sábado, 31 de março de 2012

Ácaros criminais


Hoje o dia amanheceu misteriosamente opaco. Não consigo enxergar muito bem o que há lá fora, o que vejo são apenas manchas. Manchas em movimento. Mas aos poucos tudo foi se desembaçando e pude ver outros tempos.
A rua de casa, onde sempre repousava um bêbado ou um mendigo em suas calçadas. Aquele bando de crianças indo de um lado para o outro, empinando papagaio. Que beleza!
As nuvens passam e o tempo nubla novamente. Agora são os anos de minha adolescência que vejo logo ali. Aquele garoto magricelo e cheio de espinha, vês? Era eu. Um rapaz idealista, mas tímido. Um panfletário calado esperando que alguém fizesse sua revolução íntima. E essa pessoa acabou de chegar: Maria Adelaide. Perceba que as nuvens se foram. A sua presença tem esse efeito.
Ela amava aquele garoto franzino, ingênuo e estúpido. É o que gosto de pensar. Em uma noite estrelada me ensinou o que era amor. Mas aprendi muito mais com ela. Aprendi a ter atitude mesmo que meu cérebro implorasse de joelhos para que eu não bata em um brutamontes com o dobro da minha altura e largura que estivesse espezinhando minha garota. E também aprendi a encarar tudo com senso de humor mesmo tendo apanhado do valentão e perdido quatro dentes. Ela era uma musa, literalmente.
Mas até as musas se vão um dia e ela foi justamente no último do ano. Daquele ano maldito. Desde 1950 vivo em um blecaute. Talvez eu esteja exagerando, afinal tive vários momentos de alegria. Alguns até de intensa alegria. Mas nada se comparava a estar perto dela.
Me casei, tive um filho, consegui um emprego, mas não vejo agora lá fora nenhum pedaço do meu humilde casamento com Catarina, nem do meu primeiro dia no Departamento de Polícia. Mas o dia em que Cássio nasceu, desse me lembro perfeitamente. Estava no hospital andando em círculos, quase abrindo um fosso circular no chão da enfermaria. Então me chamaram e eu fui correndo. Catarina estava com as olheiras inchadas e os olhos vermelhos, já o meu garoto abriu o berreiro. Eu chorava. Ria e chorava. Enxuguei diversas vezes as lágrimas com o paletó. O menino já estreou no mundo com estilo: tinha uma coleção de fios de cabelo isolada na testa, como se fosse um topete. Puxou o charme do pai.
O que vejo pela janela é uma massa amorfa: uma ambiguidade de cenas, ora tristes ora felizes. Meus vergonhosos pileques na presença da família, Cássio de uniforme voltando da escola, algumas brigas no Departamento, meu filhote todo entusiasmado por estar namorando. Só o rosto de duas pessoas são constantes: a minha cadavérica face e o jovial semblante de Cássio.
Ele era assim expansivo, espontâneo, cativante. Não lembrava em nada a mãe ou eu. Ainda bem! Lembrava outra pessoa. Alguém do passado. Cássio brilhava enquanto eu nunca reluzi. Posso vê-lo ao meu lado agora, se desmanchando em sorrisos por ter passado na faculdade de Medicina. Mas os sorrisos se foram, a festa acabou, só resta eu e ele no recinto. Um filho envergonhado observando o patético e desastroso pai caído ao chão quase se afogando no próprio vômito.
Por isso não tive mais coragem de vê-lo. Não queria atrapalhá-lo. Morar fora de casa foi uma de suas melhores decisões. Uma alcoviteira e um alcóolatra: que exemplos para um garoto! Foi um milagre ele ser o que é. Aceitei o emprego de arquivista no depósito de lixo, quer dizer, no arquivo da polícia. Depósito de lixo era o apelido carinhoso que lhe dávamos. Não teve nem choro nem vela: depois de perder o respeito do filho e da corporação eu merecia.
Pense num indivíduo que atravessa a cidade, enfrentando uma multidão de pessoas engarrafadas num ônibus e duas ladeiras, só para ficar o dia todo sentado em uma sala catalogando casos que nunca serão resolvidos. O mundo pegando fogo e eu ali, num lugar onde o tempo não existe. Falava-se em revolução, em golpe, reformas de base, Deus e a família. Mas no Arquivo Geral da Polícia só se falava sobre o placar do último jogo do América, de vez em quando do Fla-Flu, até porque não dá para não falar de um Fla-Flu. Como diria Nelson Rodrigues, alguns clássicos morrem, menos o Fla-Flu.
Sim, eu lia Nelson Rodrigues. Eu sempre li muito. De Monteiro Lobato fui á Flash Gordon. Do espaço sideral migrei para a Corte de El-Rey. Do Bruxo do Cosme Velho fui á Dotoiévsky. Continuei a caminhar meus olhos por muitos outros mundos feitos de papel. Os que mais gosto, confesso, são os romances policiais e isso não se deve á profissão. Os grandes mestres sempre traçam perfis psicológicos dos seus personagens, demonstrando que para se tornar um criminoso é preciso mais do que simplesmente nascer torto. É disso que gosto: dessa dissecação do crime.
