, é recente. Em sua época, Varnhagen ainda era o grande nome na historiografia e o IHGB representava o que havia de "moderno" em se tratando de história no Brasil. A influência de Capistrano ainda era pequena. Aumentou consideravelmente após a publicação de Capítulos de História Colonial. Quando veio a falecer em 1927, Capistrano era um homem relativamente pobre e conhecido.

Se os historiadores hoje o reconhecem isso diz também muito sobre eles. A historiografia atual possui como denominador comum justamente essa vontade de fazer uma "história dos vencidos" que vá de encontro á história oficial. E Capistrano tentou fazer uma "história dos vencidos", mas não como forma de confrontar a "história dos vencedores", não era esse seu objetivo. O que lhe movia era a curiosidade de conhecer realmente o Brasil e não representá-lo como vinha fazendo os demais "historiadores". Essa tentativa de construir uma história mais realista o levou a criticar a "história dos vencidos". No entanto, Capistrano nunca achou que fosse possível ser capaz de entender completamente essa verdadeira história. A tarefa deveria ser continuada pelos futuros historiadores. Por isso, Capistrano também é tomado como modelo do historiador ideal: aquele que procura compreender a totalidade da realidade histórica, contudo, ciente de sua pretensão e de suas limitações, sabe que sua contribuição nunca é definitiva e sua missão deve sempre passar á diante.

domingo, 22 de maio de 2011

Ler é preciso!...

Quadro de Johanna Harmon.
Conheço muita gente que se arrepende de ter entrado na faculdade por causa da carga de leitura. Também conheço muita gente que não sabe como interpretar textos.
A leitura faz parte da educação, uma vez que a nossa cultura (ocidental) é baseada na escrita. Mesmo quem se dedica á matemática tem que se prender á leitura dos enunciados e sabemos que uma frase mal interpretada cria um verdadeiro problema, seja nas Ciências Exatas ou nas Ciências Humanas.
O Brasil é um dos países onde mais existem analfabeto funcionais, ou seja, aqueles que sabem ler e escrever parcialmente, ou "o básico" como eles mesmo dizem. Se o próprio ato de ler já é fraco, imagine então o ato de interpretar textos.
Interpretar e analisar são atos que exigem autonomia e responsabilidade. São atos que devem ser estimulados justamente para criar um sujeito crítico. Se a função da educação é, como discutimos aqui antes, formar indivíduos independentes e críticos, então a leitura tem um papel fundamental não só na universidade como em toda escola.
O que está acontecendo hoje é a consolidação do analfabeto funcional, aquele que só sabe assinar o nome e não sabe distinguir em um texto uma frase irônica de uma incisiva. Ler incentiva a escrita; o contato com os mais variados tipos de texto ajuda a entendermos os mais variados estilos e formas discursivas. Esses estilos e formas discursivas são importantes por quê, você me perguntaria. Ora, a escrita é uma forma de se expressar. Todos nós precisamos construir nossa forma de expressão, seja através das imagens, dos sons, etc. A escrita é uma das mais utilizadas e mais importantes. A escrita exige um ordenamento de idéias e um esclarecimento que ajuda e muito as pessoas a se expressarem melhor. Um sujeito que não sabe se expressar é um sujeito silenciado, que vive ás custas da voz dos outros, ele nunca será independente.
Todo texto carrega uma mensagem. Nem sempre ela está clara. Você como leitor tem de decifrá-la e para isso deve estar ciente dos muitos recursos que um autor pode utilizar. Entender o contexto em que esse autor escreveu pode te ajudar também a encontrar sua real mensagem. Ler, como podem ver, é um exercício de investigação.
Mas só ler não basta. Educação não é só leitura ou escrita, mas um pouco de tudo. A escrita é apenas uma ferramenta para nos entendermos, mas pode ser também um instrumento educacional se usada como maneira de estimular a expressividade e criatividade dos alunos. Mas ela deve vir sempre acompanhada de outros instrumentos que favorecam o despertar da autonomia desse aluno. Não podemos nos esquecer e menosprezar as demais formas de expressão.
Um aluno que consegue captar as mensagens de textos e imagens e que sabe se expressar bem é um exemplo sim, mas devemos ter em mente que estas características devem ser constantemente valorizadas e preservadas. Deve-se criar essa hábito, como muitos dizem. Um aluno que sabe interpretar textos não é um aluno 100% autonômo, mas já é alguma coisa. A semente foi plantada. Depende dele se a leitura e a escrita será cultivada.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O enigma de Canudos II

A historiadora Jacqueline Hermann, em um artigo para uma coletânea de trabalhos sobre o Brasil Republicano organizado por Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado, nos dá algumas pistas sobre Canudos.

