sábado, 30 de abril de 2011

Outro poema sobre o tempo

O Lugar
Efraim Amazonas



As traças consomem-se

no armário do quarto

a sala aberta

Foto: Cristiano Mascaro.
e visitada pelos fantasmas diurnos

que os mortos espiam.

 
Todos os parentes

se vão

Inquietos.

Só resta a mobília rija

as gualdras imóveis

nas gavetas. O olor

no fundo dos livros.



Os jornais permanecem

intactos

com suas folhas amarelas

e as notícias nunca sentidas.

Agora
todas vães.


Os passos se encaminham

para os fundos

onde o quintal

estende seu campo neutro

e as árvores exibem

Abóbadas cansadas.



Os muros esculpidos

por entes selvagens

titubeiam

Sua força escassa.



A voz

salta nos âmbitos

inunda-se das mortes

sujas nas paredes.

Agarça implume

voa a desgraça estreita

repartida nos cantos.



De quem é a certeza

desses frutos

que frios adormecem na calçada?



Movem-se as prensas imaginárias.

Outra vez a ferrugem

espanta-se nas fendas.


 
Os anos dos anos

decaem

impossíveis.

Agora é que são elas

A Amante, Edda van Marschen.
Hoje vamos refletir um pouco sobre um texto da historiadora Michelle Perrot presente em seu livro Excluídos da História que trata sobre a relação de gêneros e o poder político. O título não poderia ser mais objetivo: As mulheres, o poder, a história.
A autora escolheu muito bem as palavras no título e nessa questão as palavras tem um peso enorme, como alerta no começo do artigo. Poder no singular é o símbolo da figura central do Estado, enquanto no plural é entendido como pequenas formas de poder dentro da sociedade civil. O que as mulheres têm a ver com essa semântica? Ora, muitos historiadores e antropólogos atuais tentam demonstrar através de suas pesquisas que as mulheres não tinham o poder, mas os poderes. Aliás, os poderes podem ser mais influentes que o poder.
Essa conclusão, no entanto, tem seus perigos: ela pode ser utilizada pelo anti-feminismo como argumento. "Ora, se elas tem o poder de fato o que querem afinal?" E de fato, foi utilizada. Perrot analisará brevemente como é criado no século XIX um discurso onde a mulher é encarregada do espaço privado e o homem do poder público. Já havia antes a idéia de que a mulher tinha um poder considerável sobre o homem, seja para o bem ou para o mal. Isso pode ser observado na imagem da mulher fatal, conservada pelos românticos, e da mulher enquanto mãe, responsável pelos destinos da Humanidade.
Seja como for, a mulher atuava nos bastidores. A marginalização da mulher é algo estrutural na sociedade ocidental, o que muda são apenas os pretextos e no século XIX o principal deles é de que a mulher não estava preparada para o poder, seja porque era governada pelas emoções ou porque ao tentar conquistar o poder estariam pevertendo o equilíbrio dos sexos.
Essa magrinalização ganha uma nova dimensão no século XIX quando dois conceitos são redefinidos: o público e o privado. Muito já se falou sobre ambos, mas o que Perrot quer nos apontar é que ao homem será reservado o poder público político, enquanto a mulher tem de se contentar com o poder familiar e privado. O conceito de mãe e dona-de-casa é resgatado e saturado.
Essa ideologia ofusca nosso olhar para o passado e para o presente: as pesquisas históricas agora demonstram o peso das mulheres na indústria têxtil e nas agitações de rua na França do século retrasado por exemplo - embora, lembre a autora, não seja possível faze rum quadro geral de como os sexos se relacionaram, afinal cada região tem sua especificidade. E no presente? Hoje ainda há aquela idéia de que a luta da mulher não deve se concentra no poder político, mas no social, numa espécie de ante-sala do pdoer público e político. E com isso o movimento feminista estaria repetindo um falso paradigma criado há dois séculos atrás.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Tempo de reformas

Em 1517, o monge agostiniano alemão Martinho Lutero prega na porta da universidade em que lecionava em Wittenberg um panfleto com noventa e cinco argumentos contra a venda de indulgências. O documento ficou conhecido como As Noventa e Cinco Teses, mas na realidade era uam tese acadêmica apresentada antes com o título de Esclarecimento sobre o Poder e a Eficácia das Indulgências.
Esse ato é considerado o início de um movimento do século XVI conhecido como Reforma Protestante. Mas antes de falarmos da Reforma, vamos esclarecer alguns pontos.