Meu pai não acreditava nessas teorias científicas de botequim sobre a origem biológica do crime. Para ele tudo isso era papo de médico frustrado por não ser policial. “Tá cheio de neguinho por aí que inventa de andar na corda bamba e quando cai diz que é culpa do Diabo”, dizia ele. . Acreditava no livre-arbítrio como a origem de todo bem e de todo mal da humanidade. Hoje até que concordo em partes com ele. Era um humilde escrivão de polícia, mas muito culto. Se duvidar era até mais inteligente que Ruy Barbosa! Ele sim era um boêmio com B maiúsculo. Acreditava no livre-arbítrio como a origem de todo bem e de todo mal da humanidade. Grande homem meu pai.
Mas enfim, falava sobre romances policiais. Conan Doyle, Raymond Chandler, Agatha Christie: eles todos são meus companheiros de trabalho. Costumo levar um ou dois deles para o arquivo, é o que me salva de morrer de tédio. Posso enxergar lá fora aquele sujeito magro e seco descendo a ladeira carregando uns calhamaços debaixo do braço, como se fosse um professor. Eu tinha até planejado escrever o meu próprio livro. Comecei a escrevê-lo em fins de setembro, mas não o conclui: vim a falecer em outubro.
Festim das Sombras, esse era o seu título, falaria sobre um crime cometido em São Paulo. Uma jovem que foi encontrada morta em uma rodovia. Sua família, tarimbada no high society paulistano, contrataria um detetive particular, insatisfeita com o rumo das investigações policiais. Esse detetive, que coincidentemente se parece muito comigo, descobriria que ela fora assassinada numa festa de arromba como parte de um ritual de magia negra feita por excêntricos milionários.
É meio bizarro, mas me inspirei em um caso real. Foi em 1962, se não me engano. O nome da jovem era Arabel Menucci. Li tudo nos jornais. Desde o primeiro momento achei tudo muito estranho: uma jovem rica encontrada num acostamento com facadas nas costas? As investigações indicaram Mário Grassi Filho, um empresário, como o autor dos crimes. O motivo era ciúmes, o fundo satânico eu inclui na minha adaptação para ficar mais chique.
Tenho um amigo que dizia: “Quando rico mata por ciúme é ‘caso passional’, quando é pobre é ‘dor de cotovelo”. Não acrescenta nada a nossa conversa, mas gostei da frase.
Á todo instante encontrava alguma coisa que precisava ser retirada ou adicionada na trama. Descobri á duras penas o quão difícil é escrever. Quando a inspiração me vinha, não tinha jeito: ou eu anotava ou tudo sumiria depois. Foi por causa disso que guardei o gorduroso papel que embalava a coxinha que comi a caminho do trabalho certo dia. Rabisquei nela o momento em que Jauvert (esse era o nome do protagonista) descobria uma pista na casa de um dos ricaços.
O que me entusiasmava era que eu poderia fazer algo de útil para a posterioridade. Imagine: “Festim das Sombras de Silo Mendes Javari é sucesso de crítica!” Claro que aí exagerei na imaginação agora, mas mesmo que a publicação não fosse expressiva já seria o bastante: ali estava um livro que em algum dia alguém o encontraria e se divertiria com ele como eu me divertia com os meus. Festim de Sombras junto com Cássio seriam as únicas coisas boas que deixei de legado.
Mas finalmente a tuberculose me venceu. Eu também dei bobeira: ficava altas horas da noite pelos bares, pegando sereno e exagerando na bebida. Aprendi uma coisa: a noite é um pouco ingrata, justo os seus maiores admiradores que são os mais castigados. Não que eu tenha sido o boêmio-mor da Lapa, mas conheci muita gente que se aproximou desse título que faleceram muito cedo. Definharam numa agonia cruel nas próprias camas ou nas macas dos hospitais. Hospitais... me dão calafrios.
Na realidade, penso que a noite seja como os antigos pensadores gregos: é dura com os excessos e simpática ao equilíbrio. Se o sujeito sabe o momento de parar de beber, sabe administrar o seu sono e sabe como escapar de furadas então viverá mais que todos nós, funcionários públicos. E olha que funcionário público é uma das espécies de maior longevidade da natureza!