A historiadora Jacqueline Hermann, ao lado do historiador Bruno Cerqueira, fala em Simpósio do Instituto D. Isabel.
Jacqueline tem como objetivo nos apresentar as interpretações que foram feitas no decorrer dos anos pelos historiadores sobre os movimentos messiânicos populares (Juazeiro, Canudos e Contestado). Sua tese é que estes movimentos tiveram um fator em comum: a situação da Igreja Católica durante a República Velha.
A proclamação da República foi um alívio para a Igreja que desde o império se via limitada pelo sistema de Padroado, onde o imperador poderia intervir constantemente nas ordens do Vaticano. No entanto, a Constituição de 1891 assustou a Igreja Católica pela quantidade de medidas seculares, como o casamento civil, o ensino público laico, etc. O medo de perder sua influência e a posição em que se encontrava a instituição no momento (de combate ás ideologias modernas como o liberalismo e o comunismo, através do que ficou conhecido como movimento de Romanização) levou a Igreja a criticar veemente o novo regime.

D. Antônio Macedo Costa, bispo do Pará: maior defensor da Romanização e crítico da República.
No entanto, depois dos primeiros e confusos anos de República, ambas as partes parecem ter chegado a um acordo: o poder da Igreja não foi mais contestado pelo governo e a Igreja parece ter se expandindo com o consentimento das oligarquias que governavam o país (nessa época aumenta-se o número de dioceses no Brasil, seminários são construídos e até uma elite dentro da Igreja se aproxima das elites locais).
Para Hermann, esse fortalecimento institucional não foi acompanhado de uma aproximação com o povo. A Igreja podia ter assegurado sua influência, mas ela não tinha controle ainda sobre seus fiéis. A maior prova são estes movimentos de que falamos.

Ilustração do Arraial de Canudos.
Depois de analisar as interpretações sobre Canudos (euclidiana e "progressista"), a historiadora tenta desvendar o real caráter do movimento interpretando as prédicas (os pequenos livretos) escritos por Antônio Conselheiro e confiscados pelo governo. Essas 49 prédicas foram consideradas por Euclides da Cunha como pobres papéis de um desvairado, enquanto o historiador Duglas Monteiro as interpreta como a defesa das suas concepções políticas e sociais e de suas crenças religiosas por um sertanejo letrado. Delas, a maioria fala sobre as dores de Maria, algumas sobre os dez mandamentos, um texto versa sobre passagens dos evangelhos e os demais sobre assuntos diversos, circunstanciais - dentre eles a República.

O corpo de Antônio Conselheiro, 1897.
O que Hermann enxerga nessas prédicas não é uma proposta de reforma agrária ou loucura pura, mas uma defesa de medidas que a Igreja, desde o Concílio de Trento séculos antes, tentava implantar no Brasil, como a valorização da missa, da confissão e do culto á Virgem Maria. Conselheiro não é um revoltoso, ele ceita sua sujeição á Deus e á sua representante na terra, a Igreja Católica. O que ele não suporta na República é justamente esse cárater laico, afinal nosso governante não é mais sagrado pela Igreja, ele não tem mais respaldo de Deus, mas do voto. Para ele, "todo poder legítimo é a emanação da Onipotência eterna de Deus e está sujeito a uma regra divina (...)". A historiadora então fornece sua própria interpretação do movimento: a luta de Antônio Conselheiro não era messiânica, pois ele não se arrogava esse status (talvez a população tenha criado esse vulto), mas era uma espécie de combate ao novo regime exatamente por ele ser laico. Conselheiro aceitaria a sujeição, desde que o governante fosse sagrado pelo poder divino através da Igreja. Segundo Hermann, "a ética conselheirista é a do sofrimento resignado ás leis supremas, e em seus escritos não há qualquer promessa de vida eterna, fim dos tempos, previsões escatológicas ou salvação incondicional".