Primeiro, Lutero não queria atacar a Igreja Católica e, principalmente, não queria largar ela. Lutero estava preocupado com a questão da salvação. Até então, a idéia que se tinha era de que a salvação deveria se conquistada por meio de uma vida em prol de boas ações. Só assim o paraíso seria alcançado. Lutero discordava dessa visão, pois, com base numa leitura atenta do Novo Testamento, encontrou na fala e no ato final de Jesus uma salvação garantida á todos os homens desde que se convertesse.

O que motivou uma reflexão sobre essa questão foi uma situação recorrente na Europa medieval: a venda de indulgências. Indulgência era o termo dado para se anistiar algum pecador de uma sentença proferida por um padre, como, por exemplo, rezar cem Ave Maria. No entanto, o povo começou a entender essa prática como uma espécie de maneira de limoar seus pecados e comprar um lugar no Céu, e muitos pregadores se aproveitaram disso. Johann Teztel era um deles. Esse padre tinha uma oratória tão virulenta que conseguia convencer todos a comprarem suas indulgências. Quando o papa Leão X precisava de fundos para construir a Praça de São Pedro recorreu á Teztel e suas vendas.

Johann Teztel
A entrada de Teztel em Wittenberg motivou a ação de Lutero, que acreditava que essa prática não chegava ao conhecimento da autoridade papal. Ao fixar as Noventa e Cinco Teses na porta da universidade, Lutero estava tentando começar um debate sobre a validade dessa prática e, quem sabe, convencer as autoridades locais a abolirem tal ação. O historiador Carter Lindberg nos fala que Lutero não era um homem carismático como Teztel, mas um jovem dedicado aos estudos universitários. Sua intenção não era atrair tanta atenção e ódio assim.

Lutero na Dieta de Worms.
A Igreja Católica já tinha um histórico de pequenas teses que se tornaram movimentos perigosos anti-clericais, como os cátaros do norte da França por exemplo. Justamente por isso sua reação contra Lutero foi dura e severa. Em 1520, ele foi chamado pelo imperador do Sacro Império Germânico, Carlos V, para expor sua tese e se retratar (esse episódio ficou conhecido como a Dieta ou o Edito de Worms). Mas Lutero não arreda o pé, por causa disso é excomungado pelo papa e declarado fora-da-lei pelo imperador. Antes de ser levado para a prisão, um admirador seu, o príncipe Frederico, o Sábio, o resgata e o protege em seu castelo. Nesse castelo ele ficará por seis meses, onde se dedicará a traduzir o Novo Testamento para o alemão.

Liga Schmlkald.
Carlos V lutou contra Frederico e seus aliados por muito tempo, mas tinha preocupações maiores: a França e o Império Turco Otomano. Os nobres que se tornaram simpáticos á Lutero formaram uma espécie de aliança, a Liga Schmalkald, mas que foi derrotada em 1547. O luteranismo já tinha se difundido e então o imperador decide reconhecer a validade da religião de cada reino, decretado a partir da Paz de Augsburg.
Lutero não queria se separar da Igreja, mas encontrou apoio nos príncipes germânicos que eram contra os duros impostos vindos do Sacro Império e da Igreja Católica. A salvação incondicional parecia ser muito conveniente para eles. Ele também foi interpretado de uma maneira diferente por Thomas Münzer, pregador alemão. Para ele, a reforma pregada por Lutero era uma reforma social também, o que motivou inúmeras guerras camponesas contra os senhores e a Igreja.
No entanto, a Reforma não se concentrou só na Alemanha e não foi motivada somente pela insatisfação com a venda das indulgências. De país para país, a Reforma teve sua especificidade.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Entrando para História...

Não há como escapar dele. Quem se dedica á História do Brasil, em algum momento tem de falar de Getúlio Vargas. Esse gaúcho de Borja passou 15 anos no poder, utilizando dos mais diferentes meios para isso. Dizia estar fazendo isso pelo Brasil. Até hoje muitos se dividem sobre seus reais motivos - se era por nacionalismo ou interesses próprios mesmo. Se o seu caráter é discutível, o que dizer então de seu fim?

Em 24 de agosto de 1954, Getúlio teria pego seu revólver com cabo de madrepérola e tirado a própria vida com um tiro no peito. Por que ele, um governante tão inteligente e carismático, teria feito algo do tipo? É o que muitos se perguntam, dentre eles seus próprios admiradores que ainda apostam na hipótese de assassintato. Para entendermos o suícidio (com aspas ou sem) devemos antes de tudo entender o momento em que ele se encontrava.