Bem, do meu falecimento pouca coisa me lembro. Na realidade não me lembro de nada. Estava na cama do hospital como um navio vazando água. Os sons foram sumindo, as luzes apagando, a dor afinando e de repente um clarão. Me vi transportado para um buraco escuro cheio de colunas monstruosas. Pouco a pouco fui absorvendo a nitidez do lugar: era o Depósito de Lixo. Confesso que não fiquei surpreso: já tinha o escolhido para ser o meu limbo ainda em vida. E aqui estou desde então. Transito pelos corredores, escalo as prateleiras, assusto os zeladores. Esse é o meu trabalho agora. Nada novo do que fazia no funcionalismo público.
Ás vezes imagino o que aconteceu. Se fui levado á presença do Altíssimo ou não. Bem provável que não. Eu perante o Senhor? Nunca consegui uma audiência nem com o juiz de pequenas causas. Se bem que a Bíblia diz que todos serão julgados. Bem, se fui julgado com certeza absolvido não fui. Primeiro porque minha ficha é longa e segundo porque eu me declararia culpado antes de tudo.
Mas o que me deixa intrigado é imaginar meu velório. Eu posso até ver: Catarina exagerou nas flores, como sempre. Com essa mulher ou é oito ou é oitenta. Meus amigos deviam estar lá, abrindo caminho á cotoveladas entre as carpideiras para chegar no caixão. Figueiroa deve ter chorado muito. Não conheço cara mais emotivo que ele. Com certeza alguém da Scuderie Le Coq aproveitou do momento para fazer um apelo para “salvaguardar a instituição policial”.
Será que ele foi? Não, acho que não. Ele deve ter chegado no final do velório. Cássio mora longe, lá na Pavuna. Deve ter chegado a tempo de jogar a última pá de terra. Catarina com certeza vai cuidar da missa de sétimo dia. Ele vai ajuda-la. É um bom menino, anda num emprego direito, tem família. Pelo menos livrei-o de mais um fardo.
Ultimamente minha diversão tem sido assustar um jovem funcionário. Ele está no meu antigo cargo. Fomos apresentados num dia chuvoso quando ele teve de pegar as pastas na prateleira B28. Descansava lá quando ele apareceu, com fones no ouvido e rebolando. Não resisti: passei por ele como uma brisa. Congelou ao ver aquelas costeletas de outra era e esse rosto sisudo. Juro que ele se urinou. O rapaz ficou dois dias sem voltar ao trabalho. Veja só, virei um fantasma travesso!
Agora até que entendo meus colegas que assombram casas. Não há muito o que se fazer no Além, senão implicar com os vivos. Ou isso ou ficar lembrando o passado. Que exercício torturante esse! Depois de alguns anos o seu ectoplasma começa a vazar e quando você der conta estará completamente louco berrando pela casa. Eu mesmo já cai diversas vezes nas armadilhas da minha cabeça: uma vez pensei que não tinha morrido, noutra me vi cercado de amigos que na verdade eram imaginários.
Uma ideia começou a pinicar minha falecida mente outro dia: porque não concluo o livro agora? Quer dizer, outros espíritos conseguem mandar suas mensagens, porque eu não? Só o que eu preciso é achar um médium nas redondezas. Na verdade, preciso achar um meio de sair daqui primeiro: desde o enterro não consigo sair desse maldito arquivo. E os funcionários daqui não conseguem me ouvir, por mais que berre nos seus ouvidos. Serão todos surdos? Rezo para que mandem algum sensitivo para cuidar da papelada daqui. Até lá continuo sendo um defunto servidor e não um defunto autor.
Já não me lembro quantas vezes já contei a minha história e o meu livro para o pessoal do arquivo, isso sem falar das traças, aranhas e dos ácaros que moram nas prateleiras. Em vida, os odiava, aplicando pena de morte em muitos deles por desacato á autoridade policial, hoje são meus melhores amigos.
Sinto falta das pequenas coisas como sentir o vento batendo no seu corpo, morder uma maçã e ouvir aquele estalo, deixar as ondas do mar se arrebentarem no seu pé e principalmente do toque. Não poder tocar quem você ama, acariciar ou afagar, é a pior das sentenças. Se bem que estando aqui não tenho ninguém que se enquadra nessa classificação.
Anoitece e a cena muda: duas pessoas deitadas na laje da casa observam o céu. Não há lua, mas bate uma brisa deliciosa. Dois enamorados olhando as estrelas, prometendo um ao outro cada uma delas e algo mais. Sabe o mais perverso disso tudo? É não ter certeza se isso foi um sonho ou verdade. É mais uma artimanha do tempo, o maior criminoso de todos. Não há como fazer o tempo pagar por vilanias como essa. Por isso não me revolto mais, não brado mais como bradava antes. As teias, o bolor e os ácaros são seus cúmplices, soterrando todos os meus tenros momentos. O que fica é essa imagem borrada. Malditos borrões. Malditos ácaros. Maldito tempo. Maldita janela.
Tenho que comprar uma persiana. Urgentemente...

