quinta-feira, 26 de maio de 2011

O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão...

Beato na Bahia, Pierre Verger.
Uma figura, dentre tantas, me chama muito a atenção quando se trata da História do Brasil. A figura do beato.
Sempre achei estranho e bizarro um homem envolto em roupas pobres e velhas a vagar pelo mundo profetizando o dia e a data do apocalipse. Bizarro e medonho, porque, afinal, vai que o homem sabe do que está falando!...
Mas essa é apenas uma representação sobre o beato. Uma representação construída pela literatura e que continua até hoje em nossa mente. Figura aliás comum em nossa história, mas só despertamos para sua existência após o caso de Canudos. Se Euclides da Cunha não acata a idéia defendida pelo governo de que Antônio Conselheiro era um conspirador monarquista, tampouco o valoriza. Na visão do escritor e jornalista, Conselheiro era um grande manipulador e um louco.
Euclides e muitos intelectuais de seu tempo conviviam com a questão da "civilização versus bárbarie". Enquanto os centros urbanos (no Brasil, localizados em sua maioria do litoral) eram vistos como estâncias da civilização, onde os ideais burgueses e europeus (tidos então como padrão de civilização) podiam ser cultivados, o campo era o seu oposto. Lá os homens viviam em meio á lei da selva, viviam como animais.
Os habitantes das cidades, o caso de nossos intelectuais, não conseguiam enxergar uma racionalidade sequer nos movimentos messiânicos que surgiram no país. Hoje, contudo, a dobradinha "civilização/bárbarie" está sendo revisitada. Hoje olhamos para esses movimentos com curiosidade, procurando achar a sua racionalidade, a sua razão de ser, a sua dinâmica. Logo, o beato passa a ser um personagem muito menos obscuro.

Beatos: boneco feitos em goma de mandioca por Demóstenes Fidélis e Lusyennir Lacerda.
Se entendermos a religião, por exemplo, como um espaço próprio munido de suas próprias regras, como o faz Pierre Bourdieu, onde existem os possuidores do conhecimento religioso (os sacerdotes) e os consumidores desse conhecimento (os leigos), o beato pode ser localizado justamente entre estes dois personagens. O beato faz sua própria interpretação do conhecimento religioso pregado por determinada doutrina e seus sacerdotes, por isso ele tem um cárater meio subversivo. O beato é o sacerdote popular, aquele que faz um releitura da religião que pode ser adotada ou não pelos leigos.
Mas tomemos cuidado: nem todo beato se auto-proclama messias e justamente por isso nem todo movimento dito messiânico é messiânico.
Exemplos? O movimento em torno de Padre Cícero Romão desde que fez uma hóstia sangrar na boca de uma beata é enquadrado na leva de movimentos messiânicos que surgiram durante os primeiros anos da República. Ora, Padre Cícero era um místico, mas não se proclamava um salvador da Humanidade, tampouco queria romper com a Igreja. Boa parte de sua vida foi uma tentativa de obter o reconhecimento da instituição. Claro que por muitos de seus devotos era idolatrado como um santo vivo, mas estudos nos demonstram um homem que se entendia mais por profeta que messias.

Estátua construída em Juazeiro do Norte atrai todo ano milhares de devotos do "Padim Ciço".
Aliás, o que causou a explosão de tantos movimentos do tipo (Juazeiro, Canudos e Contestado, respectivamente) num mesmo período? Simplesmente a fusão de elementos estruturais com fatores conjunturais: o quadro de distância entre Estado e Igreja para com o povo no interior do Brasil se agravou com a crise de poderes locais e o movimento de romanização (defesa do ortodoxismo católico) dentro da Igreja. Além disso, há também as condições propícias de cada local: no Contestado havia a disputa entre os governos estaduais por uma fronteira e a expulsão de moradores dela para a construção de uma ferrovia, enquanto em Juazeiro havia uma igreja débil e reminiscências de uma grande seca, por exemplo.
Outro alerta: o Nordeste não é o local por excelência dos movimentos messiânicos. Essa imagem foi construída graças aos dois episódios marcantes de Juazeiro e Canudos. Talvez o Nordeste tenha uma maior proporção de beatos (não sei, nunca ninguém fez uma estimativa do tipo) e movimentos do tipo por conta da forte presença do sebastianismo, mas essa é apenas uma suposição. Alerto para a existência de figuras parecidas com eles no Sul e Sudeste e não só no campo como na cidade também. Não é tão bizarro assim nos esbarrarmos em algum pregador popular pelas ruas dos grandes centros urbanos. Me vêem á mente o nome do Profeta Gentileza que andou por São Paulo e Rio de Janeiro divulgando sua mensagem de paz.