Desde que fora obrigado á se retirar da presidência em 1945, por pressão do Exército que já estava desencantado com as ditaduras fascistas européias. Contudo, Vargas já tinha costurado as alianças que o trariam de volta: o trabalhismo, movimento que ajudou a construir durante o Estado Novo, e o comunismo, o qual perseguira, mas anistiará ao fim de sua ditadura, eram duas forças que juntas formavam o que ficou conhecido como Queremismo (de "queremos Getúlio").

Marecha Eurico Dutra.
A redemocratização teve como seu primeiro presidente eleito o Marechal Eurico Gaspar Dutra, braço direito de Getúlio durante todo seu governo. Dutra era uma solução para o impasse entre o movimento de oposição á Vargas como a União Democrática Nacional (que nasceu nos anos finais do Estado Novo como a reação liberal a um governo que tinha simpatia com o fascimo e ao mesmo tempo lutava ao lado dos Aliados) e o popular Queremismo. O gabinete formado então era em grande parte da UDN e tomou decisões na tentativa de aprofundar os laços do Brasil com os EUA, essas medidas foram aproveitadas pelos norte-americanos para ampliar sua zona de influência, principalmente econômica.

O carnaval de 1950 teve como uma das marchinhas mais populares "O Retrato do Velho", uma alusão á volta de Getúlio. E botaram não só o retrato do velho como o próprio velho no mesmo lugar. Vargas foi eleito, mas como o voto ainda era desvinculado por lei, seu vice foi Café Filho, da oposição. Getúlio fez questão de se cercar de seus colaboradores habituais, dentre eles um jovem João Goulart, mas ele não podia controlar o Exército que se mantinha desconfiado das pretensões ditatoriais do presidente eleito. Vargas, que era anticomunista ferrenho, teve que se acostumar ao jogo político da Guerra Fria, por isso sua maneira de conquistar aliados era apostar no nacionalismo. Assim ele conseguiria o apoio não só de muitos membros do Exército como dos comunistas que lhe consideravam um mal menor se comparado com a UDN e os EUA, como pensou Luis Carlos Prestes.

Vargas era alvo de desconfiança dos setores ditos liberais e simpáticos ao EUA (apelidados pelos varguistas de entreguistas) e diariamente era alfinetado na imprensa, uma vez que os grandes jornais como a Tribuna da Imprensa e a rede de Chateaubriand, dos Diários Associados era da oposição. Deve se destacar a figura de Carlos Lacerda, inicialmente comunista que se tornou orador da oposição. Em seus artigos e discursos atacava o governo sem dó nem piedade.

Carlos Lacerda
O segundo governo Vargas foi extremamente conturbado: havia a ameaça onipresente de um golpe ditatorial na cabeça dos opositores e de um golpe militar na cabeça do governo, além das taxas de inflação serem altas e as greves constantes. Uma medida em especial atraiu a cólera da UDN: o aumento de 100% no salário mínimo decretado pelo ministro do trabalho Jango Goulart com o consentimento de Vargas. Essa medida era entendida como um meio de gerar conflitos na sociedade e com isso o velho caudilho ter um pretexto para instalar uma nova ditadura, agora com o apoio dos operários e dos comunistas. Os jornais atacavam mais e mais Vargas e muitos militares deixaram de apoiá-lo.

Carlos Lacerda sai do atentado com o pé ferido.
O pivô da crise foi um atentado cometido contra Lacerda, onde foi morto um colega seu, um jovem major da Aeronáutica. As Forças Armadas iniciaram um inquérito para apurar o "atentado da Rua Toneleros" e chegaram á um grupo de bandidos contratados pelo chefe da segurança pessoal de Vargas, Gregório Fortunato. As investigações apenas pioravam a imagem de Vargas, agora ele era visto num mar de lama como um assassino. A conclusão das investigações, depois de dias no que ficou conhecido como a República do Galeão, foi de que Fortunato teve a idéia sozinho e não envolveu o presidente, mas a UDN não se contentou com isso.

Gregório Fortunato.
Assim, podemos entender o suicídio como a única saída possível para Vargas. Ele representava uma maneira de escapar de uma situação embaraçosa e ao mesmo tempo uma forma de reverter o jogo: com sua morte a UDN seria a carrasca e ele um mártir. Na manhã em que a notícia foi dada, muitos saíram nas ruas dizendo "mataram o velho!" A reação passou do luto, acompanhando o cortejo fúnebre, ao apedrejamento das readações dos jornais da oposição e explosões de vandalismo no centro da cidade do Rio de Janeiro.