A Igreja de Santo Antônio no Arraial de Canudos.
Ao final de seu artigo, a historiadora propõe que as variadas interpretações sobre esses movimentos sejam vistas não como erros, mas como contribuições para um entendimento mais completo sobre eles. Os historiadores não discordam sobre a origem destes movimentos: a distância entre a Igreja Católica e o Estado para com o povo. Todos divergem quanto á natureza desses movimentos: se era de cárater político, religioso, social ou cultural? Jacqueline Hermann aponta que estas interpretações possuem seus defeitos e suas qualidades, afinal todas são filhas do seu tempo, mas que devemos ter em conta principalmente a sua contribuição para um maior conhecimento sobre estes movimentos.

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O artigo em questão se chama Religião e política no alvorecer da República: os movimentos de Juazeiro, Canudos e Constestado, presente no livro O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente (Da proclamação da República á Revolução de 1930). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Mas também existe um artigo muito interessante de Jacqueline Hermann na internet chamado Canudos: a terra dos homens.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

O enigma de Canudos

Por muitos anos, o Brasil tentou entender Canudos. O movimento liderado pelo carismático Antônio Conselheiro no interior da Bahia se tornou famoso dentro e fora do país. A história oficial o classificava como um movimento de restauração monarquista, no entanto um jovem jornalista mandado para cobrir o ataque derradeiro ao arraial de Canudos atacaria fortemente essa imagem com seu relato. Relato esse que se transformou num dos maiores livros da literatura brasileira - Os Sertões.

Euclides da Cunha chegou na região de Belomonte pensando que iria cobrir a repressão á uma conspiração monarquista, afinal era o que o governo dizia que se tratava. No entanto, enquanto esteve lá acabou descobrindo que não era o ideal monarquista que movia os sertanejos de Canudos, mas as palavras de Antônio Conselheiro. Euclides não viu pessoalmente o líder do movimento, apenas escutou o que falavam sobre ele. A pesquisa de Euclides não foi aprofundada e nem podia ser, já que estamos falando de uma cobertura jornalística e sabemos que no calor da hora deixamos muita coisa passar.

Euclides da Cunha
Euclides era antes de tudo um intelectual. É importante lembrarmos que no momento em questão, a passagem do século XIX para o XX, a linha central de pensamento no Brasil e na Europa era o evolucionismo. O jornalista interpreta Canudos e o sertanejo através desse viés. Segundo Euclides, o meio e a raça originou o desastre de Canudos e não a monarquia. O sertanejo é um personagem que herdou alguns defeitos das raças que o formaram (européia, africana e indígena), mas que para sobreviver ao isolamento imposto pelo Estado e as péssimas condições de vida impostas pelo sertão tornou-se uma criatura forte e rude, mas pouco desenvolvido intelectualmente. Assim, um louco como Antônio Conselheiro poderia facilmente manipulá-los.

