sábado, 27 de outubro de 2012

Da série "A Cara de Manaus"


Acorda cedinho e vai vender picolé na rua. Digo, nas ruas.
Faz calor, do tipo implacável.
Você pede uma chuva. Dez mil picolezeiros rezam por mais calor. Não tem como competir, meu amigo. Em Manaus, o mormaço não é só uma questão climática, mas social também. Existe uma indústria por trás do mormaço: vendedores de água mineral, guarda-sol, picolé, água de coco, etc. Enfim, se acabar o calor, vêm o desemprego.
Pelo menos é o que ele pensava.
-Picolé da massa! Olha o picolé da massa! Vai?
Sacolejando no buzão, uma boa alma lhe dirige a palavra:
-Quais são os sabores?
Quais são os sabores? Ora, os sabores... os sabores...
Tá ficando velho, concluía.
Voltou para o igarapé, mas saiu de casa na pancada. Não era a sua casa. Nem era o seu igarapé. No labirinto de palafitas, na sua cabeça, em ambos se encontrava perdido.
Até hoje anda por aí, errante, á procura de uma pista sobre o passado que a doença repentina lhe tirou. No seu isopor, o picolé derretido se fundiu com o jornal formando algo que lembra o estado da sua mente hoje.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Desabafo


O poeta italiano Giuseppe Ungaretti acreditava que o homem está destinado á grandeza. O único problema é largar a pequenez. Por que alguém não desejaria sair da menoridade? Ora, medo ou talvez maior comodidade. Muitas pessoas hoje desejam ser crianças de novo. Menos responsabilidades, menos problemas. É inegável que o conhecimento traga seus dilemas, a maioria complicadíssimos. Por isso, talvez muitos concordem com a visão de outro "poeta" italiano, Mussolini: "a ignorância é uma benção".
Nunca uma benção custou tão caro ao futuro. No Brasil, não há como discordar disso. Ai estão gente eleita pelo povo, esquemas construídos com base na omissão. O que mais me irrita é ouvir certas pessoas dizerem que melhor era na ditadura quando isso não existia. Corrupção sempre existiu, a ditadura não foi nada excepcional nesse aspecto. O que ela fazia no entanto era esconder muito bem os escândalos. E o pior é que quem a defende, sabe disso. Ou seja, o que os olhos não vêem o coração não sente.
É essa a lei que rege o mundo do Dr. Pangloss, o mundo dos otimistas alienados. Para alguém que fique somente na sua zona de conforto e acredite, como São Tomé, que se não vê é porque não existe, o Brasil está bem, muito bem. Não existe racismo aqui, nem vulcões, furacões ou terremotos. Hoje a fome é quase um problema do passado. Nosso sistema eleitoral é o melhor do mundo e nossa democracia hoje é sagrada.
Aquele que se aventurar para além do seu condomínio ou do mundo perfeito da sua imaginação descobrirá que nem tudo é verdade. Nossos problemas só se prolongam porque somos indiferentes á eles, consciente ou inconscientemente. Muita gente ainda precisa abrir os olhos.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Thriller


Se encontraram numa temakeria. Desconhecidos, assim tem que ser. Só o que importa é que alguém precisa sumir. A quantia, a data e a hora já foram decididos. Nem tocaram no bolinho de arroz. Por que não pediram pra viagem?

Bandeiras, fogos. O homem no púlpito ainda está de pé. Um movimento, um estampido. O homem no púlpito não está mais de pé. Comoção. O homem no púlpito ainda respira.

Não havia mais chances para ele. Logo chegariam em seu esconderijo. É o preço a se pagar por um trabalho mal feito. Mas poupara tempo e esforço dos seus empregadores: a bala atravessou os pensamentos.



O que fazer?


A polêmica dos Guarani Kaiowá coincidentemente estourou uma semana depois da entrega do relatório do caso do massacre Waimiri-Atroari á Comissão da Verdade. Nele trabalharam pesquisadores de várias áreas, destacando-se o missionário Egydio Schwade que vem divulgando o acontecimento há mais de 30 anos.
Na década de 60 e 70, a construção da rodovia BR-174 (Manaus-Boa Vista) em terras dos Waimiri-Atroari. A estrada foi sendo construída aos poucos, entre conflitos armados e mortes. No entanto, o caso foi abafado. Primeiramente, eram os tempos do regime militar. Em segundo lugar, o isolamento geográfico (estamos falando do interior da Amazônia).
Passaram-se mais de quarenta anos. Veio a Constituição de 1988 prometendo uma mudança na relação do Estado nacional e a sociedade brasileira com as etnias indígenas. No entanto, os problemas continuaram. De lá pra cá, a questão indígena continuou se pautando ora em querelas como a recente sobre a Reserva Raposa do Sol, ora em tragédias como o tímido aumento da taxa de suicídios na etnia Guarani Kaiowá.

Hoje, contudo, a visibilidade é muito maior. Quando da construção da usina hidrelétrica de Balbina nos anos 80 a resistência contra o projeto era pequena, restringindo-se á lideranças indígenas, antropólogos e missionários. O caso de Belo Monte se tornou uma causa abraçada por artistas os mais variados, assim como a mudança do Código Florestal. No entanto, a pressão toda não serviu para arquivar o Código Florestal pró-latifúndio e quanto á Belo Monte, a situação continua a mesma. As escavadeiras já removem a terra amazônica.
A mídia tem acompanhado com grande afinco os julgamentos do mensalão, só agora, depois da carta enviada pelos líderes Guarani Kaiowá, que eles se tornaram o centro das atenções. Onde quero chegar: toda a visibilidade que o caso tem alcançado é sinal de que conseguiremos reverter o quadro delicado em que essa etnia vive?
Não sei se é pessimismo, mas tenho enxergado nas redes sociais uma espécie de terceirização da revolta. A indignação se torna alimento para comunidades e programas que produzem abaixo-assinados e manifestações. Não confio na militância digital. Se algum ingênuo que não conhecesse nenhum pouco da realidade brasileira visitasse a rede social tupiniquim estaria convencido de que nesse país todos são politizados e revoltados pela quantidade de mensagens de crítica social e mudança política.

Compartilhamos o sentimentos de indignação e terminamos o dia achando que nosso dever para com o país foi cumprido. Acredito que nada substitui a ação. Manifestações são importantes, mas não devem partir só de uma classe específica, que se acha mais "iluminada". Falta convencermos o resto das pessoas de que índio não é bugre (a velha imagem do selvagem ou do aproveitador indígena, difundida no imaginário de muita gente), de que a questão indígena diz respeito a todos nós, porque ela está intimamente ligada á problemas como a reforma agrária, identidade nacional, violência e sustentabilidade, dentre outros.
Os demais casos recentes demonstraram que de a opinião de artistas e intelectuais não é bastante, falta ainda o grosso da população entender porque o trágico destino que se anuncia para toda uma etnia é tão importante para todos.
Não sei muito bem como ajudar os Guarani Kaiowá, para além da "militância digital", mas posso garantir que quanto maior for o esclarecimento e quanto mais adesões a causa tiver, mais próximo estamos da resolução desse impasse.