Acredito que o suícidio tenha sido parte de uma estratégia política, mas também fruto do desespero de Vargas (os estudos demonstram que o político já sofria um pouco de arteriosclerose, uma pressão no cérebro que com os anos pode transformar a pessoa em um neurastênico ou provocar um derrame). E uma estratégia que deu certo. A imagem de Vargas foi purificada do atentado e se tornou tão forte e cristalina que todos seus herdeiros políticos foram empossados, para desgosto da oposição, como Juscelino Kubistchek e Jango Goulart. Ainda hoje podemos escutar algum senhor ou senhora de considerável idade lembrar com admiração da figura do pai dos pobres.

Questões levantadas por um marcador

Quando criei o marcador "cultura" nesse blog acabei entrando em um dilema espinhoso: como classificar o que é cultura e o que não é cultura dentro dos posts que faço? Ora, religião e política podem ser encarados como parte de uma cultura. Esse dilema desemboca numa questão muito maior: o que é cultura?

Cultura é um desses termos que carece de uma definição "definitiva", por assim dizer. Muitos ainda discordam sobre o que podemos considerar como cultura. Os maiores responsáveis por levantar dados sobre cultura e por se debruçar numa definição são os antropólogos, então recorramos á eles:
Ruth Benedict diz que a cultura é como um óculos, através de suas lentes enxergamos o mundo de uma maneira diferente de acordo com a lente usada.
Já Darcy Ribeiro considera como cultura a reunião de todos os bens de uma sociedade, sejam eles materiais ou simbólicos.
Marshal Sahlins acredita que a cultura é um campo da sociedade onde estão todos os códigos de ação de seus membros, sendo estes códigos mutáveis, históricos.

Importante ressaltarmos que antes da antropologia se tornar o campo privilegiado da cultura, era comum pensarmos cultura como o conjunto de valores e símbolos (Kultur, na Alemanha, por exemplo) ou como a reunião das realizações materiais (Civilization, na França). E se enraizou em nossa mente uma idéia romântica de cultura como algo imutável, o espírito de um povo (na verdade, isso é um discurso presente na construção de qualquer Estado nacional).
Para nos ajudar vamos nos sustentar em alguns pontos defendidos pelo antropólogo Roque de Barros Laraia no seu livro clássico Cultura: um conceito antropológico. Segundo Laraia, todos concordam atualmente que:
-A cultura condiciona o aspecto biológico e geográfico de nossas vidas, basta nos lembrarmos das deformações infligidas em muitos povos nos seus corpos e as obras cosntruídas para superar as barreiras físicas do relevo. Isso é até importante para atacar duas concepções que dominavam a cabeça dos cientistas do século XIX e XX: os determinismo biológico (raça) e geográfico (clima).
-A cultura possui uma dinâmica, ela não é estática; pode mudar com as gerações ou com o contato com outra cultura, por exemplo.
-A cultura tem uma lógica própria, por isso não podemos tentar entender uma cultura usando a nossa como padrão: a nossa cultura tem uma lógica e as outras tem a sua também. Fazer isso é ser etnocêntrico. A fórmula utilizada pelos antropólogos para pesquisar outros povos é o relativismo, tentar se desprender de nossos valores e adotar o dos outros povos.

Os antropólogos andam discutindo sobre cultura desde a década de 1920 mais ou menos, através da figura lendária de Franz Boa em grande parte. Na metade dos anos 60 na Inglaterra, por sua vez, uma série de estudos sobre cultura foi produzido por pensadores marxistas com uma visão mais crítica dos processos históricos; estes se dedicavam a falar da cultura e não somente da economia e lembravam que a cultura também é um campo de relações sociais (de dominação e resistência, por exemplo). Antes deles, no entanto, houve a Escola de Frankfurt, um grupo de marxistas não-ortodoxos que se dedicaram a analisar a arte e a cultura dentro do capitalismo. Atualmente, podemos encontrar um grupo que se autodenomina de culturalistas e que recolhem a contribuição de todos esses pensadores. Existem em alguns lugares a disciplina Estudos Culturais. Aliás, cultura é um conceito cada vez mais político: com a globalização e o neoliberalismo, é frequente hoje vermos muitos intelectuais e até comunidades utilizando o conceito de cultura como uma espécie de bandeira contra esses dois processos.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Uma cidade fantasma muito viva

Avenida Eduardo Ribeiro, Cristiano Gonçalves, 1960.
Manaus na historiografia nacional surge do nada com o boom da borracha e depois desaparece com sua queda, reaparecendo mais tarde, somente no final da década de 1970 com a instalação da Zona Franca. Entre o fim da Belle Epoque e o começo da Manaus industrial há um intervalo de esquecimento e inércia, segundo a historiografia local. Manaus, aquela cidade que se inchou com a economia gumífera, simplesmente teria parado no tempo. A imagem que temos é a de Manaus enquanto uma espécie de cidade-fantasma.