Na Ilustração de Angelo Agostini, Antônio Conselheiro impede que a República chegue ao sertão.
A interpretação de Euclides é totalmente determinista e se faz sentir na estrutura de seu livro: ele se inicia falando do meio (A Terra) e em seguida do sertanejo (O Homem), para enfim falar da guerra de Canudos (A Luta). Essa estrutura demonstra a tese de Euclides: o meio criou esse homem que criou essa luta. Ele absolve o sertanejo da culpa, afinal a culpa é do meio, mas continua condenando o movimento. Para ele, Canudos era um movimento de pura bárbarie. Interessante é que já existia uma oposição na maioria dos pensadores da América Latina entre a bárbarie e a civilização. A bárbarie estaria no interior, no sertão, e a civilização no litoral, nas cidades.
Ou seja, Euclides tenta compreender o movimento, nisso ele se diferencia dos demais jornalistas da época. No entanto, ele não é capaz de enxergar uma racionalidade nele. A causa estaria simplesmente no meio e não nos homens, afinal estes homens são bárbaros. É preciso lembrarmos os limites de Euclides: ele é um intelectual embebido do ideal evolucionista, republicano convicto e um homem eminentemente urbano. Isso tudo influenciou sua interpretação.
O peso de Euclides para as nossas Ciências Sociais, contudo, é enorme. Ele é o primeiro a tentar entender a complexidade do movimento. Além disso, Euclides era um intelectual muito crítico: no seu livro mais famoso ele não critica somente o nordestino por ter sido ludibriado por Conselheiro, mas também o governo por não acabar com esse isolamento. A missão do governo seria civilizar o sertão e isso em nenhum momento foi pensado, em sua opinião. Com ele se inaugura uma visão corrente em nossa sociologia: a idéia de dois Brasis. O Brasil real e o Brasil oficial, um que guarda nossa verdadeira identidade e outro que pensa forjá-la.

Maria Isaura Pereira de Queiroz
Por muito tempo, seu livro é tomado como a obra definitiva sobre Canudos - demorou-se a perceber as limitações de Euclides. Na década de 1960 começa-se a questionar sua visão: substituímos o determinismo geográfico pela condição social. O homem deixa de ser instrumento do meio para ser um sujeito histórico. Canudos não é mais vista como um episódio de loucura no interior do sertão, mas como uma luta contra o poder dos coronéis e uma reação á miséria extrema. Canudos seria uma tentativa do sertanejo montar seu mundo ideal: possuir uma propriedade sem ter de se tornar jagunço de algum coronel. Nessa linha de interpretação vemos principalmente Maria Isaura Pereira de Queiroz e Rui Facó. Há ainda a interpretação de Duglas Teixeira Monteiro que enxerga em Canudos a defesa de uma identidade cultural através da religião que é ameaçada pela Igreja Católica que nesse momento deseja construir uma religião pura e não mais influenciada por crendices populares ou outras religiões.

A pergunta fica: o que realmente produziu Canudos? Foi o meio? A condição social? A defesa da sua indentidade religiosa? Canudos foi um enigma para o pensamento social brasileiro a partir do momento em que foi polemicamente destruída e continua sendo até hoje. No próximo post tentarei dar algumas humildes pistas sobre Canudos e suas interpretações.

A relação ambígua das disciplinas

Há um tempo atrás discutia com meu amigo Maurílio Sayão essa contradição que podemos observar em muitos professores de História que pregam a interdisciplinaridade, mas desvalorizam estudos históricos feitos por profissionais de outras disciplinas.
Ora, as maiores contribuições á historiografia não vieram pelas mãos de historiadores, mas por de geógrafos, escritores, economistas, políticos, antropólogos e até autodidatas. O historiador, apesar de não parecer, é uma profissão muito recente (afinal a história só foi reconhecida como ciência na segunda metade do século XIX). As universidades estão tentando consolidar essa imagem do profissional de história, principalmente enquanto pesquisador.
A interdisciplinaridade na prática é pouco utilizada: o diálogo com outras disciplinas muitas vezes não ocorre por causa dessa paranóia do historiador ou pela falta de incentivo dos departamentos universitários.
A proposta da interdisciplinaridade é antiga e foi divulgada mundialmente pelos membros da Escola dos Annales. Para eles, o diálogo entre os diversos tipos de conhecimento ajudaria a fornecer um painel mais completo da realidade histórica, em outras palavras, todas essas disciplinas ajudariam a formar uma história total. Muitos historiadores, entretanto, tem medo de abraçar a causa da interdisciplinaridade com medo de que a história se dilua tanto em outros saberes que acabe se transformando em tudo menos em história. Medo, aliás, racional e possível, mas que pode ser superado com uma boa dose de sensatez e esclarecimento.
O historiador deve ser desconfiado, principalmente quando se trata de fontes, mas não chegar ao ponto de ser paranóico e mesmo xenófobo em relação á material produzido por outros profissionais. O historiador tem de desconfiar de todo tipo de fonte e não só daquela que não é feita por historiadores.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Importando idéias...