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Recomendo o artigo da jornalista e escritora Eliane Brum, Decretem nossa extinção e nos enterrem aqui.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Rapidinhas


Manaus, 50 graus, fez 343 anos. Eu rezando para São Pedro se sensibilizar e abrir a torneira e nada...
O julgamento do mensalão prossegue. A novidade foi a condenação de Marcos Valério á 40 anos de prisão. Em um país sério, eu ficaria contente com isso, mas...
Aliás, esse julgamento perto das eleições municipais é bem curioso, não? O governo, enquanto fazia a dança da cadeira com os ministros e lançava as obras do PAC, deve ter descuidado com a data.
Engraçado como o ministro Joaquim Barbosa, até então relativamente desconhecido, se tornou uma celebridade. Paladino da ética e da justiça pela direita e marionete da oposição para os governistas. Vi uma capa da Veja elogiando a trajetória do ministro e me lembrei que há alguns anos a mesma revista publicou um perfil do juiz, mas em tom menos elogioso. Na realidade, enxergavam a sua nomeação por Lula como mais um ato demagógico. Acusaram o cara de bater na mulher e tudo mais...
Na imprensa de esquerda ele é retratado como alguém que se atrapalha com as suas sentenças e que desconta a sua raiva contra as dificuldades enfrentadas em sua vida nos acusados. Os mesmos jornais que aplaudiram o ministro quando ele acusou o colega Gilmar Mendes de ser um coronel, em um momento em que estava de cabeça quente.
Eu? Não admiro, mas também não crucifico o cara. Aprendi a desconfiar dos paladinos da ética e justiça desde que Demóstenes Torres foi desmascarado. Por enquanto, só acompanho o andar da carruagem.
Outro fato que abalou a semana: a promessa de suicídio coletivo pelos povos Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Na verdade, não falaram em suicídio, mas em dar sua vida pra continuar nessa terra. Na carta que enviaram ao STF demonstram toda a sua descrença com a justiça após terem confirmado mais uma reintegração de posse aos fazendeiros.
A etnia tem um dos índices mais altos de suicídio, daí a confusão geral. A falta de perspectiva e a carência em que vivem explica o porque dessa epidemia assombrosa. Manifestações estão sendo feitas a torto e direito. Será que cairão no esquecimento como o caso de Belo Monte?

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Cinco Dedinhos


CHUVA
As gotas sumiam no chão ou caíam na boca dela. Aos poucos, ela se encheu. Não se afogou, transbordou. Quem salvou foi Dona Mirtes que se lembrou onde tinha esquecido a bacia quando chegou a hora do banho do neném.

QUADRO
As mulheres nuas. Todas de costas. O homem altivo. De frente. O chicote na mão, os pés no chão. Rostos angustiados. A face impassível dele deixava escapar um fio de sadismo no canto da boca. Autoridade não traz nobreza.

AH, O PRIMEIRO BEIJO...
No começo me senti ridículo, mas a medida que meu rosto sumia naquele travesseiro isso pouco importava. Afinal, sem treino o beijo deixa de ser um momento mágico pra ser uma troca de salivas...

TESTEMUNHA OCULAR
"Quem quebrou o vaso?" Enquanto ela perguntava, o menino assobiava. O gato fingiu que não ouvi. Apontou para o cachorro. O calango na parede só fazia que sim, cínico.

CINDO DEDINHOS
Me coloque aí cinco dedinhos de café. Agora uns três pingos de leite. Isso. Ah, e não se esqueça daquelas gramas de ânimo!

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

De aluno e de professor, todo mundo tem um pouco

Bem que eu poderia ter colocado o Mestre Yoda pra ilustrar essa matéria também...

Todos temos muito o que aprender, assim como temos o que ensinar também. Nessa vida, de aluno e professor todos temos um pouco. Mas existem aqueles que nos marcam, que nos ensinam mais do que esperamos. Não só conhecimento, mas atitudes. Á esses mestres meus parabéns. 
Dedico esta homenagem principalmente aos mestres que tive o privilégio de conhecer: Fátima ToledoMauro CastilhoRachel Duarte AbdalaEdson Trajano, Armindo Boll, Arcangelo Ferreira, Elisângela Maciel,Adriana Barata CabralTarcisio Normando, João Rozendo, Cristiane Manique, José Vicente Aguiar, Adelson Barros, Stelio Dantas, Maurício Couto, Sônia Brandão, Zé Maria (o pequeno grande homem), Walter Grassi Jr., João Neto, dentre tantos outros.

Velozes e melancólicos


Ah, o existencialismo! Uma das filosofias de vida mais populares deste século (os hipsters, classificariam como "mainstream"). Eis que vejo Drive (2011) e percebo, além do caldeirão de referência ao cinema de ação, esse nosso colega.
O motorista sem nome (Ryan Gosling) encontra o sentido de sua vida, violenta e perigosa, na casa ao lado. Uma família a espera de um novo pai e um novo marido. E ele a procura de uma mulher e um filho. No entanto, as coisas nem sempre são perfeitas. No meio do caminho está o marido que saiu da cadeia, o roubo mal sucedido e dois mafiosos truculentos. O motorista sem nome então tem de usar seu sangue frio e sua violência para proteger quem ama (sim, clichê, mas bom).
O roteiro é pobre, mas a narrativa e os personagens, meu amigo... Drive usa violência explícita, mas de forma "moderada". Os diálogos são poucos, as interpretações são ricas.  E é assim, cultivando paradoxos, que o filme constrói sua identidade.
E que identidade seria essa? Drive está a meio caminho entre o thriller e o sonho. A estética do filme, sempre privilegiando o brilho falso das luzes da cidade e a noite, e o figurino dos atores remete a um universo um tanto retrô (a década de 80 pra ser mais preciso). Ao mesmo tempo, esse é o presente: o layout dos carros deixa isso bem claro. É essa união de tempos que dá a sensação de estarmos pisando em um sonho, o casamento de duas eras distintas.

Ah, voltando ao existencialismo. Talvez essa incerteza temporal tenha sido planejada. Afinal, como dissemos antes, nosso herói é um aventureiro existencialista. Em seu mundo, tudo parecia vazio, menos os momentos que passou com Irene (Carey Mulligan) e seu filho. Daí a sua frieza e calculismo, a ausência de palavras e de afetos. A adrenalina e o dinheiro perdem o valor quando ele encontra uma família.
Aliás, esse tipo de vida não é privilégio do personagem principal. O mafioso cruel (Albert Brooks) não é muito diferente do protagonista. Leva a mesma vida melancólica do herói e também não se esconde atrás da adrenalina. O mecânico manco (Brian Cranyston) é um homem ganancioso, mas simpático. Vacila aqui e ali. Sua relação com o rapaz é sempre pautada pelos negócios, o espaço para a afetividade é relativamente pequeno.
No universo de Drive tudo parece ser indiferente e distante, por mais radical e violento que seja. O fato de não apelar, como os blockbusters fazem, faz com que se tenha dois tipos de reações possíveis diante do filme: ou se odeia ou se ama. No meu caso, foi a segunda opção. Ainda assim não acho que o filme seja tudo isso que estejam falando. Há críticos que dizem que esse filme é um divisor de águas. Penso que também não é assim.