Uma visão do bairro de Educandos, arquivo pessoal.
Muitos pesquisadores que viveram aquele tempo tentam mostrar que Manaus não estava tão estagnada assim. A vida podia ser precária, com serviços urbanos deficientes, mas a cidade continuou respirando, só que de uma maneira diferente. O professor Arcângelo da Silva Ferreira consegue demonstrar isso em seu artigo "Bumbá ou a reinvenção do cotidiano da cidade".
A proposta do artigo é encontrar num conto do escritor manauara Carlos Gomes (membro do Clube da Madrugada, movimento literário que ajudou a sacudir um pouco o ambiente cultural de Manaus a partir da década de 1950) chamado Bumbá pistas para encontrar o cotidiano da cidade de Manaus nestes anos de "esquecimento".
Qualquer tipo de análise de uma obra de arte deve ter duas gerações: o texto (as técnicas, o propósito, ou seja, todos os elementos presentes na própria obra) e o contexto  (as condições em que foi criada a obra, o momento porque passava o autor quando "pariu" sua obra). Gomes foi, por boa parte da vida, funcionário público, principalmente na Assembléia Legislativa. Possuía uma orientação marxista que se faz presente no conteúdo social de sua obra.

Bumba-meu-boi, Altamir Martins.
O conto em questão tem como protagonista um "preto velho maranhense" chamado Severino. Ou seria o boi que preparou, que ganhou o apelido de Estrela pela mancha em sua cabeça, o principal personagem? Difícil saber. O boi feito por Severino se torna febre no bairro, um bairro pobre onde a energia elétrica era "visita bissexta". Mas quando chegava junho, o bairro inteiro se encontrava ali, no arraial do boi Estrela. Ali o comércio, por meio da mulher de Severino, prospera e até mesmo os meninos e meninas vivem seu momento mais mágico por conta do boi - a descoberta da sexualidade nos locais menos vistos.

Estrela era o boi preferido desse bairro, chegava a ser admirado por grandes figuras da cidade, mas existiam outros. O seu maior rival era o Boi Malhado. Em certa ocasião, para provocar o adversário, Severino entra com seu boi no território inimigo e então a festa vira quebra-pau. Estrela, na luta, se desmancha. Seu criador, tentando apartar a briga, também acaba falecendo.

Ora, existem muitas pistas preciosas nesse pequeno conto: a origem africana e maranhense da festa do Boi Bumbá personificada na pessoa do criador de Estrela; a presença marcante dos imigrantes, afinal, se o bairro todo aderiu á festa pode ser que eles fossem maranhenses também, já possuindo simpatia pelo folguedo; os serviços urbanos precários aparecem na descrição nada animadora do bairro, onde a eletricidade era ave rara; a resignificação do folguedo popular, ao ser admirado por grupos mais abastados da cidade e a espacialização da cidade, afinal cada bairro tinha o seu boi e havia uma linha invisível que demarcava as fronteiras de seu território.

Essas são apenas algumas pistas, mas talvez a mais importante seja essa: o protagonismo da festa. O que vemos são pessoas orbitando ao redor do Boi Estrela - o comércio, o namoro, as brigas, o trabalho. A festa se enraizava no coração dos moradores ao ponto de se tornar motivo de batalhas, como vimos. Numa cidade abandonada pela economia internacional, o viver urbano deixava de ser pautado nos valores europeus e burgueses para se concentrar no folclore e nas festas populares. Embora esse seja um viver mais tímido, comparado ao anterior, é um viver e deve ser visto. Aliás, é até muito interessante como o povo conseguia resignificar o espaço da cidade, criado para se transformar em uma Paris nos Trópicos, criando novas práticas culturas, reinventado o cotidiano. Quando a energia elétrica chega ao bairro, a estrela vermelha de papel que ficava no alto do curral do boi passa a ser iluminada por lâmpadas: a modernidade chega e ajuda a tradição.