O químico Lavousier já dizia: na natureza nada se cria, tudo se transforma. No mundo acadêmico também não é muito diferente.
As teorias, principalmente em História, são formuladas tendo uma determinada realidade como base o que quer dizer que em outro contexto elas não tem o mesmo peso. Por isso o maior problema do pesquisador é importar teorias para seu campo de pesquisa correndo o risco delas não possuirem nenhuma afinidade com aquilo com que se dedica.
A teoria é um instrumento que ajuda a entender a realidade, ela não deve ser encarada como a "fórmula mágica" da realidade. Muitos já tentaram enumerar leis gerais do funcionamento da história; não preciso dizer que eles quebraram a cara.
O que é tido como universal tem de ser relativizado: universal para quem? Afinal, qualquer coisa possui a marca de quem, quando e onde a fez. Mesmo que busque ser abrangente em sua reflexão ou mesmo em sua arte, o homem ainda acaba preso á sua região.
O regionalismo também precisa ser revisto. Valorizar sua região é importante, afinal ela faz parte do processo de formação da nossa identidade, mas ela não pode ser entendida como um fim em si mesma. Nenhum homem é uma ilha, já dizia o ditado.

Antropofagia: quadro de Tarsila do Amaral que representa o movimento modernista.
Assim, acredito que tanto na arte como na pesquisa devemos nos inspirar nos nossos modernistas, principalmente Oswald de Andrade. Devemos praticar cada vez mais a antropofagia, mas com moderação. Afinal, recortar e colar tudo sem nenhum critério é como montar um Frankenstein.
Hoje podemos ser profundamente antropofágicos, afinal temos uma rede forte de informação e interação com as mídias sociais e a internet. Hoje a circulação de idéias está mais fácil. Em breve podemos superar até as barreiras mentais criadas pelos séculos entre Oriente e Ocidente e nos relacionarmos com respeito, como desejava o poeta mexicano Octavio Paz.
Para aqueles que não conhecem nada de modernismo, explico: Oswald de Andrade não estava defendendo o canibalismo, mas sim uma espécie de canibalismo cultural. Ao invés do Brasil apenas importar tudo o que a Europa fazia, de agora em diante tentaríamos digerir o que vem de fora e o que temos por aqui e produzir com isso algo novo, reinterpretado segundo nossa cultura.
Não, não é o Lee Van Cleef; esse é o Giovanni Levi.
Vou dar dois exemplos aqui: a micro-história e o western spaghetti. Ambos surgiram na Itália entre as décadas de 1960 e 1970. A micro-história partiu de um sentimento de insatisfação com a história que vinha sendo feita na Europa. A história total de Fernand Braudel, para ser mais exato. Braudel propunha uma história que não se concentrasse mais nos fatos ou nos grandes personagens, mas nas estruturas, principalmente econômicas, que geravam os acontecimentos. Essa história estruturalista parecia muito determinista para alguns pesquisadores italianos como Carlo Ginzburg ou Giovanni Levi. Eles aceitavam muitos pressupostos da Escola dos Annales, como a interdisciplinaridade, a história-problema e o conceito de mentalidades, mas não concordavam com essa posição de Braudel. Por isso resolveram se concentrar em análises mais locais que mesmo assim dialogavam com o mais geral. Essas análises contavam também com um estilo mais fluído e mais literário, o que contribuiu para seu sucesso entre leitores leigos.
Esse sim é o Lee Van Cleef!
O faroeste, bang-bang ou western é um gênero conhecido por todos nós. Eu, por exemplo, cansei de ver com meu avô esses filmes. O faroeste é algo específico demais, pois ele se passa no Oeste norte-americano no tempo da expansão territorial do país, por isso vemos a chegada dos pioneiros nas suas carroças e os combates com os índios. Por esse motivo é tido por muitos diretores, como Clint Eastwood e Martin Scorcese, como um gênero genuinamente americano. O crescimento do cinema norte-americano nas primeiras décadas do século XX levou esse gênero á boa parte do mundo e muitos se encantaram com seu estilo (a idéia de mundo sem lei, com vilões inescrupolosos e mocinhos valentes). A Itália foi um desses países. Desde a década de 1920, assim como na Alemanha, diretores italianos faziam pequenos bang-bang. Contudo, a partir da década de 1960 esses filmes tomam um outro rumo: muitos diretores que participaram do movimento do neo-realismo italiano fizeram seus filmes de faroeste, levando para os sets de filmagem ângulos novos e personagens mais complexos e ambíguos. Sérgio Leone e sua trilogia de filmes sobre punhados de dólares (que se iniciou, aliás, com a inspiração do filme Yozimbo do cineasta japonês Akira Kurosawa) é um dos maiores exemplos. Já na época, muitos reconheciam que aquele era um gênero totalmente novo, tanto que o apelidaram de western spaghetti.
O que temos aqui? Dois movimentos (um historiográfico e outro cinematográfico) que se inspiraram em gêneros e noções estrangeiros, mas que com as técnicas e abordagens próprias (seja do neo-realismo italiano ou da história regional italiana) reinterpretaram estas idéias e as transformaram em algo novo e criativo.
O que estou defendendo aqui é que esse embate entre o que vem de fora e o que temos aqui é enriquecedor, ele nos faz pensar em novos paradigmas, mas ele tem de ser feito de forma sensata. Esse diálogo deve ser feito ou pela razão ou pela sensibilidade. Por isso, as universidades devem se comunicar mais, não só nacionalmente, como internacionalmente. Assim, o espaço de debate se torna muito maior e muito mais rico. O diálogo é fundamental principalmente no ambiente da academia. Tomemos Ginzburg, Levi e Leone como bons exemplos.