Nicolas Winding Refn constrói um filme-tributo a todo um gênero, assim como faz Tarantino. A diferença é que o resultado aqui é menos divertido e menos explícito. As referências tem de ser garimpadas. 
A trilha sonora? Música eletrônica. Em alguns momentos tenho a sensação de que é muito retro para o estilo dos filmes de ação, mas essa é a intenção. Os mafiosos parecem meio anacrônicos, assim como nosso protagonista. O mundo marginal do filme é tem um charme, uma aura cult.
Interessante o modo como o diretor privilegia a face de Ryan Gosling. Lembra os longos close-ups dos bang bangs de Sérgio Leone. É um cineasta sem medo de perder alguns minutos com uma mesma cena, não se deixa levar pelo frenesi, por isso a violência aqui parece muito orquestrada. Novamente outro elemento que me lembra Leone.
Falando no protagonista, ali está o clichê em pessoa. O cara durão de poucas palavras, que sabe brigar, tem sempre um plano. Só o que muda é a jaqueta. E se ficou alguma dúvida de que ele é um cara durão, ali está o palitinho na boca pra comprovar. Se o símbolo de Stallone já foi uma cobra, esse aqui utiliza um escorpião. Outro animal peçonhento e perigoso. Se ele parece gente boa perto de Irene, basta que um antigo cliente venha lhe perturbar com um novo serviço numa má hora que ele mostra suas garras. E quando é preciso agir, solta todo seu veneno. 
Ele é desconstruído, aos poucos. Continua enigmático, mas sabemos que é violento, sensato e carente. Tão carente que o nível de amor para com Irene é quase platônico. Lembra e muito os cavaleiros errantes retratados pelos trovadores. Ao mesmo tempo em que é um bandido é um herói. É cruel e violento, mas também é romântico e amável. É a brincadeira com os lugares comuns. Isso não é nenhuma novidade, como falamos isso já vem sendo feito por inúmeros diretores.
A grande originalidade do filme está em fazer isso com uma refinação própria. Ao invés de seguir a escola de Tarantino ou de David  Lynch (pra pegar o outro extremo do cinema), Refn faz seu filme de uma maneira diferente, apostando nesse olhar melancólico e anacrônico. Isso é inapropriado para um filme de ação?
Penso que a melancolia, assim como o humor, estão presentes nesse gênero. O que os novos cineastas tem feito é salientar essas características menores desses filmes em suas produções. Em Tarantino e Robert Rodriguez temos um filme sem vergonha de se assumir tosco. Em Refn, temos um filme que assume sua tendência existencialista. A marginalidade aqui parece fatalista, amarga. Substitua a tecno music pelo jazz, o motorista pelo escritor e então percebemos que estamos mais perto de Truffaut e Goddard do que Leone e Fuller. Por escolher ficar entre a Nouvelle Vague e o cinema de ação, Drive revela ser um filme que vale a pena ser assistido.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