O conto de Carlos Gomes está presente no seu livro Mundo Mundo Vasto Mundo, lançado em 1966. A data é emblemática: o mundo estava dividido pela Guerra Fria e o Amazonas assistia ao avanço do trabalhismo na figura dos políticos Plínio Ramos Coelho e Gilberto Mestrinho. No entanto, nessa mesma época o Brasil se encontrava no regime militar, sendo que muitos desses políticos trabalhistas foram cassados. Já se esboçava um projeto para transformar a Amazônia um local economicamente ativo: a Zona Franca de Manaus. O conto de Gomes, então, pode ser encarado como um retrato (não verídico, mas próximo disso) da cidade e, ao mesmo tempo, como um manifesto contra esse projeto econômico imposto á região, como fora o anterior imposto pelas firmas estrangeiras. A Zona Franca poderia trazer mais desgraça ao Amazonas, como trouxe o aviamento, além de apagar da cidade essa vivência folclórica, como os urbanistas da Belle Epoque tentaram fazer com a cultura tapuia em busca de uma cidade "civilizada".

"Argumentamos que as transforamções urbanísticas na qual Manaus está experimentando fez Carlos Gomes representar através de seus contos, outra Manaus" (p. 153, Ferreira, 2010). Uma Manaus que não é mais movimentada pela borracha, pelo ritmo da produção e escoamento. Uma Manaus agitada por um ritmo diferente: o das festas folclóricas, dentre outras atividades.

Referências:

FERREIRA, Arcângelo da Silva. Bumbá ou a Reinvenção do Cotidiano da Cidade. In: Clio Uninorte: História em Perspectiva. Ano 1, n. 1. Manaus: Uninorte/Laureate, 2010.

domingo, 24 de abril de 2011

Um poema sobre o tempo

Correnteza
Luís Fernando Borges

O rio deita o ritmo
Com suas águas,
Que nunca são as mesmas.
O rio de nossas vidas
É onipresente relógio.
Onde o conjunto
Hora,
Minuto
E segundo
Formam a correnteza
Cuja água parece a mesma,
Mas não é a que se vê agora.

Ao acabar este poema
O que você viu
Vai pertencer ao ontem:
O segundo que passou
Já virou lembrança,
Cristalizada na memória
E enterrada no coração.

Uma história sobre duas "surrealistas"

A Caravela, Salvador Dali.
O surrealismo é um movimento artístico que surgiu na França na década de 1920. Como um espécie de reação ao racionalismo que, segundo muitos, tinha provocado a Primeira Guerra Mundial, os surrealistas se amparavam na psicanálise (principalmente de Freud) e elegiam como o principal objeto de sua arte o inconsciente, essa parte de nossa mente que guarda impulsos, instintos e lógicas desconexas.

André Breton
O Manifesto Surrealista de 1924 é considerado a sua certidão de nascimento. Assinado pelo poeta André Breton que nele declara o seu amor pela imaginação ("Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares".) e a sua aposta sem receio nela ("Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação".)
O surrealismo, como boa parte das vanguardas artísticas que surgiram no começo do século passado, contestava o conceito de arte: a arte não é só aquilo que vêem das mãos de um virtuose na academia, existem artistas anônimos também. Assim, eles se concentram em aspectos mais primitivos, em algo dedicado á conceitos e não mais representações de imagens, por exemplo.
Breton, por exemplo, tentava libertar seu inconsciente através da escrita automática. O que viesse na cabeça ele escrevia. Salvador Dali escrevia seus sonhos para depois torná-los pinturas. Os surrealistas procuravam libertar a imaginação, valorizavam o inconsciente, mas não se desligavam tanto assim da realidade. Muitas de suas obras iam contra aquilo que chamamos de "a moral e os bons costumes", com suas imagens carregadas de sensualidade e de dessacralização (talvez o melhor exemplo seja Simão do Deserto, filme de Luís Buñuel).

Tróstky, Rivera e Breton em 1937.
Quando Breton visitou o pintor muralista Diego Rivera no México e encontrou na sua casa o líder bolchevique Leon Tróstky resolveu fazer uma espécie de manifesto, demonstrando que o movimento surrealista tinha um comprometimento com a liberdade e com a revolução. Trostky representava a dissidência do stalinismo, do regime totalitário que a União Soviética havia se tornado.
Na mesma visita, o poeta francês conheceu a cultura mexicana e a mulher de Rivera, Frida Kahlo. É sobre ela e uma outra pintora, dita surrealista, que falaremos aqui hoje.