O Cavalheiro da Triste Figura e o Mundo Moderno

Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) é considerado por muitos, como o crítico norte-americano Harold Bloom, como o inaugurador do romance moderno. O objetivo desse post é demonstrar o por quê.

Estátua de Cervantes feita por J. Vancell em Madrid.
Cervantes nasceu em Alcalá, num dos muitos reinos catalãos, mas teve uma vida que não se concentrou neles. Envolvido em um duelo com um fidalgo, ainda em condições misteriosas, acaba por matá-lo e para não ser preso foge para a Itália onde entra em contato com a produção artística italiana.
É importante dizermos que nesse momento a Península Itálica está vivendo o Renascimento, movimento que se caracteriza pelo resgate da cultura greco-romana e sua adaptação para o momento em questão. Assim, a geografia de Ptolomeu foi utilizada para ajudar a entender o mundo das navegações. A técnica dos escultores gregos foi utilizada pelos pintores italianos para desenvolver a noção de perspectiva na pintura. São inúmeros os exemplos.
Muitos dizem que o Renascimento foi a primeira tentativa de uma classe que começava a adquirir poder econômico com o crescimento das cidades e do comércio (navegações): a burguesia. Os renascentistas eram homens dedicados a se afastar do passado medieval, por isso buscavam na Antiguidade Clássica um modelo diferente de cultura - um modelo antropocêntrico (em oposição ao modelo teocêntrico). Mesmo assim, o renascentista não havia se livrado de Deus, pelo contrário: estudos recentes demonstram que o Renascimento foi apenas a reconstrução e expansão do humanismo medieval, que se interessava e muito pela complexidade do homem, mas admitia a figura de Deus como seu complemento. Assim, muitos humanistas do Renascimento não estavam criticando Deus com suas idéias, mas apenas a instituição conhecida como Igreja Católica (muitos consideram que a separação radical entre humanismo e Deus se dá no Iluminismo).
Mas voltemos á Cervantes: ele também era religioso, como todo bom catalão. Em 1570, a Igreja Católica convocou vários reinos e seus súditos para ajudar a combater o Império Turco-Otomano no que ficou conhecido como Batalha de Lepanto e Cervantes foi um desses voluntários. Durante a sangrenta batalha, o escritor teve sua mão amassada e desde então passou a ser conhecido como o manco de Lepanto. Quando retorna á Itália é capturado pelos turco-otomanos e levado para uma de suas bases na Argélia, onde ficou preso por cinco anos, quando finalmente conseguiu comprar sua liberdade. Solto, decidiu voltar para a Espanha. Lá se casou e lançou em 1597 seu livro mais famoso: Dom Quixote de la Mancha. Pouco tempo depois, o banco em que pagava os impostos faliu e ele foi preso mais uma vez, dessa vez por não pagar uma dívida absurda. Sai da cadeia uma ano depois e volta a se dedicar á seus livros. Uma continuação de Dom Quixote teria sido lançada por um impostor o que faz Cervantes publicar a real continuação. Hoje os dois livros compõem um só.