QUILOMETRO 36 III


O VISITANTE
Naquele lamaçal no meio de tantas mãos sujas e camisas esburacadas, a figura do padre Orlando Marreiro era completamente surreal. Ali estava ele, com sua batina, ruça, mas ainda assim mais limpa que os trajes de seus fiéis. Ameaçava chover, mas a nuvem se revelou uma fanfarrona. A missa, exigência dos trabalhadores, ocorreu bem.
Anos depois padre Orlando me revelou que ao visitar o canteiro de obras tinha sentido algo estranho, uma vibração negativa. Estava certo que havia algo de ruim ali, só não se arriscava dizer de que entidade maligna se tratava.
Vocês nem imaginam o quanto um nome é importante. Em se tratando de magia ele faz toda diferença. O simples ato de nomear algo opera uma transformação. Se chego aqui, nesse terreno cheio de barro vermelho e maritacas, e do nada o batizo de Muquira estou condensando tudo o que ele simboliza em algumas palavras. Não faço ideia do que quer dizer Muquira, mas esta palavra me remete imediatamente a um mocambo bem aprazível, com suas casinhas de madeira pintadas de branco e azul claro.
Nas palavras se condensam a essência das coisas. Existem nomes que captam o âmago do que lhes é atribuído, principalmente se estamos falando de misticismo. Tudo tem o seu significado e uma pista para encontrá-lo está no nome.
O nome é controle. O fato de você saber o nome de certa entidade já é um trunfo, pois assim sabe como evoca-la. Se pode evocar, pode desconjurar também. Claro, isso já é mais complicado, depende mais da sua força. A chave para controlar o caboco era saber seu nome.
Desde que se tinha notícia da chegada do referido ente, nada dele se revelar. Outros pais de santo e médiuns daqui já tentaram falar com a coisa ou ao menos perguntar do exus e preto velhos. Nada. Sempre evasivos.
Andirá podia ser um tanto medroso, mas antes de tudo estava disposto a provar que era um babalorixá de peso. Depois de muito pensar na beira da cama, ao lado de Mãe Juriti, decidiu. Certa quarta-feira, largou as bênçãos e pedidos de proteção de lado. Foi direto. Queria saber o nome do sujeito. Qualquer que fosse a entidade que por ali aparecesse, perguntaria.
Os tambores começaram cedo. O cheiro de oferenda no ar, não era do incenso nem das velas romanas, mas da própria noite. Noite de lua nova. A cantoria vai engrossando. Andirá e as senhoras vão dando voltas pelo pátio de sua casa, arrastando a sandália e o pouco de areia branca jogado no chão.
A toada já estava na sua décima repetição. Uma das senhoras começou a sair do compasso. Cobria o rosto. Podia ser um orixá. Recompunha-se. Pôs se a sorrir. Pediu um doce. Era um preto velho.
Andirá lhe presenteou com um saco cheio de balas. Logo foi se apresentando como Pai Manuel das Onças. Ria com uma facilidade impressionante. Sua voz parecia estar constantemente entoando uma ladainha.
-Pai Preto, o sinhô é daqui?
Estava maravilhado com uma maria-mole que achou no meio do mar de balinhas mixurucas, respondeu depois de alguns minutos negativamente.
-Mas estou por aqui uns tempos, minino...
-Pai Preto, haverá de saber, por acaso, o nome de vizinho nosso que vive lá no mato, no oco de um jatobá?
Preto velho não estava fazendo suspense, apenas admirava o silêncio. Por alguns instantes só se ouvia o saquinho de papel das balas sendo desembrulhado. Pediu com as mãos a garrafa de pinga do rapaz que estava perto da zabumba. Com uma piscadela, metade da cachaça já tinha ido embora. Quando terminou, estalou a boca.
Enxugando os lábios, cantarolou um bocado e aí sim entrou na conversa.
-Pra que ôces querem saber nomi dele se já deram nomi pra ele?
-Nós, Pai Preto, precisamos do nome dele de verdade.
-Hmm... Eu inté podia falá, mas promessa é promessa, né, meu fio? Caboco que mora no tronco é homi perigoso, mas justo. Ôces não tem o que temer.
-Mas, Pai Preto, ele pode se zangar conosco pelo que estão fazendo com sua casa, mas nós não podemos impedir...
-Deixa disso, minino! Ele sabe, ele sabe. Caboco é mano velho. Tá desde antes do Encoberto* por aqui. Ôces tão com medo pruque é vizinho novo. Ôces não precebem que ele vai ajudar.
-Ajudar?
Preto velho fez uma careta, como se tivesse comido algo amargo. Em seguida alisou a cabeça.
-Ajudar do jeito dele. Medo, meu fio, é a língua que alguns homes entendi...
O estalo do chicote ressoava, mas só Preto velho ouvia.
O visitante agradeceu o lanche, se despediu abençoando cada um e dona Zuleide voltou a ser a ocupante daquele corpo. Andirá passou mais uma noite sem dormir, tentando digerir o que foi falado naquele quintal.
Seu Chico, quem diria, foi preso. Patarra andou cochichando no ouvido do prefeito e antes do dia terminar já haviam dois guardas parados na frente do bar do Waldinei a espera do pescador.
-Seu Chico, tá querendo esclarecer umas coisas com o senhor lá na Prefeitura.
Ele colocou o chapéu e o anel no dedo. Nem cara de raiva fez.
-Se é pra esclarecer, eu vou.
Quando chegaram na Prefeitura, o delegado Coriolano Camarão arrumou um barraco porque os policiais não tinham o algemado. Assim que foi pegar suas mãos, o velho esquivou.
-Eu vim aqui pra esclarecer um negócio!
Major Leão, pressentindo porrada a caminho, disse que a sabor das circunstâncias o melhor seria prender Chico porque haviam indícios de que ele estava armando balbúrdia em Muquira. Leia-se, assassinatos. Seu Chico se defendeu relatando seu eterno cotidiano de pescador. “Seu Chico, temos provas”. Não tinham porra nenhuma. Lembremos mais uma vez: esses eram os anos 70, boatos podiam prender alguém ou matar.
O prefeito pediu paciência do velho mocambeiro. Ficaria algemado só para acalmar os nervos do delegado de Quatro Pés, depois de dar algumas explicações seria solto. Coriolano não via a hora de interrogá-lo, mas á maneira antiga. Pediu permissão do Major Leão para usar seu cassetete e uma bateria de carro, mas preocupado com a imagem da Câmara relutou em dar carta branca ao delegado de queixo anormal.
Eu e Juninho Sabiá chegamos nesse momento. Já era noite e ninguém podia sair da cidade, por isso o delegado, seu Chico, o prefeito e nós passamos um longo tempo juntos tentando entender o que de fato tinha acontecido.
UMA DESPEDIDA DEBAIXO DOS LENÇÓIS
Ah, não nos esqueçamos do Dr. Osmar Menegullo. O bom rapaz que passava suas noites agora com Pequerrucha, uma das muitas meninas do Salão Shangri-lá. Sua esposa Maria Veridiana em São Paulo tricotava lendo suas cartas, entre um suspiro e outro. Não suspeitava nenhum pouco que aquela menina de olhos pequenos, boca carnuda, rosto anguloso e cabelos negros fazia o tipo de seu marido.
Pequerrucha, a conheci também. Não vou ser hipócrita. Eu, malandro que era (e ainda sou), não viveria em Jacamirim sem conhecer todos seus bares e puteiros. Salão Shangri-lá era o maior deles. Seu dono, Raimundo Pereira, se orgulhava de monopolizar o cacau e as putas de Jacamirim.
Para chegar lá, basta cruzar o rio em uma voadeira. Desde que os candangos chegaram aqui, balsas apinhadas de homens desesperados atravessavam essas águas toda noite.
A primeira vez em que fui lá, suas paredes ainda tinham o desenho de um pôr de sol amazônico com direito a garças e jacarés. Meio tosco, mas de encher os olhos. O chão era de azulejos xadrez. A cantoria ficava a cargo de dois sanfoneiros e um rapaz de bandolim que hoje tem quase dois metros de altura.
Assim que vi as meninas saquei tudo. Eram iludidas a irem para a cidade grande, mas acabavam chegando ali. A maioria era do interior. A exceção era uma gaúcha, a mais velha, que por sinal batizou aquela indiazinha de Pequerrucha. Maria Chaleira, a gaúcha, se orgulhava de ser cantora lírica antes de ter essa vida. Mas não renega seu atual emprego de maneira nenhuma. Apenas fazia questão de lembrar os safados que reclamavam do serviço que tinham dormido com a mulher que apertou a mão da soprano Bidu Sayão.
Do Salão Shangri-lá, apenas solicitei os serviços de três ou quatro empregadas. Maria era uma delas. As outras duas eram Pimentinha e La Hespanhola, lindas morenas que mais tarde descobriria que eram primas. As demais eram menores de idade e o escrúpulo, moeda rara nessas bandas, me impedia, até certo ponto me enojava, sequer de flertar com elas.
“O professor prefere a experiência, né?”, dizia o dono da casa toda vez que me via. Vivia me empurrando alguma “novinha”, mas eu resistia. Por fim, cansou de fazer isso.
Voltando a Pequerrucha, era uma garota – 17 anos no máximo – cheia de curvas e com um olhar ora melancólico ora altivo. Já foi disputada a bala entre dois peões. Felizmente, nenhum deles ganhou, já que os jagunços de Raimundo deram cabo dos dois antes que arrumassem mais quebra-pau em seu bordel.
Em algumas semanas, Dr. Osmar, amado pelas irmãs da Paróquia, já era cliente com cadeira cativa naquele antro de pecado. Convidado, aliás, pelo próprio dono. Penso que Raimundo, homem de falsa humildade, queria que o jovem engenheiro ficasse em suas mãos, por isso patrocinava suas aventuras sexuais ali, onde suas empregadas poderiam espioná-lo.
Seja como for, ele já tinha sua “novilha” fixa (expressão do próprio). Pequerucha ora perguntava se seria capaz de fugir com ela, ora afirmava que iria esquecê-la com o fim das obras. No seu íntimo rezava para que a construção demorasse. Pois bem, houve uma noite em que seu amante encantado lhe revelou a meio caminho do sono que no outro dia derrubaria a dita árvore. A menina arregalou os olhos, ficou muda. Lhe deu um beijo, como se fosse uma despedida.
UM TRONCO MORTO PODE SER BEM TEIMOSO
Duas coisas muito importantes aconteceram em 17 de setembro de 1973. Primeiro, Chico Tapera, independente dos nossos protestos, foi levado por Coriolano Camarão para a delegacia de Quatro Pés. A segunda, a derrubada da famigerada casa do caboco.
Os tratores estavam a postos. Alguns peões tinham saído da linha de frente e ficaram a olhar tudo de longe. Não fossem os berros dos capatazes teriam sumido. Capinaram o entorno. O susto da manhã foram duas cobras corais imensas. Um trabalhador pegou uma delas e passou entre os dedos: “faz a gente tocar viola melhor”, explicou.
Osmar observava tudo de sua tenda improvisada ali perto. Quando viu as escavadeiras avançando suas pás no tronco oco, desviou o olhar. Terminou seu cálculo, mas um eis que aparece Armindo Tavares, rouco, chamando-o.
A árvore não tinha caído, mesmo com duas escavadeiras empurrando-a. Osmar pediu que repetissem o feito. Nada. O tronco balançava, mas continuava fincado na terra. Os presentes e as velas tinham sido pisoteados e amassados pelas rodas dos veículos. Eram nada mais que uma pasta de parafina e líquidos podres.
Armindo pedia machados, facões, motosserras. Poucos valentes obedeceram. Um deles se benzeu umas sete vezes antes de tacar a peixeira nas raízes. Na terceira facada, caiu duro. Saía sangue do seu ouvido. Os demais pararam.
-Morreu?
-Não, isso tudo é psicológico.
-Patrão, tá escorrendo sangue ali, olha!
-Levem ele pra tenda, usem os primeiros socorros. Já!
Osmar tinha deixado o lápis cair no barro. Estava boquiaberto. Armindo tentava não perder a compostura. Ainda ditava ordens, mas os corajosos com facões e motosserras tinham pensado duas vezes.
-Corte esse tronco!
-Corta você!
Estava perdendo a moral. Três ou quatro correram, o capataz segurou. Um homem destinado a provar que não tinha medo optou por enfrentar a árvore. Os dentes da motosserra já tinham aberto uma ferida no tronco. Mas a máquina parou. Quando examinava-a, repentinamente voltou a funcionar. Descontrolada arrancou-lhe a mão.
Desesperado, o homem urrava de dor. Um círculo de homens ao seu redor agora tentava estancar o sangramento com trapos de suas calças. Carregaram-no para longe dali. Armindo, saindo do choque, voltou a dor ordens.
As escavadeiras tentaram mais uma vez e nada. O jovem engenheiro se viu, em poucos segundos, no olho do furacão. Tudo aconteceu ao seu redor. Dois homens tombaram e a árvore não. Um vento sem igual atravessou o canteiro de obras. Alguns galhos voavam.
-Osmar, temos que derrubar esse troço!
-Calma, calma, calma... estou pensando.
No cérebro do rapaz algo se materializava no meio de tanto assombro e caos. Cordas... Precisaríamos de corda, anunciou.
-Dessa vez usaremos três escavadeiras, não é possível que ela não caía...
Em cada veículo, uma ponta da corda. Faltava amarrar as outras pontas no tronco. Quem queria fazer agora? Os capatazes tinham se afastado. Beto, o mais próximo e franzino, recebeu a ordem. Duvidaram de sua macheza. Claro que era macho, mas por um momento desconfiar de sua virilidade parecia ser um bom preço a se pagar por sua vida. Armindo foi com ele amarrar a corda.
-Você amarra essa.
-Eu?
Osmar se surpreendeu com a ordem, mas estava tão assustado que parecia um menino obediente. Se apoiou numa das raízes. Pode averiguar que elas estavam tortas, amassadas, mas ainda rijas. Quando terminou o nó observou bem o corte feito pela motosserra. Dele saía algo. Algo líquido e escuro.
Voltaram ao chão. Armindo pediu para ligarem as máquinas, mas os operadores já tinham descido. O jeito foi eles mesmos fazerem o serviço. Beto teimava que não poderia fazê-lo, que tinham de liberá-lo porque não sabia mexer em escavadeira. O grisalho engenheiro revelou os simples movimentos, não havia mais desculpa.
Ao seu comando, todos deram partida. O ronco do motor era tudo que importava. Ao vendaval tentavam impor indiferença, menos Beto. Cada escavadeira para um lado. Foram quatro minutos de tensão. As cordas arrebentaram uma por uma.
A casa do calundu sequer balançou.
Estava a essa altura na cidade vizinha, junto com Juninho e Mestre Quinho, tentando conseguir com o delegado turrão uns minutos com Chico. Sabia de sua total inocência, assim como sabia que seria espancado por Coriolano quando estivessem ás sós. Nosso objetivo inicial era impedir que o interrogatório começasse.
Na porta da delegacia ficamos. Eu disse que seria o advogado do velho negro, mas não houve respostas. O sargento barrigudo que tomava conta da porta não nos deixava entrar. Mestre Quinho, homem pacífico de tudo, já estava a um passo de iniciar um quebra-quebra.
Finalmente o infeliz apareceu. Suando como um porco, o delegado chegou pedindo para que calássemos nossas bocas se não iríamos pro xadrez também. Juninho pulou na sua frente. Gritava: isso é uma injustiça, isso é uma injustiça!
Três tiros. O cano fumegante de Coriolano calou a todos nós.
-Eu quero ordem nessa porra!
Uma turma de crianças apareceu. Estranho, porque em caso de tiro eles são os primeiros a correr. Mas o fato é que eles chegaram correndo e quando deram por si o circo já estava feito. Pronto para voltarem, foram indagado pelos delegado qual o motivo de estarem tão afoitos. O mais magrinho, recuperando o fôlego, disse: a árvore.
E no seu tom meio fanho ficamos inteirados da incrível batalha entre as escavadeiras e o tronco maldito. Ficamos sem reação. Entreolhares, se foi o que fizemos, foi muito. O próprio Coriolano engoliu seco a notícia.
-Não é possível, isso! Deixem de papo e sumam daqui!
Enxotou e voltou para sua caverna, sua delegacia. Nós continuamos ali, cada um com seu silêncio, com seu pensamento. Dormimos na porta da “chefatura de polícia”. Esperávamos poder falar com nosso amigo. E não sei se queríamos voltar depois daquela bizarra notícia.