Frida Kahlo
Frida Kahlo era uma mulher marcada por muita dor e angústia. Primeiro, aos seis anos contraiu poliomelite o que fez uma de suas pernas enrijecer demais. Com dezoito anos, e já tendo aulas de pintura, sofre um acidente: o trem em que viajava se choca com um bonde e as ferragens penetram em sua perna e em sua genitália. Ela dizia que com os anos, a dor retornava diversas e diversas vezes, principalmente por não poder mais ter filhos.

Frida e Rivera
Mas ela também foi uma mulher dedicada ao amor. Frida conheceu o pintor muralista nas reuniões do Partido Comunista Mexicano, na década de 1920, e se apaixona. Mesmo ele sendo mais velho, Rivera foi o amor de sua vida. Ambos tiveram uma relação tempestuosa: Kahlo era bissexual e tinha casos com outras mulheres, o que era aceitado por Rivera, e este tinha caso com outras mulheres, uma delas a irmã de Frida, o que causou, aliás, a sua separação.
Em 1940, ambos retornam, mas os casos extraconjugais e as brigas de ambos continuam. Frida falece em 1954 de pneumonia, mas o caráter de sua morte ainda é controverso: alguns apostam em suícidio e outros em assassinato por parte de uma das amantes de Rivera.
A vida de Frida é essencial para entendermos sua obra, pois sua obra é sua vida, literalmente. Os desenhos feitos por Frida retratam seus sentimentos sobre determinados períodos de sua vida. Suas pinturas são quase um diário íntimo. Por isso ela recusou o título de surrealista: "Nunca pintei sonhos. Pintava a minha própria realidade".
Nós podemos ver isso nos quadros a seguir:

Sem Esperança
Sem Esperança, por exemplo, representa o momento de depressão em que a pintora vivia com as constantes dores do acidente que sofreu. Mesmo sentimento pode ser percebido no filho que não pode ter por causa de seu acidente:
Hospital Henry Ford.
Aí vemos o filho que não veio, a bacia fraturada, o hímen perdido e uma flor murcha: nada poderia ser mais objetivo, nada poderia traduzir melhor o que ela sentia.
Nesse quadro, chamado Auto-Retrato em Tijuana com Diego em meus Pensamentos, Frida aparece vestida com trajes brancos simbolizando a pureza e com um pequeno arranjo de flores sobre a cabeça - ambos são elementos típicos da cultura e do folclore mexicano, do qual ela se aproveitava constantemente. E vemos o seu grande amor em sua testa, representando esse homem que não saía da sua cabeça.
A obra de Frida é fácil de ser decifrada e é interessante por nos dar um vislumbre da vida de uma pessoa, dessa artista, através da arte.

Raquel Forner
Agora, falemos da outra pintora - parece um desrespeito aliás essa frase: "outra pintora". Como se o talento de Frida apagasse o talento da argentina Raquel Forner (1902-1988). Mas Frida ainda é uma das maiores artistas da América Latina pelos motivos que expus aqui acima. Raquel Forner é pouco conhecida do público brasileiro (o Brasil continua ensimesmado, como se não fosse parte da América Latina, e com essa ignorância perdemos muito), mas é uma das maiores pintoras argentina, tanto no campo do surrealismo como do expressionismo.
Aliás, Raquel, formada na Academia Nacional de Belas Artes de Buenos Aires e casada com o escultor Alfredo Bigatti, também recusava o título de surrealista e dizia ser mais simpática ao expressionismo. Embora tenha explorado um pouco o surrealismo, produzindo telas primitivas e oníricas, Raquel se dedicou basicamente á uma arte cheia de um simbolismo acessível, uma arte que traduzia e expressava sentimentos e opiniões através de signos conhecidos.

A Torre de Babel
Em A Torre de Babel, por exemplo, vemos alguns rostos femininos chorando ou sendo escondidos com uma lona por pequenos homens que parecem talhar essa pedra bruta onde eles se localizam. Ora, essa é uma alegoria sobre a condição feminina numa sociedade profundamente machista. Ali, a mulher é construída, talhada, pelo homem e com isso sofre e é marginalizada.
O Segredo
Já na tela acima, uma mulher aparece sendo consolada por uma figura misteriosa. Essa figura misteriosa, coberta com os pedaços de tecido pendurados, é o segredo. Alguns dizem que esse segredo simboliza adultério, mas pode ser algo mais simples, qualquer tipo de segredo íntimo ao qual nos amparamos.
Uma das minhas telas preferidas de Raquel é justamente essa abaixo, pois ela consegue resumir um, no dizer de Drummond, um tempo partido, de homens partidos.
A Caída.
Raquel era comunista e vivia numa sociedade muito simpática ao fascimo, afinal a Argentina na década de 1930 era marcada por golpes militares e uma onda conservadora e autoritária na sociedade civil. Por isso a obra de Forner tem muito de trágico, ela é uma voz contra o mundo obscuro, machista e conservador em que vivia. A Caída, por sua vez, reflete o clima de acirramento da política, com o começo da Segunda Guerra Mundial. Forner vê um mundo em ruínas, do qual surgem duas mãos (não sei se em sinal de socorro ou de resignação) com feridas sangrando (seriam chagas, estigmas?), um céu de bombardeio, um homem enforcado, uma mulher chorando e, em primeiro plano, ao lado de um tronco morto, a figura da morte. Esse não é o melhor dos mundos, mas era o que ela vivia naquela época.