Falemos do livro agora: a história começa no povoado de La Mancha, onde Cervantes passou a viver desde que voltou á Espanha. Lá vive um fidalgo que adora ler livros e trovas de cavalheiros e princesas. Esse fidalgo, Alonso Quexano vulgarmente conhecido como Dom Quixote, acaba por se deixar tomar completamente por esse ideal cavalheresco e passa a se apresentar como um cavalheiro que pretende conquistar um amor da juventude, a bela Dulcinéia de Toboso. Para apoiar-lhe em suas loucuras conta com a ajuda de um sitiante bonachão, Sancho Pança, que em sua mente se torna um nobre e fiel escudeiro. Na tentativa de reencontrar Dulcinéia, D. Quixote acaba esbarrando em uma série de situações embaraçosas, como confundir um ladrão com um injustiçado ou moinhos com gigantes e mesmo ser zombado por alguns nobres. Ao final do livro, Quixote está exausto da aventura e completamente desiludido. Volta á La Mancha onde recobra a consciência pouco antes de vir á falecer, reconhecendo a sua loucura e a loucura do mundo onde tudo está de pernas para o ar.

Cena do musical O Homem de La Mancha (1972): Peter O'Tole como D. Quixote e James Coco como Sancho Pança.
O que Cervantes está querendo criticar é esse ideal cavalheresco ao fazer troça de Quixote. Percebemos no livro que os tempos mudaram, o cavalheiro não tem mais vez nessa sociedade. O mundo está incerto e ainda se acredita em bons cavalheiros. Ser um cavalheiro andante nesses tempos, para Cervantes, era ser louco como Quixote. Essa é a mensagem. Talvez a origem dela esteja na sua desilusão para com a Batalha de Lepanto, onde lutou voluntariamente, imbuído justamente desse ideal cavalheresco, para inutilizar uma mão e ver as conquistas da Liga Santa (reinos europeus unidos pela Igreja contra os turco-otomanos) iniciarem novas guerras entre os membros da liga por conta da ganância. Talvez Cervantes tenha percebido que ser cavalheiro fosse um conto da carochinha, um meio de manipular pessoas ingênuas. Isso provaria o desconcerto do mundo, tema aliás de outro literato que possuiu uma vida cheia de reviravoltas: Camões.
A crítica de Cervantes vêem em direção á esse ideal, fruto da mentalidade medieval, e os novos tempos em que ele vivia, os tempos modernos.


Gilberto Kujawski de Mello

Getúlio Vargas

Orson Welles
 Interessante como o livro pode ser utilizado para muitas questões. Getúlio Vargas, por exemplo, adorava o livro, pois enxergava nele a oposição entre o sonhador cavalheiro e o prático escudeiro e receitava á seus filhos que tentassem ser um pouco dos dois. Seu conselho era enquanto pai e enquanto político. Para ele, D. Quixote era um manual para se fazer política como O Príncipe, sendo que sua mensagem era um pouco diferente: o bom político é aquele que equilibra a ideologia (sonho de acabar com a injustiça) com o pragmatismo (a arte de improvisar com o que se tem). O crítico Gilberto Kujawski de Mello propõe como diretriz para se viver no mundo incerto da pós-modernidade em que entramos exatamente essa moderação entre o fidalgo sonhador e o escudeiro realista, assim evitaríamos o fundamentalismo e o niilismo. O cineasta Orson Welles se apaixonou por D. Quixote, pois via nele a metáfora da condição do artista: aquele homem que enxerga o mundo de uma maneira diferente e que por tentar fazer o impossível é taxado como louco. Aliás, Welles tentou fazer uma adaptação de D. Quixote que não foi muito bem recebida pela indústria cinematográfica. Ele deve ter se identificado com o fidalgo espanhol, lutando contra moinhos de vento na tentativa de cumprir o que acreditava ser sua missão: fazer esse filme.