Profeta Gentileza
Aliás, a questão da mensagem também é importante. O beato, seja qual for, cria sua mensagem embasado na religião para criticar a realidade em que vive. Assim como Gentileza criticava o mundo indiferente e sombrio das grandes cidades, Antônio Conselheiro também criticava o sertão por onde circulou não só por conta das injustiças dos coronéis como principalmente por conta das medidas instaurada pelo novo regime (republicano) e pela distância entre os ritos católicos oficiais e a devoção popular. Quando diz que o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão, Conselheiro pode estar constatando que o mundo virou de cabeça para baixo e não apenas fazendo uma profecia apocaliptíca.

Sertão do Vaza-Barris (onde o arraial de Canudos foi construído) 100 anos depois de sua destruição (em 1997) foi retratado pelo fotógrafo Evandro Teixeira: as ruínas do arraial foram banhadas pelas águas da represa de Sobradinho - o sertão realmente virou mar?
Vimos acima, que poucos movimentos foram realmente milenaristas e messiânicos, como o caso de Contestado ou então da Pedra do Reino (movimento de cunho sebastianista que exigia sacríficios em nome da volta do "Encoberto" D. Sebastião que foi popularizado pela pena de Ariano Suassuna e seu personagem principal Pedro Quaderna).
Outro ponto muito interessante é que os movimentos messiânicos não começam no Brasil necessariamente com a colonização. Muitos povos indígenas, principalmente os que viviam no litoral, realizaram movimentos do tipo, onde um líder religioso ("pajé", "caraíba", etc) arrebanhava um séquito de seguidores na sua procura pela Terra Sem Mal. Tais movimentos explicam as levas de migração indígena que povoaram em certas regiões o interior do Brasil. Um caso famoso é o do povo Tupinambá que após serem expulsos pelos conquistadores (portugueses e franceses) de suas terras passam a subir a costa brasileira até chegarem na região do atual Maranhão, lá, segundo alguns cronistas, uma parte desse povo seguiu um caraíba que acreditava que a Terra Sem Mal se encontrava no interior da floresta amazônica. Os Tupinambá subiram o rio e vieram a se instalar numa ilha que se tornaria conehcida posteriormente como Parintins.

Os Tupinambás em ilustração do livro do viajante alemão Hans Staden.
É importante fazer duas ressalvas aqui: o conceito de messias, noção judaico-cristã, é similar ao do caraíba, termo tupi, mas não totalmente idêntico. O caraíba leva seu povo, quando esse se encontra em uma situação terrível, para o paraíso, que para as sociedades indígenas brasileiras se encontra na terra. Essas mesmas sociedades não tem em sua cultura a noção de apocalipse, portanto, a procura pela Terra Sem Mal não é o ponto final da história. A religião indígena nesse sentido é muito menos transcendental que a judaico-cristã. Enquanto o judaísmo ainda procura seu verdadeiro messias, o cristianismo acredita já ter achado-o, esperando somente que ele retorne e traga com ele um mundo justo, onde os maus serão punidos e os bons serão recompensados. Esse seria o fim da história mundana e o começo da história religiosa, onde, paradoxalmente, a vida seria eterna.
Afirmamos acima que o beato, inspirado pelo judaísmo, cristianismo ou até pelo sebastianismo, parte sempre de uma crítica á situação em que vive. Em contraposição á essa situação de injustiça, o beato se apóia no mundo transcendental, na religião. O beato renuncia justamente por isso dos prazeres mundanos (daí que muitos são representados como senhores de aparência frágil, mal-trapilhos, com longas barbas), ele deseja se unir ao mundo espiritual e tentar fazê-lo se sobressair ao mundo material em suas pregações. No caso dos caraíbas, existe essa crítica á uma realidade injusta, mas o mundo ideal não é procurado somente na espiritualidade, mas na própria geografia. Espiritualidade e materialismo, na cultura indígena, não estão divorciadas, pelo contrário, andam juntas. Por isso, a Terra Sem Mal está acessível á todos que se disponham a andar pelos sertões.
Eu gostaria de concluir, destacando que esse texto não pretende ser uma espécie de "tratado geral sobre os beatos e manifestações religiosas no Brasil" ou algo assim. Apenas estou discutindo alguns conceitos básicos de como os monges populares e movimentos messiânicos foram representados. Procurei relativizar alguns lugares-comuns quando se trata de religiosidade popular, mas com o intuito de fornecer uma base para uma discussão futura mais precisa. Não peço, portanto, que sigam minhas reflexões como uma procissão. Me contento com o diálogo, com contribuições. Sejam de quem for, beatos, caraíbas, messias...

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