quarta-feira, 28 de março de 2012

Humor em luto


Dois grandes nomes do humor se foram nessas duas semanas: primeiro, Chico Anysio e agora, Millôr Fernandes.
Chico já penava há muito tempo num ostracismo que se agravou com uma doença no pulmão. A verdade é que ele tinha comprado uma briga com um dos ban bans da Globo e por isso ficou longe da TV por tanto tempo. A nós, seus fãs, restavam as reprises da Escolinha do Barulho ou Chico Total que começaram a passar na TV a cabo ou mesmo alguns vídeos antigos que por ventura pudéssemos encontrar no Youtube. Me surpreendeu a iniciativa da Globo de produzir para ele um especial no ano passado. Lá estavam os velhos personagens, o que muito me alegrou. Mas o estado de Chico já demonstrava o quanto abalado ele estava, o que me impressionou muito.

Quanto á Millôr, não sei nem como começar. Desde os 14 anos, quando descobri a obra desse gênio me tornei um fã incontestável dele. Millôr não era apenas um humorista, mas um intelectual. Um intelectual completo como disse Ricardo Boechat. Envolvido na imprensa desde cedo, por meio de suas charges, desenvolveu um estilo todo seu. Um estilo descontraído e sofisticado. Um estilo que não se intimidava com novas ou antigas mídias: seja no jornal, no desenho, no teatro, na literatura, na revista, na pintura ou mesmo no twitter. Sem falar de seu trabalho como tradutor, nos deixando traduções primorosas de clássicos da literatura e do teatro. Ah, falando em teatro, o que dizer da peça que escreveu junto com Flávio Rangel, Liberdade, Liberdade? Um manifesto impressionante contra a ditadura militar, unindo uma crítica ácida, história e humor.
Enfim, Millôr se encontrava nos últimos tempos no seu recanto perto do Arpoador. Sofreu um derrame, mas conseguiu se recuperar. Claro que não conseguiu retomar o mesmo ritmo de produção que tinha antes, mas continuava antenado. Millôr nunca fez questão de ser capa de revista, mas mesmo assim era famosíssimo. Principalmente nas esferas intelectuais, para quem ele era símbolo do cult nacional. Sempre vi nessa atitude uma espécie de egoísmo, como se Millôr fosse próprio só para intelectuais, o que não é verdade. Millôr falava do cotidiano, de coisas que afligiam qualquer brasileiro. Por isso uma das coisas que me angustia é que  a maioria de nós ainda desconheça esse grande escritor.
Diante da notícia do falecimento de Millôr a manifestação mais comum foi: "quem é esse cara?" Isso me deixou com um nó na garganta. Na mesma hora vinha a vontade de dizer, "esse cara é um dos maiores intelectuais do Brasil, o cara que domina o humor, o teatro e a literatura sem nenhum pedantismo!" Mas não adiantaria muito. Acredito que a melhor solução para esse impasse seria apresentar ao desavisado o próprio Millôr, seja através de suas frases ou mesmo de seus desenhos.
Passando esses últimos dias em revista me assustei com a rapidez com que grandes brasileiros estão se indo. Não sei se isso é um dos sinais de que 2012 é o final dos tempos, como alguns já suspeitam. Mas de uma coisa eu sei: não há nada melhor que possamos fazer em homenagem á esses ícones do que explicar porque eles são ícones. Não é a morte que mata, mas o esquecimento. Se queremos um Brasil melhor, não podemos nos esquecer de Chico e Millôr.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Mestres que se foram


Semana passada tivemos duas perdas irreparáveis:
Primeiro, a do grande geógrafo Aziz Ab'Saber e depois a do cantor Jorge Goulart. Um ajudou a desvendar o Brasil o outro á alegrá-lo. Duvido que alguém não conheça a famosa marchinha da "cabeleira do Zezé" ou mesmo A Voz do Morro de Zé Ketti, ambas popularizadas pela voz de Jorge, que por simpatizar com o comunismo foi afastado da Rádio Nacional nos anos 50. Quanto á Ab'Saber, suas contribuições são gigantescas: devemos á ele métodos e conceitos valiosos tanto á Geografia Física quanto á Geografia Humana, sem falar do conhecimento aprofundado dos biomas nacionais, sendo que a preservação de um deles, a Mata Atlântica, foi uma de suas bandeiras. Esse grande amigo e admirador de Darcy Ribeiro, assistiu com pesar a destruição da sua cidade natal, São Luis do Paraitinga, pelas enchentes de 2011, mas ainda pode ver, para sua alegria, a reconstrução dela. Já os debates sobre o Código Florestal, acompanhou sempre defendendo o manejo ambiental como solução.
Dois grandes mestres, um na cultura popular e outro na acadêmica. Dois grandes mestres que se foram. Uma pena.

domingo, 18 de março de 2012

A República Muda

Aldísio em foto de Raphael Alves (A Crítica).
O verso de hoje é apenas um fragmento do longo e ótimo poema A República Muda  de livro homônimo do "mais torto dos poetas" amazonenses, o grande Aldísio Filgueiras:

na estupidez
              das janelas
solteiras
              da cidade
a maré
              do medo
              é súbita
manchete
            no sábado
de ambiente
            familiar
e acidente
            bancário.

É tempo
          do verbo
contra
           a verba.

sábado, 17 de março de 2012

Viva Zé Pelim!

Zeppelim na Baía de Guanabara em 1933.
Dirigíveis. Quando ouço falar em dirigíveis penso em duas coisas: no Zeppelim e no Hindenburg. O primeiro foi pioneiro, o segundo foi desastroso. A queda do Hindenburg nos Estados Unidos acabou com o reinado dessas naves no céu.
Zeppelin era como se chamava o conde alemão que dedicou boa parte de sua vida á estudar a aviação. O nobre tinha fascínio pelos balões e a partir de 1880 começou a construir os primeiros dirigíveis que se tem notícia. A maioria quebrava nos primeiros testes, o que fez com que o chanceler da Alemanha, Otto von Bismarck, desistisse de financiar o projeto. Os dirigíveis foram a glória e a falência de Ferdinand Zeppelim. O primeiro voo bem sucedido só foi acontecer em 1908. Ele pode recuperar parte da sua riqueza depois de montar uma empresa de viagens aérea e antes de falecer descobriu que sua invenção também podia ser usada para fins menos nobres - eram os tempos da Primeira Guerra Mundial.