 (CONTINUA...)
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*Encoberto: como o rei português D. Sebastião é conhecido em muitas partes do Brasil. No Tambor de Mina acredita-se que o rei não tenha desaparecido no Marrocos durante a batalha com os mouros em 1578, mas entrado em um portal que o levou anos depois para o Maranhão, onde faleceu. 

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Passos nas trevas


Tinha anoitecido. Nenhum sopro de luz. Continuava andando. Na sua cabeça era questão de tempo: mais um pouco e aparecerá um posto de gasolina ou no mínimo um borracheiro. As únicas luzes ali eram os vaga lumes: céu sem estrelas.
A mochila pesava demais. Cansaço já tinha lhe alcançado há mais de uma hora. Teimava em continuar. Não pode dormir na beira da rodovia. Quando acordar estará frito. O sol daqui não perdoa.
O vento assobiou. O assobio se estendeu. Engrossou. Vinha de trás. Olhou, não viu nada. Aliás, viu tudo. Quando se está na escuridão qualquer coisa aparece em forma de sombra. O som não parou. Parecia estar se aproximando. 
Recomeçou a andar. Andar não, correr. Nunca se sabe. "Mas será que ninguém vive pra esse lado dessa porra de rodovia?" O passo não era mais de mochileiro, mas de maratonista. Uma força lhe surpreendeu. Caiu no chão. Seja o que for acertou apenas a sua mochila.
Tentava prosseguir, mas os dentes dessa vez lhe alcançaram. Suas pernas foram primeiro. Logo em seguida o pescoço. Em minutos não restava mais nada além de sangue e alguns ossos da costela. Agora ele sabia porque ninguém vivia por essas bandas.

Bastidores - km 36

Eu sei que ficaria muito melhor se eu tivesse usado o Corel Draw ou o Photoshop, mas tentem entender: eu não sei mexer nessas merdas todas! Aqui a coisa é feita do modo antigo, na mão, rapaz! Desenhista amador  artesanal: raça quase extinta.
Mas, enfim, postei esse desenho para apresentar uma alternativa á primeira ilustração do conto Quilômetro 36. Achei essa muito melhor. Talvez quando fizer a versão completa do conto, essa se torne sua capa definitiva. Quem sabe, né? (sonha Vinicius, sonha!)

De Parintins para o esquecimento


Bem, ali estava eu, diante de um homem encurralado, pois com sua organização destroçada Thomaz procurava contato com outros sobreviventes. Mas nada indicava o desespero que certamente vivia: seu comportamento era calmo, tranqüilo, observador. E mais: bem humorado. Naquele tempo, meus interesses eram poucos: o violão, sobreviver com frilas, descolar algum para custear a artesanía de meus cigarros, nada de muito futuro, como se vê. Sob esse ponto de vista, eu e ele tínhamos pelo menos um ponto de contato – nada de muito futuro, já se veria. 

Esse é um trecho do relato do jornalista Marcus Veras sobre a última vez que viu Thomaz Meirelles, o Thomazinho. Envolvido com movimentos de oposição ao regime, inclusive de guerrilha, Thomazinho tem o triste mérito de ser um dos poucos amazonenses na lista de desaparecidos políticos do regime militar. Veras que o abrigou em sua casa por alguns dias faz nesse artigo um depoimento muito interessante. O texto pode e deve ser lido integralmente aqui no blog do Comitê da Verdade do Amazonas: O Cabeludo e o Guerrilheiro.

Os interessados nessa figura que nasceu em Parintins, mas desapareceu no Rio de Janeiro podem também consultar esse artigo de José Ribamar Bessa Freire em Taquiprati, onde é mencionado inclusive que o corpo de Thomazinho foi "sumido" pelo ex-delegado e freelance repressivo do regime na época, Cláudio Guerra: Thomazinho. Aliás, a imagem que encabeça esse texto é parte do site do referido Guerra que tem o mesmo nome do seu livro: Memórias de um Guerra Suja.

Agenda cheia!

jean cocteau: surrealista francês.

Não sou muito de apresentar a todos meus planos, mas hoje farei isso.
Ultimamente tenho o privilégio de estar fazendo parte de diversos projetos ao mesmo tempo, o que tem por um lado ofuscado os posts desse blog e por outro consumido muito mais da minha criatividade.
Desde de março tenho mantido uma coluna no site Almanaque Urupês, iniciativa memorável dos irmãos Angelo e Pedro Rubim de preservar a história e memória de Taubaté e do Vale do Paraíba paulista como um todo. O título dela é Manauté - junção das duas cidades que me inspiram diariamente: a capital do Amazonas onde atualmente resido e a terra natal de Monteiro Lobato, onde morei por 6 anos.
Os objetivos principais tem sido três: analisar a história e memória taubateana, relatar minha experiência enquanto morador de uma cidade pouco conhecida dos paulistas e comentar fatos e processos pertinentes do presente.
E a partir do começo desse mês passo a fazer parte da equipe do blog Fagocitando São Paulo do meu amigo Diego Gatto. É um projeto mais voltado para textos de opinião e/ou literários. Falando nisso, tenho certeza que quem acompanha o presente blog já deve ter percebido que o Bar tem se ocupado recentemente mais com contos (de todos os tipos: microcontos, nanocontos, contos tamanho família, etc.). Apenas estou experimentando um gênero que gosto muito. É um ótimo exercício narrativo também. Qualquer dia tentarei unir o tipo de narrativa com qual tenho me identificado com minhas pesquisas em História.
Voltando ao assunto, não bastasse isso tudo, também estou envolvido noutro projeto. Esse ainda em fase de realização, mas que posso adiantar a vocês que será fantástico. A proposta é ótima: unir 15 autores novatos, mas talentosos (cada um em um campo: poesia, crônica, contos, comentários esportivos, ensaios, etc.) que abordarão a cada semana o mesmo tema de perspectivas diferentes.
Existem também os projetos fora do mundo virtual. Dentre eles posso citar apenas um: uma peça teatral para a abertura da IX Semana da Consciência Negra da Uninorte. Será uma comédia que girará em torno do tema do evento desse ano: a África. Brincamos um pouco com os estereótipos e a história desse continente. Todo sábado ensaiamos. Todo ensaio termina com uma cervejada , digo, um happy hour. A experiência vem sendo trabalhosa, mas divertida. Assim como os demais projetos de que participo.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O ideal e o real na sala de aula.


