quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Felicidade...

(In)felicidade é só uma questão de prefixo.
Marina Prazeres


Eu gostaria aqui de contar uma história. Ela está presente no filme do cineasta francês Alain Resnais, A Vida é um Romance (1983). É uma das três narrativas que se desenvolve no filme.

Estamos acompanhando a jovem e bela Lívia (Fanny Ardant) e seu amado Raoul (André Dussolier) na visita á última iniciativa do excêntrico Conde Michel Fobrek (Ruggero Raimondi): o Castelo da Felicidade. Sim, o milionário nos apresenta a maquete de seu projeto e anuncia que se pretende casar com Lívia. Ah esqueci de dizer: estamos em 1914, então, a Primeira Guerra Mundial está prestes a explodir. E quando explode, Raoul é convocado para lutar no front. Lívia, sabe que ele morrerá e por isso aceita se casar com o quixotesco nobre e, assim, acompanhar a sua empreitada.


André Dussolier e Fanny Ardant em cena de A Vida é um Romance (1983)

Bem, quando o filme volta á história de Lívia e Fobrek o Castelo da Felicidade deixou de ser uma maquete. Agora ele é uma imponente fortaleza e seu interior lembra certamente uma paisagem extraterrestre, tamanha a estranheza. Como cobaias para a experiência, Fobrek contou com muitos de seus colegas aristocratas. Aliás, quem não queria ver um mundo melhor diante do espantoso cenário de uma guerra mundial? O experimento consiste em, por meio de uma poderosa droga, apagar a memória de seus "convidados" e pouco a pouco apresentar a eles tudo o que há de mais puro e inocente no mundo. Assim, o Conde lhes agracia com o mais extasiante perfume, a mais bela música e os pratos mais deliciosos. Lívia, a única a conservar sua memória, observa tudo com estranhamento e um fio de angústia.

No seu empreendimento, Fobrek não pode deixar ninguém fugir do castelo. Durante todo o processo, contudo, ele sofre algumas perdas como um convidado recente e misterioso (que no futuro se revelerá ser Raoul, de volta da guerra) que decidiu fugir e seu próprio pai que cansou de acompanhar "essa tolice". Abalado, mas não intimidado diante das perdas, Fobrek ordena: "Continuemos!"
.
A experiência é coroada quando todas as cobaias, até então reclusas e repousando em seus quartos, se encontram no salão principal. Purificadas pelas drogas e pelas sensações intensas que o conde lhes proporcionara nos últimos meses, todas passam a interagir entre si como se estivessem em um transe. Lívia observa tudo e se assusta. Atravessando o salão, em uma câmara separada, descobre um Fobrek contemplando dois corpos, sendo um deles o seu amado. Martíres na sua jornada para descobrir a fórmula da felicidade geral, segundo ele. Mas Lívia, abalada, o ataca, critica todo o seu absurdo projeto. O homem fica colérico e avança contra seu amor não-correspondido, recebendo um golpe na cabeça que o atordoa, mas não o bastante para seguir Lívia. Ela entra no salão principal e lhe apresenta o seu "magnífico" resultado: um bando de zumbis. O conde, atordoado pela cassetada e pelas críticas de sua mulher, parece reconhecer o seu completo fracasso, expressando-o em um olhar de frustração pungente.

Como vocês podem ver, essa história é muito interessante. Podemos extrair muitos significados dela, principalmente sobre a transformação de belas utopias em regimes de horrores, como a história tem nos revelado. Mas não é sobre isso que eu gostaria de falar. Esse texto pretende falar sobre o mote principal dessa história. Essa narrativa, onírica e ao mesmo tempo filha da ficção científica, funcionou no filme de Resnais como uma fábula, uma fábula sobre a felicidade.

O que é felicidade? Felicidade é um daqueles termos que todos levamos na cabeça, mas na hora de definirmos as palavras nos escapam. Talvez porque o termo seja muito relativo: o que é felicidade pra mim, pode não ser felicidade para você. Por efeito, tomemos uma definição usual: estado de espírito de satisfação. Todo aquele com o mínimo de experiência em viver, o que não é muito difícil, sabe que o ser humano nunca está satisfeito e por isso mesmo a felicidade é uma meta sempre perseguida e, segundo muitos, nunca alcançada.

Há sempre a desilusão. As pessoas pensam que uma vez alcançada a felicidade não fugirá, mas, como sabemos, isso sempre acontece. Por isso, há sempre a pergunta: há como "ser feliz" ou apenas o "estar feliz"? Tenho para mim que as duas alternativas são válidas, uma vez que é possível alguém ter mais momentos de felicidade e, assim, ser feliz ou estar feliz por mais tempo. Bem, maiores discussões sobre felicidade procurem o Espinoza, pois agora nos deteremos nas condições para a felicidade.

Alguns autores de livros de auto-ajuda ou de gerenciamento costumam sugerir um planejamento da felicidade, ou seja, estabelecer metas menores de felicidade e assim domesticando suas vontades. Resnais (e seu roteirista Jean Gulraut), no entanto, sugerem, através dessa fábula que as condições para a felicidade são simples e ao mesmo tempo complexíssimas. A primeira condição seria o amor, o amor que Fobrek não consegue ter de Lívia. A segunda a liberdade, a liberdade que Fobrek tira de suas cobaias em nome de uma felicidade geral. A terceira seria a aceitação da desilusão, o que Fobrek só consegue fazer no final e ainda assim de forma trágica. A desilusão é intrínseca á vida, todos temos falsas expectativas, o que é natural. Como diria Vinicius de Moraes, a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional. Vai de cada um como lhe dar com sua dor e com o que entende por felicidade, afinal todos somos livres. Alguém me perguntaria: livres até que ponto? Suponha que você nasça com problemas de locomação e sonhe em ser um corredor olímpíco, aonde fica a liberdade aqui? Claro, somos condicionados pelo passado e pela anatomia, mas fora isso, podemos muito bem escolher o que fazer com o que nos foi dado. Há problemas que podemos contornar, outros que não, é um fato; aceitar é diferente de se conformar.

E o amor? Há muitas formas de amor, mas é unânime que o amor é uma das maiores fontes de felicidade (e também sofrimento) do mundo. Penso que as mesmas condições estipuladas para a felicidade por Resnais possam ser aplicadas ao amor: liberdade, compreensão, aceitação, empatia, etc. Por maior empatia que Fobrek nutrisse pela humanidade e por sua amada Lívia, ele não poderia tornar ambas feliz suprimindo sua liberdade e parte de sua personalidade. Por isso, como disse antes, muito das utopias universais tem um "quê" de desprezo com a alma humana, mesmo a mais sombria de suas partes, pois, na maioria das vezes, retira ou da coletividade ou do indivíduo sua liberdade, o que revela um futuro anárquico ou totalitário. Não estou com isso declarando guerra ás utopias, somente pedindo cuidado na hora de transformar "teoria" em "prática".

No entanto, uma fórmula para o amor e para a felicidade, como procurava Fobrek, é uma experiência fadada ao fracasso. Ou por se remeter á algo que é indizível ou por ser um valor muito subjetivo. Não se pode construir um manual da felicidade, o ser humano é muito diverso e imprevisível (o que talvez seja sua maior força e sua maior fraqueza). A vida é e não é um romance, como afirma duas personagens do filme em momentos diferentes. Resnais nos dá assim a possibilidade de escolher qual dessas afirmativas escolher, sabendo que qualquer afirmativa taxativa, como seu conde o queria, é inútil. Dessa mesma maneira gostaria de terminar esse texto: a felicidade pode ser uma questão de prefixo... ou talvez não.

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