Bem, a Primeira Guerra acabou e a Alemanha era um país economicamente fraco. Os Zeppelins continuaram voando, mas em menor frequência. Só vão voltar em grande estilo com a chegada dos anos 30. Hitler já havia subido ao poder e investia pesado na tecnologia aeronáutica para demonstrar a superioridade alemã. Daí o investimento em dirigíveis gigantescos e luxuosos como o Hindenbug, assim batizado em homenagem ao presidente que antecedeu Hitler, Paul von Hindenburg. Em 1937, pronto para pousar em Nova Jersey (EUA), o dirigível pega fogo e é consumido pelas chamas em menos de 60 minutos. O motivo? Diziam que era sabotagem comunista, um raio que atingiu as hélices, vazamento de hidrogênio. Enfim, até hoje o caso está mal esclarecido. O fato é que após a queda do Hindenburg voar de dirigível perdeu o charme e passou a ser motivo de medo.
Hindenburg no Hangar de Santa Cruz.
Em Santa Cruz, no Rio de Janeiro (perto do bairro de Sepetiba onde cresci e fui criado), construíram um hangar para eles. Lá era antes o Aeroporto Bartolomeu Gusmão. Foi inaugurado um ano antes dessa tragédia, por isso ele recebeu poucas naves. Em 1940 já tinha perdido seu uso e passava a fazer parte da Base Aérea. Foi tombado pelo IPHAN como patrimônio histórico. E em Jequiá, em Pernambuco, construíram uma torre de atracação em 1929. Quando o Zeppelim passou em Recife foi aquela festa. Era dia 22 de maio de 1930 e quem foi recepcioná-lo na Torre de Jequiá foi ninguém menos que Gilberto Freyre, chefe de gabinete da prefeitura de Recife. A Torre do Zeppelim também foi tombada.
Os dirigíveis encantavam pela sua estrutura curiosa e pelo conforto que as cabines de viagem possuíam. Imagine poder visitar quatro continentes em uma cabine com boas camas, garçons á sua disposição e passageiros do mais alto nível. Coisa de "catigoria"! Por isso permanecem no imaginário de muitas pessoas, incluindo brasileiros que puderam ver ou ouviram falar das passagens destes monstros da engenharia por nossas terras. Pessoas como o poeta pernambucano Ascenso Ferreira:
Apontou!
Parece uma baleia se movendo no mar
Parece um navio avoando nos ares
Credo, isto é invento do cão!
ó coisa bonita danada!
Viva seu Zé Pelim!

sexta-feira, 16 de março de 2012

sábado, 10 de março de 2012

Undertown


LUA CHEIA
A cidade suja dava seu último suspiro antes de ir dormir quando aquilo aconteceu. Foi tudo muito rápido: o uivo, o grito, seres correndo na sombra e no fim uma poça de sangue.

ASCO
O homem no ônibus era repugnante. Cheio de perebas por todo o corpo, como sarampo. Surpreso, encontrou uma pereba no seu rosto ao chegar do trabalho. Em menos de um dia ele tinha se tornado repugnante.

PRAGA
Maldições não costumam pegar. A não ser daquela velha prostituta. O rapaz nunca mais retalharia ninguém: uma viga de metal o deteve a caminho de casa.

MEDO DE ESCURO
Sons. Sons debaixo da cama. Quando eles pararão? Não aguenta mais, tem que olhar. Hmm... nada de anormal. A não ser aquela criatura escamosa com bigodes de bagre e dentes de tubarão.

DIZ-ME COM QUEM ANDAS...
Há um nível saudável de loucura. O médico sempre lhe dizia isso. Mas ver homúnculos por toda parte é uma doença, completava. Fazer o quê, doutor, se eles gostam da minha companhia?

CASO CONJUGAL
O apartamento escuro era o cenário da tragédia: um homem que voltou mais cedo do trabalho e pegou a mulher na cama com outro. Duas pessoas foram mortas. O vampiro destruidor de lares, contudo, continua foragido.

Pensata I


O sucateiro chegou na rua. Olhar afiado, já enxerga a latinha de cerveja escondida no matagal alto. Aguenta a provocação da meninada. Divide a rua com os carros, metade deles na calçada. Portão sim e portão não, cachorros põem-se a latir. Alguém finalmente lhe deu um "boa tarde".
O velho apoiado no muro pergunta se ele só pega coisas pequenas. Amanhã, quando vier com sua carroça, pegará a bicicleta quebrada da netinha do homem.
Os esqueletos de pipas nos fios dos postes balançam, o vento mudou de direção. Ele aproveita o momento ameno e reflete: a sucata mais preciosa hoje em dia é o respeito. Depois escarra no chão e sobe a ladeira, arrastando o saco de bugigangas.

AVISO

Os bloqueiros agora devem estar se familiarizando com essa visão.
Nessa sexta-feira fui surpreendido com a notícia de que Escritório Central de Arrecadação (Ecad) começaria a cobrar as músicas divulgadas em blogs. Caligraffitti e A Leitora foram os primeiros a serem cobrados. O valor:  R$ 352, 99. Isso por cada música!
O Ecad é responsável desde 1976, quando foi criado, por cobrar os direitos de reprodução de músicas. A novidade é ele ter migrado agora para o meio digital, alegando que os blogs deveriam pagar pelo direito de veiculação das músicas. A resposta dos blogueiros tem sido: como o blog pode estar retransmitindo a música se ele o faz utilizando o Youtube como fonte, ou seja, o Youtube continuaria sendo a plataforma de retransmissão e não o blog. Até agora não ouvi a réplica.
O que sei é que a blogosfera anda agitada. Se há algo de bom nessa jogada mercantilista é que a nossa lei de direitos autorais será revista agora (ela foi criada em 1998 quando a internet engatinhava em solo tupiniquim). Até lá, meus amigos, tenho que lhes dizer que esse blog terá de se livrar de muitos vídeos que acompanharam nossas postagens. Espero que essa amputação seja provisória, pois desse jeito muitos posts perderam um pouco da sua dinâmica. De qualquer maneira, Bar Brikolagen continua vivo. E em breve abordaremos o tema: Internet e Direitos Autorais. Não sei por que...