Beber com os amigos, que alegria! Ainda mais quando é dia de jogo e não é o meu time que está perdendo. A propósito, minhas condolências ao Vasco, depois da surra do São Paulo.
Essa quarta feira foi cheia para mim. Cheia e molhada. Caiu um baita temporal na parte da tarde, justamente no momento em que saio de casa. Mas nem esquento, já é de práxis. São Pedro tem algo contra mim, eu sei.
Depois de bater um papo legal com os amigos na faculdade, fomos molhar a garganta. Nada de novo a não se o fato de que a companhia é nova. Novos amigos, novos papos. Um deles era exatamente sobre o objetivo da educação. Educar é transformar ou é libertar? Transformar pode ter um lado positivo e outro negativo, assim como libertar: libertar da ignorância ou libertar da inquietação?
Acredito que educar seja ambos. Transformar para libertar. O objetivo dos educadores é sempre formar cidadãos autonomos, já falamos disso aqui. Autonomia em que sentido? Estamos educando sujeitos para criar neles um espírito ainda um tanto iluminista, de que o esclarecimento resolverá todos nossos problemas?
São perguntas que sempre me aquietam.
Em nossas aulas ouvimos falar muito em "utopia transformadora". O que é isso? Seria a concepção de ensino como responsável por transformar o mundo. O professor de História, principalmente ele por causa da natureza da sua disciplina, teria então o dever de ajudar a mudar a triste situação do mundo a nossa volta através do ensino que nada mais seria que a criação de um espírito crítico nos alunos.
Quais as minhas ressalvas? Pode o pensamento crítico resolver tudo? Creio que não, ainda assim ele é um passo importantíssimo em direção a um mundo diferente. Podemos construir um mundo diferente? Sim, claro que podemos, mas o professor sozinho não consegue fazê-lo, daí a sua atuação ao lado de diversos grupos sociais que não somente os alunos. Vamos conseguir isso, dada a situação da educação brasileira?  Dificilmente, mas o que importa é continuar tentando. De uma coisa sei: a inércia não leva a nada.
A observação que tenho a fazer nessa quarta chuvosa é que a universidade, em se tratando das licenciaturas, procura dialogar com essa realidade e com o ideal. Claro, a realidade sempre desponta como predominante, mas a falta de um objetivo claro e, por que não, idealista faz com que todo nosso trabalho perca seu sentido. Sabemos que corremos o risco de transformar os alunos não em autonomos, mas seguidores de certa corrente de pensamento (do professor, por exemplo,  se o seu carisma for grande). Sabemos que a crença da educação redentora pode nos desviar de outras soluções pra nossos problemas estruturais. Mas ainda assim temos de seguir um ideal de certa maneira romântico porque esse "pequeno detalhe" faz uma diferença enorme no nosso cotidiano escolar. Até que enfim compreendo a grande contradição das disciplinas didáticas e pedagógicas ensinadas nas universidades - que nos estimulam inicialmente, mas que após o contato real com o estágio nos desencorajam - que é justamente isso: dar sentido a um trabalho importante. O ideal não é algo passível de ser realizado, parece óbvio, mas de ser perseguido. A procura por tentar imitar esse ideal é que cria mudanças no nível do real.
Espero que tenham entendido. Se não entenderam não me culpem, culpem o álcool.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Assim caminha Manaus...

Foto: Raphael Alves/ A Crítica.

Domingo o Brasil mudou. Se pra melhor ou pra pior é difícil dizer. Em Manaus a perspectiva não é das melhores. Há poucos minutos do resultado da apuração sobre os candidatos á prefeitura, Reizo Castelo Branco (PTB) já era tido como eleito por nada mais que 18 mil votos.
Os comentários que mais vi no Facebook foram: "Como isso pôde acontecer?" "Eu não entendo mais nada!" "Nessas horas dá vontade de sumir daqui de tanta vergonha".
Eu acho esse fato perfeitamente compreensível: o clientelismo ainda tá vivinho. A Zona Leste é uma das áreas mais beneficiadas pelo clã Castelo Branco, assim como o Educandos está para Bosco Saraiva. As obras, as cestas básicas, tudo, são o preço pelo voto dos moradores.
A função do vereador e do prefeito é justamente de melhorar a condição de vida dos cidadãos de sua cidade, mas não de forma paliativa como esses políticos tem feito, mas de forma profunda e eficiente. Assistencialismo ameniza, mas não resolve o problema. Sendo que há mais de 40 anos estamos adiando a solução. O assistencialismo tem agido como o barro que se coloca nos buracos nas ruas da cidade: não atrapalha, mas também não ajuda.
Foto: Anderson Silva/ G1.

Há ainda outro ponto: a disputa eleitoral para prefeito chegou ao impasse que será resolvido nas eleições de segundo turno. Entre Artur Neto (PSDB) e Vanessa Graziottin (PC do B), o povo se divide. Vanessa não parece estar preparada para o cargo, percebe-se pela sua campanha e seus discursos, apoiando-se geralmente em sua amizade com os governadores e a presidente. Artur esbanja personalidade própria, ainda que beire a demagogia e o ridículo, e tem ao seu lado a experiência. Arrisco dizer que ele ganhará.
Revelo que não simpatizo com esse candidato por dois motivos: primeiro por se posicionar como um paladino da Justiça e da Ética, sendo que até hoje não explicou os gastos de seu assistente no exterior quando ainda era senador, tampouco a sua aliança com ninguém menos que Amazonino Mendes. Em outras palavras, o considero um fanfarrão. Em segundo lugar, suas propostas podem ser ótimas para a iniciativa privada, mas não as enxergo contemplando os problemas essenciais da cidade de forma satisfatória. Parece que o PSDB em alguns aspectos (afinal, todo partido é plural e conserva elementos discordantes em seu bojo) confunde políticas sociais com assistencialismo.
Vanessa, por outro lado, defende que acolherá os movimentos sociais em seu governo. Estamos falando de cooptação. Assim como fez ao se batizar para atrair o eleitorado evangélico. Entramos de novo no papo do clientelismo. As questões como habitação e miséria poderiam ser tratadas de forma mais branda por seu governo, mas pendendo pra politicagem. Assim temos uma situação difícil em se tratando de questões sociais: ou oito ou oitenta. 
Outra coisa que considero um problema essencial é a forma como a prefeitura lidará com as transformações exigidas pela FIFA. Não creio que Artur, por mais que diga que tem pulso firme, irá combater medidas abusivas adotadas por causa da Copa. Muito menos Vanessa. Parece que falar mau da Copa é equivalente a um pecado político. Ou se está do seu lado ou contra, e os poucos que escolhem a última opção caem no ostracismo.
Resumindo, se pudesse, votaria nulo. Não por que assim fujo do dilema de escolher pelo menos pior - isso faço desde sempre, afinal, estamos no Brasil - mas por que não quero ser conivente com o sucateamento de Manaus e a continuação desse coronelismo velado. Ainda assim acho que voto nulo é muito pouco. Independente da minha decisão, alguém sairá eleito. Quem quer que seja deverá ser cobrado constantemente. Falo em pressionar nossos representantes, um dos nossos deveres, dos mais esquecidos. Mas pressionar não só no sentido de ganhar uma casa ou um emprego, mas de ajudar no bem estar da coletividade, afinal a cidade somos nós.