Harold Bloom
O crítico Harold Bloom coloca Cervantes lado a lado com Shakespeare, tendendo mais ao primeiro que o segundo. Para Bloom os dois tem estilos diferentes, mas eles propõem a se falar do homem por meio da arte, seja no teatro ou na literatura. O Cavalheiro da Triste Figura é um sonhador, procurando um amor platônico que não existe e defendendo uma missão realmente impossível. Nós com certeza percebemos a loucura dele, mas, Bloom coloca essa pergunta, será que nós percebemos realmente o que somos? Ora, podemos ser tolos ou loucos sem nos considerarmos como tal. O romance, assim, questiona nossa própria consciência: afinal, somos tolos ou apenas pensamos que não?
Outro aspecto importante é que Cervantes, apesar de sua vida cheia de revezes, faz dessa tragédia e desse questionamento uma comédia muito inspiradora. É uma tema polêmico tratado com humor. É uma combinação que vai surgindo com o Renascimento e que tomará força com a Modernidade. Em comparação com Shakespeare, Bloom destaca a valorização da amizade através da relação entre o fidalgo e seu escudeiro, ao contrário dos personagens do bardo inglês que são geralmente sozinhos e cheios de angústia.

Resumindo, Dom Quixote é tomado como o primeiro romance moderno por sua abordagem cômica e humanista e por sua crítica aos ideais antigos e contemporâneos á Cervantes. Apesar desses aspectos datarem essa obra, ela ainda assim é universal, pois trata de alguns temas que são inerentes ao ser humano como a questão da utopia ou mesmo do sentimento de desconcerto do mundo. De qualquer forma, as reações que o livro provoca varia de pessoa para pessoa, por isso recomendamos, mesmo que isso parece "clichê" demais, que leia-o e tire suas próprias conclusões.

domingo, 15 de maio de 2011

Acorda, Papalágui!

Habitante de Samoa.

Tuiávii era um líder de uma aldeia no Arquipélago de Samoa, no Oceano Pacífico, quando decidiu fazer uma viagem á Europa, pouco antes da Primeira Guerra Mundial. Quando voltou á Tiavéia, sua aldeia, suas impressões foram transformadas em livro pelo antropólogo Erich Sheurmann. Livro esse que guarda suas pontuais observações sobre o mundo do Papalágui (nome dado aos homens brancos na aldeia de Tiavéia e também título do tal livro). Vejamos sua observação sobre a relação entre o Papalágui e o tempo:

O Papalagui emprega todas as suas forças, bem como a sua capacidade de raciocínio, em tentar ganhar tempo. Utiliza a água, o fogo, a tempestade e os relâmpagos para parar o tempo. Põe rodas de ferro nos pés e dá asas às palavras, só para ganhar tempo. E porquê tanta canseira? Como é que o Papalagui emprega o seu tempo? Nunca percebi muito bem, embora, pelos seus gestos e palavras, sempre me tivesse dado a impressão de alguém que o Grande Espírito tivesse convidado para um fono.
A meu ver, é precisamente por o Papalagui tentar reter o tempo com as mãos, que ele se lhe escapa por entre os dedos, como uma serpente por mão molhada. O Papalagui nunca deixa que ele venha ao seu encontro. Corre sempre atrás dele de braços estendidos, não lhe concede o repouso necessário, não o deixa apanhar um pouco de sol. Tem que ter sempre o tempo ao pé de si, para lhe cantar ou contar qualquer coisa. Mas o tempo é calma, é paz e sossego, gosta de nos ver descansar, estendidos na nossa esteira. O Papalagui não se apercebeu ainda do que o tempo é, não o compreendeu. E por isso que o maltrata, com os seus modos rudes.