Mais informações sobre o Ecad: O que é Ecad? E por que ele está cobrando direito autoral dos blogs?

terça-feira, 6 de março de 2012

Sorriso amarelo: polemizando e entendendo o humor de hoje


Agora que vocês conhecem minha concepção de humor e um pouco da história dele na TV, finalmente posso entrar de cabeça na questão. Como dissemos antes, o humor é subjetivo e subversivo. Nem sempre você rir da mesma coisa que teu colega e quando alguém rir de ti você se sente desmoralizado. Por séculos, os tiranos e poderosos tentaram sufocar o riso, temendo serem humilhados. O riso pode ser uma forma de protesto.
Mas o riso também pode ser uma arma muito perigosa. Usamos aqui o exemplo o Buylling em outra oportunidade. Reitero a escolha. Ridicularizar ao extremo o rapaz que tem orelhas grandes significa traumatizar alguém e incentivar a intolerância. O que há de engraçado nesses dois resultados?
O humor hoje continua na moda. A moda de um humor novo. Um humor que seja diferente, subversivo. E o diferente aqui acaba sendo ser desbocado e anárquico, em outras palavras, atacar de frente o politicamente correto, movimento executado pelas minorias contra o preconceito que vem sendo bem recepcionado pela opinião pública e o Estado. Já falei antes, houve um tempo em que a febre nacional entre a garotada era humorista. "Papai, quero ser humorista! Vou zoar todo mundo!". Humor não é simplesmente zoar, já discutimos isso. O que é importante dizer agora é que muitos querem ser comediantes simplesmente pelo prazer de zoar com as pessoas. Claro, não são a maioria, mas é uma parte do todo que acaba manchando a reputação da profissão.
Esse pessoal abusa de duas premissas: a liberdade de expressão e o individualismo. "Eu posso falar o que quiser porque temos liberdade de expressão!" Claro que pode, mas o problema é que essa visão exclui o Outro. O que eu posso falar pode magoar alguém, pode dar margem á alguma coisa interpretação perigosa, enfim, enxergar o direito de liberdade de expressão da noção de respeito mútuo, tão cara á democracia, é uma desvirtuação.

Agora nos voltemos para nossos humoristas de verdade e seus programas: a maioria deles, na TV aberta, se declaram ecléticos, mas em muitos momentos fica nítido que o público-alvo é diferente: alguns são a rapaziada de classe média, outros são o povão mesmo. Se proclamam, ou pelos menos é o que se pode inferir, que são programas inovadores e subversivos. Uma subversão enlatada, pois a maioria dispões de recursos e de ajuda da mídia. Alguns apostam na crítica social como diferencial, mas acabam escorregando numa ideologia um pouco elitista. Alguns humoristas acabam até caindo na armadilha do egocentrismo que se ampara no direito á liberdade de expressão.
Não sou contra que se toquem em temas espinhosos, desde que seja feito isso com o máximo de cuidado. Qualquer assunto pode se tornar uma piada, mas nem sempre uma piada de bom gosto. Afinal, há que se ter em vista o respeito. Nesse ponto, o humor negro é um dos campos mais arriscados de se investir, pois brinca justamente com tabus e questões delicadas. É uma corda bamba. Um movimento em falso e se cai na vulgaridade.
Humoristas apelando para vulgaridade? Isso não é exclusivo de nosso tempo. Houve uma época em que Chico Anysio fez uma brincadeira com Lula, chamando-o com todas as palavras de vagabundo e miserável. Ele teve de se retratar. Ora, comediantes são seres humanos também, não estão imunes de preconceitos e principalmente de erros. A coisa pega quando eles não reconhecem que erraram.

Na minha opinião, Rafinha Bastos errou com sua piada sobre Wanessa Camargo e seu bebê. Nos dois sentidos: fazendo um esforço para ser suficientemente frio, reconheço que a piada não teve graça e, pelo ponto de vista moral, não respeitou a condição de gestante da cantora. Não admitir esse erro é o que mais me decepciona nesse cara que tem tudo para ser um grande humorista.
Ele próprio já admitiu que quer apenas ver o circo pegar fogo. Em uma entrevista revelou que anda pensando se ele continua com essa posição ou passa a aproveitar o seu status de personalidade pública para debater temas interessantes. Afinal, estamos falando do homem que foi considerado o mais influente do mundo, tomando o número de seus seguidores como base. Queira ou não ele está influenciando que o segue ou curte.     Achei interessante ele resolver assumir seu papel como um exemplo respeitável. Mas não sei se essa mudança de fato acontecerá. Rafinha já tem contratos com a Fox e a Rede TV, emissoras ansiosas por seus seguidores.
Mas, sejamos imparciais ou pelo menos tentemos: da outra parte também encontramos uma certa intolerância. Quando Preta Gil foi alvo de piadas de Danilo Gentili em nenhum momento Gilberto Gil utilizou de seu cacife político para despedi-lo da Band. As respostas da cantora e de quem lhe apoiava foi suficiente. Isso faz parte da democracia: erros não se combatem com erros. Por conta de uma abobrinha devo baixar um decreto pedindo a cabeça de fulano? Não é o certo. 
O pior é que já tem até gente pensando em fazer um projeto de lei para definir o que é ilegal no humor. Mais um absurdo. O humor é subjetivo, quando você impõe regras á ele está admitindo que o "bom humor", aquele que você julga ser o melhor, é o único tipo de humor possível, menosprezando assim o gosto de outras pessoas por paródias ou humor negro, por exemplo. Onde fica aí o respeito para com o Outro? Rir é um dos atos de mais pura liberdade e realização da sociedade humana, devemos acorrentá-lo á leis só porque erros foram cometidos? Não tem cabimento.
O que me garante então que não vamos ter vulgaridade gratuita na TV? O bom senso. Há um acordo invisível sobre o que é passível e o que não é passível de ser avacalhado, podemos até chamá-lo de um padrão social.Se esse acordo, se esse padrão não vem sendo seguido então é um dever nosso manifestar nosso descontentamento, pedir que se retratem. Mas daí a querer linchar ou baixar uma regulamentação do humor é viajar na maionese.
Um bom humorista sempre procura ser original. Sempre procura novas maneiras de fazer rir, novos temas para suas piadas e seus shows. Mas é preciso ter em mente que nem tudo é "humorível". É preciso pesar muitas vezes o que vale mais: a gargalhada ou a seriedade do tema ou da pessoa tratada. Esse é um dos dilemas morais da arte de fazer rir, demonstrando que o humor tem sim sua parte séria e não é por ser séria que ela deixa de ser menos interessante, pelo menos para mim.
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Veja mais:

domingo, 4 de março de 2012

Humor hoje: só dói quando ninguém rir

OBS: Esse artigo tratará do humor utilizando a TV como foco, porque entendo que este veículo de massa é responsável pela popularização do humor que se vem produzindo no país.
Na minha opinião o Brasil é um dos maiores celeiros de humoristas do mundo. Mas ainda no começo do século passado o humor aqui não era reconhecido como profissão, ele estava amadurecendo. Bom humor é uma das características que muitos viajantes ou pesquisadores estrangeiros diziam encontrar na nossa gente e é justamente esse humor do dia-a-dia que muitos levam para os palcos. Mesmo assim havia aquela ideia de que isso era vulgar, que o humor de verdade é aquele polido e inteligente. Gente que acredita nessa premissa até hoje ataca as chanchadas.
Ora, não existe O humor, mas vários tipos de humor. Nenhum melhor ou pior ao outro, são apenas diferentes. Humor popular deixa de ser humor só por ser popular? Só por ser um pouco mais ingênuo, um pouco menos politizado? Nem sempre ele é assim. Na maioria das vezes os políticos e o governo acabam entrando como tempero no caldo do humor popular. É bem verdade que nessa sopa ás vezes encontramos algumas pitadinhas de preconceito, oriundos do senso comum, mas nem o humor inteligente está isento de preconceitos também.

O que eu quero dizer é que o humor popular foi por muito tempo, digamos assim, subversivo. Subversivo simplesmente porque ele queria provar que era humor também. Com a chegada da televisão no Brasil, esse humor acabou ganhando o seu espaço. Na verdade já o tinha nas ruas e depois nas rádios, mas com a televisão ele passou a ter um alcance maior e conquistou gradativamente o status de profissão. Aliás, foram os grandes humoristas do rádio que ajudaram a consolidar o humor no país por meio da TV, como José Vasconcelos, Chico Anysio, Walter D'Ávila, Manoel de Nóbrega, Costinha, Ronald Golias e companhia.
Essa turma se adaptou ao novo mundo que a indústria cultural proporcionava. O que não significa que muitos se renderam á ela. Muitas vezes os improvisos (os famosos cacos) acabavam se tornando protestos ligeiros contra os ditames das emissoras. Aqueles mais radicais continuaram fora do veículo. Há outro lado também: a televisão não é a única plataforma possível para o humor. Há a escrita, a música, as fotos, enfim, um mundo de possibilidades. E aqui gostaria de destacar a figura de Millôr Fernandes, um dos nossos maiores gênios do humor, que faz um humor inteligente acessível e multimídia (desenho, teatro, imprensa) há mais de 40 anos.

Vivemos um marasmos, humoristicamente falando, nos últimos anos. Os consagrados mestres do riso faleceram em sua maioria, embora muitos ainda estejam aí sendo mal-aproveitados. Ao mesmo tempo, um pessoal começou a despontar. Com a internet, a divulgação passou a ser maior, mais democrática. Alguns nomes do humor atual foram alavancados graças á ela. Outros começaram seu caminho nos bares, nas rádios, nos bastidores da TV. O marco dessa nova era foi a migração de um programa de rádio para a TV: Me refiro aqui ao pessoal que faz parte do grupo de humoristas da Jovem Pan que criaram, lá por 2005 ou 2006 mais ou menos, o Pânico na TV. Antes já existia Hermes e Renato, mas era na TV á cabo. Pânico na TV tinha maior popularidade justamente por estar num canal da TV aberta.