Enxergo muita gente indignada com o resultado do pleito. Mas indignação sem ação não leva a lugar nenhum. Espero que essa indignação continue nos acompanhando, só assim aplicaremos nosso dever de fiscalização. Parece clichê, mas precisamos de mais compromisso. 
Domingo o Brasil mudou, é inegável. No rank dos partidos que mais conquistaram prefeituras estão, até o momento, o PMDB (511), PSDB (395), PT (293) e PP (244). Em Manaus, os candidatos a prefeitura, com exceção de Henrique Oliveira e Jerônimo Maranhão, são velhas raposas. Políticos que pouco se reinventaram, mas ainda assim estão aí. Apesar das estatísticas apontarem que 55% da Câmara Municipal foi renovada, a sensação que se tem é de que pouca coisa mudou. 

QUILÔMETRO 36 II

Aí está a segunda parte do conto, espero que gostem.


NINGUÉM SEGURA ESSE PAÍS
Muquira estava em polvorosa. Lembro bem: foi numa terça feira. Dei a notícia no boteco do Waldinei, na presença de Mestre Quinho, Chico, Sabiá e mais outro. O velho Mestre Quinho até tirou os óculos. Pensei que veria uma lágrima sair dali.
-Vão tirar a gente daqui não é?
-Eu não sei. Só sei que vão passar pela árvore.
Chico deu um sobressalto.
-Bando de quimbundo* safado! Não sabem de nada, esses filhos dumas putas...
Primeira vez em que ouvi um palavrão vindo do grande Chico. Mestre Quinho não disse nada, ficou pensando. Mais tarde consultou Pai Andirá para saber o que aconteceria se derrubassem a morada do caboco. “Eu sei de uma coisa: muita desgraça vem por aí!”
Aquela terça terminava com um por de sol violento. A noite foi povoada de pesadelos. Eu quase cai de minha rede duas vezes. Sonhava com aquele totem novamente. Depois de tanto tempo...
Noutro dia perguntei se poderia ver novamente a árvore, só para fixar bem a sua imagem. Não vi nem sombra de Mestre Quinho. Estava tentando entrar na prefeitura. Seu Chico me respondeu: “Estamos indo pra lá mesmo...”
A caravana cruzou o mato. Pai Andirá com seus colares entre os dedos, remexendo-os, na frente. Os outros homens carregavam bacias com cachaça, batata e frangos degolados. Eu próprio carreguei uma delas. Novamente as vozes. Fiquei com vergonha de perguntar se só eu as ouvia.
Colocamos as tigelas entre as raízes. O babalorixá começou a rezar. Disparou algumas palavras em jeje e tombou no chão. Antes que o levantássemos, acordou. “Pronto, agora vamos ver...”, finalizou.
Pensei que esse tinha sido meu último encontro com aquele obelisco de celulose.
Dois dias se passaram e alardeava-se no Diário do Tapajós a chegada dos engenheiros e dos tratores. Pai Andirá tinha assegurado que nada aconteceria ao povo do Muquira: á eles pelo menos o calundu não dirigiria sua fúria. Mestre Quinho protestava quase todo dia na prefeitura. A secretária só não lhe evitava porque não tinha para onde fugir. Engraçado que ele sempre saía com a mesma camisa azul, o que lhe valeu o apelido de Azulão pelos mexeriqueiros.
-Lá vem o Azulão reclamar!
O alto e grisalho marceneiro ficava ainda mais fulo da vida com as brincadeiras. Começava a discursar para o vento, uma vez que todos se afastavam quando percebiam a intenção do ancião do mocambo.
Os tratores ficaram instalados atrás da Rua do Comércio, protegidos pelos capatazes do Sr. Raimundo Pereira, fazendeiro de cacau e mantenedor de um bordel do outro lado do rio. A recepção aos engenheiros partiu de Alexandre Patarra. Mestre Quinho compareceu, assistindo a tudo de braços cruzados. No meio da oratória, um vendaval arrebatou a folha da mão de Patarra. Despenteou também o belo Dr. Osmar Menegullo, o engenheiro chefe no alto de seus vinte e poucos anos.
O secretário de educação se recompôs e completou o discurso no improviso com um habitual viva ao presidente e o progresso. “Ninguém segura esse país!” foi o ponto final.
OS TERRÍVEIS “PIAUÍ”
Os tratores já tinham arrancado da terra úmida um cem número de raízes. O chão de folhas secas estava pelado.  Acompanhava o avanço das máquinas dia a dia o Dr. Osmar Menegullo e os seus assistentes, Dr. Péricles Santos e Dr. Armindo Tavares. Dois homens de meia idade que invejavam o cargo e a fama de seu jovem superior.
O número de candangos era proporcional ao número de frequentadores da Taberna da Lua. Confusão não faltava. Era cidadão tentando provar que era mais homem que o outro na bala e coisa e tal. Eu sei que a polícia dali, pela primeira vez na vida, teve trabalho.
E os policiais já tinham uma tipologia do crime: os cearenses eram mais de beber, os paraibanos eram mais enxeridos com as meninas-dama e os piauienses, esses eram brabos.  Tinha um bando de irmãos, os Piauí, que tinham uma fama lendária. Cada um deles carregava nas costas pelo menos sete óbitos. Mas morte mesmo ali, enquanto a construção rolava, nenhuma.
Por enquanto.
Um dia alguém surge na frente do escritório improvisado do Dr. Osmar. Um negro troncudo, braço cheio de veias, chapéu escuro, costeletas grisalhas, olhar miúdo, mas forte.
-Preciso falar com o senhor, Dr. Osmar.
-Pois não?
Depois de se cumprimentarem, Osmar percebe a falta de um dedo na mão de seu visitante.
-Sou morador dessas bandas, venho lá do mocambo. Me chamo Francisco. Nós lá, somos gente simples, sabe? Por isso o prefeito não nos ouve. Eu vim falar com o senhor, fazer um pedido.
-Qual seria?
-Por favor, lhe peço por tudo que é mais sagrado: não mexa naquela árvore.
-Que árvore?
-É um jatobá que tem há uns passos daqui. Grande, seca, escura. Tá cheio de coisa em volta dela. É que, o senhor pode até estranhar, mas vive um bicho, um espírito dentro dela e não é bom mexer com essas coisas.
O rapaz ouviu tudo. Os boatos do prefeito só foram confirmados por Chico: são macumbeiros contra o progresso. Disse que veria o que faria, que tentaria desviar a estrada da árvore. Mas entre o projeto e o mocambo não era difícil adivinhar quem ele obedeceria.
Naquele dia tive um sonho. Assim que acordei anoitei no meu caderno amarelo (das minha divagações próprias) aquela história surreal: Tudo estava embaçado, tudo cinza. Respirava ofegante, mas de uma forma estranha. Sabia que estava no mato, porque ouvia o som das folhas sendo pisadas. Sem ver e ouvir direito, corria. Sentia as folhas, os galhos roçarem em meu rosto. Não doía. Era então uma força selvagem. Disparei. Manchas brancas lá. Aproximei mais furtivamente. Sombras, aqui e ali. Avancei sobre as duas e o resto ficou no terreno dos sonhos esquecidos pela manhã.
O mocambo amanheceu com o cantar manhoso do galo de Dona Veridiana. Quando estava preparado para devorar o pão com tucumã de Dona Zuleide, minha anfitriã na comunidade, acompanhado daquele cafezinho forte o guarda me aparece. Pálido e sem fôlego.
-Vocês... notaram... alguma coisa estr... estranha, por aqui?
-Não, por que?
-Nada...
Dona Zuleide se impôs:
-Ah não, entrou na minha casa e não quer dividir a fofoca, eu expulso.
-Mataram... umas pessoas... os Piauí.
-Meu Deus! Veja só!
As notícias começaram a chegar, de todos os tipos e tamanhos. Com o tempo chegamos a um consenso: dois peões, depois de beberem, voltando para a sua tenda, foram emboscado pelos irmãos. Agora, onde estavam os Piauí? Numa hora dessas no Piauí de novo, arriscava Mestre Quinho.
O mais bizarro era o estado dos corpos. “Ticados”, no dizer do povo daqui. Ou seja, cortados em vários pedaços como um legítimo churrasquinho grego. E isso não foi obra de faca, mas de enxada, pelo tamanho dos cortes.
Pai Andirá chegou na reunião com um olhar dramático. Com aquela cara de que sabe de algo que os outros nem imaginam, tremendo o beiço (como era dramático!).  Mestre Quinho perguntava do afilhado se isso era um sinal do calundu. Isso não é um sinal, é um acerto de contas, revelou como se recitasse Macbeth.
*
O toque de recolher tinha atingido até a Taberna do Laerte. Não era algo imposto pelo prefeito, assustado, mas coisa da própria população, temerosa que os malfeitores voltassem e fizessem mais uma vítima.
Nesse momento as atenções recaíam sobre dois colegas de trabalho que tinham sido jurados de morte pelos irmãos. Um deles, um homem chamado Severino, andava armado com todo tipo de coisa, de facão a pistola. Sempre atento, sempre arisco.
As obras prosseguiam. Dr. Osmar aparecia agora só esporadicamente no caminho lamacento aberto no mato. A poucos metros do temido jatobá estava o próximo picão, demarcando a área que seria “limpada” em breve. Eis que surge no meio das obras um homem gritando.
Imundo, colérico, aquela figura carrega algo na mão. Uma cabeça!
-Eu consegui! Eu ganhei!
Olhando mais a fundo o homem misterioso revela-se ser Severino. Controlado pelos peões, põem-se a chorar.
-Pensei que ia morrer...
A cabeça. Um corajoso a pegou. Bateu o olho, reconheceu. Piauí, o caçula. É ele, carcomido, mas é.
Uma multidão esperava a polícia trazer o novo sortudo morador da prisão de Quatro Pés, cidade vizinha. O delegado encheu de porrada o homem. Queria ouvir algo com sentido da boca do sujeito, mas nada. Só dizia que se perdeu, que os Piauí apareceram, que os três irmãos viraram cem, um deles virou onça, outro sucuri. Desesperado e encurralado, avançou com seu facão. Só conseguiu atingir um deles. Depois saiu em disparada.
Essa história já é manjada. Alucinação de quem não entrega presente ao calundu. Resultado: perde-se o caminho, perde-se a razão. Mas a cabeça do delinquente era bem real.
Buscas foram feitas na mata do Muquira. Chico Tapera á frente. Eu, como sempre curioso e enxerido, estava no meio. Um cheiro podre atacou nossas narinas. As moscas denunciaram a posição dos defuntos. Todos os irmãos Piauí, até o degolado. Mortos há dias, deduzindo pelo estado de suas ossadas.  Sem rastro de bala ou de faca. Não trouxeram presente também, deu nisso, concluía seu Chico longe dos policiais.
Bem, nesse momento ainda se apegava á meu racionalismo. Cheguei a imaginar até um encontro a la Era uma Vez no Oeste entre os irmãos maléficos e o jurado de morte. Mas não haviam balas. A posição do mais velho me intrigava: ajoelhado.
A suposição de Mestre Quinho era bem interessante: o espírito matou os dois primeiros candangos por terem tocado na árvore quando estavam bêbados. Sabendo das mortes e que seriam incriminados por elas, os irmãos fugiram. Passaram pelo jatobá sem saber das oferendas. Ficaram amalucados e morreram, depois chegou a vez de Severino, que cruzou o caminho do espírito sem saber, e pagou com a perda da sanidade.
Muito interessante, mas refutei por não acreditar em espíritos. Alexandre Patarra também. Culpava os candangos por terem feito da nossa amada cidade o cenário de um faroeste sangrento. Na janela da prefeitura, Major Leão observava a cidade, recitando em segredo o Salmo 91.