Qual foi a grande mudança? Agora estamos falando de um tipo de humor que não tem papas na língua e que não se envergonha de ridicularizar não só seus integrantes como as celebridades. O que me cativou era esse último ponto. No Brasil possuímos um culto ás celebridades, menos poderoso quanto o dos EUA, claro, mas ainda assim forte, nutrido por revistas de fofocas, novelas e comerciais. Ao cutucá-los com piadinhas ácidas o fosso entre povo e celebridades diminui, porque enxergamos o quanto eles são parecidos com nós e não com deuses. Claro há também uma ponta de sadismo nisso, mas enfim...
Por esta mesma época começou no Brasil a moda do stand-up, onde o humorista vai para o palco de cara limpa contar suas piadas. De fato, o stand-up não é ultra-mega-hiper-inédito no Brasil: Costinha, Chico Anysio e José Vasconcelos já faziam isso nos anos 60 e 70 aqui. Mas o que pegou aqui foi essa ideia de que ele é novo e foi exportado. O que é importante entendermos desse momento é que mudou-se a concepção que tínhamos de humorista. Para nós, ser engraçado e ter feições engraçadas eram os dois pré-requisitos essenciais para fazer carreira no humor. Mas essa leva de rapazes fazendo stand-up nos revelou que isso tudo é relativo: qualquer um pode ser humorista, não importa a sua cara ou seu jeitão, desde que ele sabia como usar seus recursos para fazer as pessoas rirem.

O humor, de certa forma, virou uma moda. Me lembro que tinha gente no cursinho que se achava comediante nato. Sempre houve e haverá os espertinhos na escola, mas a partir desse momento eles passaram a acreditar que podiam ser muito mais que isso. Pego esse exemplo da escola não por acaso: a nova face do humor nacional é jovem. O problema é que iludidos pela falta de informação, o orgulho e os hormônios muitos não enxergam o que é verdadeiramente o humor e que não são tão inovadores assim. Em outras palavras, nos últimos tempos o humor passou a ser reconhecido como profissão ao mesmo tempo em que se nutria no meio da população um certo desentendimento sobre essa arte e uma falta de contato com nossa tradição.
Humor não é só fazer imitações, não é só repassar fotos e vídeos engraçados na internet. O humor é muito mais que isso. Na minha opinião, um imitador é um artista sim, mas que está mais para o lado da atuação do que do humor, enquanto esses sites que divulgam gags pela internet e nãos a produzem são apenas atravessadores e se são chamados de "sites de humor" é só por falta de nome melhor. O humor engloba técnicas, seja qual for o seu tipo. Técnicas que podem até não serem adquiridas, podem ser intuídas pelas pessoas. Coisas como a construção dos personagens, o timing, o carisma com o público (leitor, telespectador, ouvinte, navegador de internet, seja lá o que for), dentre muitas outras.

Ultimamente muitos humoristas de verdade tem declarado a sua paternidade, se referindo aos grandes mestres do passado, se filiando a uma corrente de humor, e isso é muito importante, pois lembra todo o nosso histórico. O contato com essa tradição nos ajuda a ver o que é realmente inovador no pessoal de hoje. Resumindo, depois da primeira onda estamos conseguindo ver claramente o horizonte. Quer dizer, nem tão claro assim, afinal as polêmicas sobre piadas com estupro e homofobia demonstram que as fronteiras não estão tão bem demarcadas assim.
Qual o problema? Existem alguns programas de humor que são como um chiclete que você passou uma hora mascando: perderam totalmente o gosto, insistem em fórmulas superadas (leia-se aqui Zorra Total) e com isso desperdiçam bons talentos. E existem outros que investiram no que há de mais moderno. Programas que dizem ser diferentes dos demais porque tem uma preocupação e até uma linguagem nova. Alegam serem subversivos por questionarem tabus e convenções políticas, mas na realidade não se aprofundam nisso, pelo contrário, ás vezes reafirmam velhos preconceitos. Estou me referindo ao CQC e aqui entra um parenteses.

O CQC não trazia o roteiro manjado do Zorra Total e não era só pura gozação, beirando a vulgaridade como o Pânico na TV. Isso cativou muita gente, incluindo eu. A parte da denúncia, unindo humor e jornalismo investigativo, era o seu grande diferencial. Mas depois do momento inicial ficou claro que a estrutura mercantil venceu essa preocupação política: não sei se por conta da posição da emissora ou da própria franquia. Sem contar que em alguns momentos transparece um sentimento um tanto elitista, do tipo "nós fazemos humor inteligente, somos melhores que os outros". Um programa que se diz eclético não pode ter esse tipo de sentimento.
A Record entrou na disputa pelo humor tentando copiar esse formato com Os Legendários. Para não dizerem que é uma cópia descarada incluíram quadros vindos dos tempos de MTV, emissora da qual a maioria de seus membros vieram. Aliás, cabe aqui outro parenteses: a fome por humor é tanta que a própria MTV, um canal de música na teoria, acabou readaptando a sua grade de programação e agora o humor possui quase que 60% da emissora, ao contrário do que ocorria em 1999 quando Hermes e Renato, por exemplo, começou a ser exibido.

Existe ainda outro tipo de programa que busca levar a experiência do stand-up ou dos vlogs para a televisão. Ou seja, pegar o que há de mais cativante nessas plataformas (espontaneidade e a liberdade de conteúdo) e adaptar para um local fortemente regulado pelo tempo e pelos desígnios dos patrocinadores. Alguns pereceram justamente por isso. Outros ainda persistem. Até quando ninguém sabe ao certo.
A conclusão é que o humor popular não é mais tão subversivo quanto era antes. Ele já foi devidamente domesticado pelas empresas, assim como o humor inteligente e o humor negro. Ou não se faz nada inovador ou se incentiva a produzir polêmicas. O humorista ou se cala ou apela. Hoje temos um ambiente muito mais confortável para essa profissão, mas para que ela se consolide de vez estas questões tem de ser pensadas, discutidas ao invés de serem eternamente adiadas.