RASTROS
Você pode imaginar como o clima ficou pesado na cidade depois da prisão de Severino e a descoberta dos restos dos Piauí. Os trabalhadores da estrada estavam tensos. Ouviam falar nas ruas que o culpado de tudo era uma visagem que vivia em um tronco. Era o bastante para pensarem duas vezes antes de irem descansar á sombra de qualquer árvore na hora do almoço.
As primeiras fugas começaram a preocupar o grisalho Dr. Armindo Tavares. A empreiteira, já preocupada, recrutava trabalhadores locais. Mas poucos se dispunham a enfrentar o terreno do calundu maldito.
Em Muquira se respirava medo, embora Pai Andirá garantisse que nada aconteceria com a comunidade. Até que ponto algo é 100% seguro? Uma vez em Nhamundá preparado para matar um jacaré amarrado e segurado pelos seus parceiros um homem morreu. O jacaré não precisou fazer nada. Ele foi levantar o machado, perdeu o equilíbrio e caiu do barranco. Quando parou de rolar, já tinha quebrado a perna. Morreu a caminho do hospital.
As obras foram interrompidas por um tempo. Uma rápida folga poderia afastar essa besteira de espírito do mato da cabeça dos peões. Osmar ainda acreditava ferrenhamente que o responsável pelas mortes era o negro velho que veio lhe falar. As mortes foram o meio que ele encontrou para barrar o andamento das construções. Não podia provar, infelizmente, mas já tinha apresentado a sua hipótese ao prefeito e ao secretário de educação.
Foi o bastante para que o esquálido secretário se tornasse Sherlock Patarra. Pegou seu fusca Wolkswagen 66, o carro mais possante da cidade até a chegada do Toyota amarelo de Menegullo, e foi para Quatro Pés. Da conversa com o delegado não pode aproveitar muita coisa. Severino continuava aluado. Conseguiu dois minutos com o prisioneiro para perguntar quem tinha o contratado para matar os candangos. Ao invés de “Chico Tapera” ouviu “Nosso Senhor Jesus Cristo”. No final do dia a sensação de ter gastado gasolina e tempo á toa veio.
Mestre Quinho evitava falar no acontecido, ao contrário de Dona Zuleide que para cada vez que mencionava o caboco se benzia três vezes. Eu apenas anotava a reação das pessoas em meu bloco de notas. Para mim isso tudo ainda era uma pesquisa etnográfica. Revirando as folhas do caderno amarelo encontrei coisas esquisitas. Era a minha letra só que muito mais inclinada e corrida, como se todas as aulas de caligrafia do jardim de infância tivessem sido em vão.
Era meu sonho, tinha anotado ele. Talvez após acordar suando em bicas tenha vindo á minha mente o desejo de registrar essa loucura para que futuramente um psicanalista a decifre. O fato era que não me lembrava de tê-lo escrito. Aos poucos algumas imagens e sensações foram emergindo e formando um quebra cabeça de peças soltas: aquele emaranhado de escuridão, sombras se movendo, as folhas e o barro sob o meu pé, o vento batendo no rosto como um chicote, gritos. Quebrei a cabeça a tarde inteira. Na falta de solução fui ao bar do Waldinei procurar respostas num copo de cachaça e num papo com os amigos. A embriaguez pode ser um bom método investigativo também...

(CONTINUA...)
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*Quimbundo: palavra de origem africana, forma pejorativa de se referir á alguém.