Esse texto não é um ensaio crítico artístico - você pode perceber isso nos muitos campos que eu deixei de explorar nos quadros, os demais signos aparentes - , mas apenas uma introdução á arte na América Latina. Começamos falando do surrealismo, mas acabamos falando de duas pintoras que não se consideravam surrealistas: ambas possuem uma obra muito existencial, que denuncia a condição e a vida dessas duas mulheres - seja através da pintura "mexicanizada" ou pelo expressionismo. Por que foram enquadradas como surrealistas então? Porque os papas do surrealismo consideravam a arte na América Latina surrealista. Isso é um grande equívoco: a arte latino-americana não é absurda como queriam eles, mas rica e diferente. Claro, a cultura mexicana, contemplada por Breton, era um material rico para o surrealismo com sua visão mágica do mundo e seu culto á morte, mas ela não era surrealista. Para os mexicanos, não há nada mais natural. Essas definições foram, portanto, fruto de uma certa incompreensão da cultura latino-americana, uma gota de etnocentrismo.
A grande lição que espero trazer com esse texto é que a arte latino-americana é rica, plural e provocadora. Podemos perceber sua riqueza através das duas artistas que falamos aqui, mas existem muitas e muitos mais dos quais gostaríamos de falar aqui, mas, por conta do espaço e do tempo, deixaremos para outra ocasião.

sábado, 23 de abril de 2011

Absurdo, loucura, tragédia...


Eu digiro as notícias de maneiras diferentes. Por exemplo, só agora posso falar realmente sobre a tragédia que aconteceu em Realengo duas semanas atrás. O motivo para isso foi que mesmo estando á mais 6.000km de distância eu me emocionei com o que aconteceu com as crianças que estudavam no colégio Tasso Silveira.
Primeiro, me espantei, depois pensei que fosse mais um ato do tráfico. Mas isso foi desmentido, então me espantei de novo. Eu até manifestei no post do dia 8 de abril o meu medo disso se tornar comum no Brasil. Á toda hora, com as reportagens, as imagens, tudo que falasse sobre as vítimas, eu chorava e lamentava o que tinha acontecido com aquelas crianças.
Eu tentarei falar aqui um pouco sobre esse triste fato. É muito difícil falar sobre a loucura e sobre a tragédia, mesmo quando você não pretende fazer um tratado sobre ambos, como é o meu caso. Mas vamos tentar, de qualquer maneira, apenas expor alguns pontos.
Isso foi realmente uma tragédia. Há uma diferença entre algo que podia ser evitado, que é fruto da irresponsabilidade de alguém, e algo que não podia isso. Esse último é o que chamamos de tragédia. Segundo alguns, esse acontecimento podia ser evitado, pois o atirador planejou e executou esse ato justamente para se vingar do buylling, a humilhação feita por colegas nas escolas. Outros dizem que esse foi um ato sem sentido, o rapaz era ezquisofrênico e se amparou, inclusive, numa religião, para justificar sua violência.
Assisti a uma entrevista, naquela época, do filósofo Mário Sérgio Cortella na qual ele falava que esse não foi um ato sem sentido, ele teve sim um sentido para quem o praticou. Para Wellington, aquilo precisava ser feito. A frieza da forma como ele fez tudo indica como ele perdeu um pouco de sua humanidade, como ele se tornou indiferente a dor que estava fazendo contra crianças inocentes. Em outras palavras, ele estava cegado pela loucura.
Muitos concordam que existe no homem o instinto da sobrevivência e o instinto da autodestruição. Isso estaria presente no nosso dia-a-dia. Nosso cotidiano, muitas vezes, pode parecer absurdo, sem sentido e deplorável. O que pode fazer aflorar em nós nosso pequeno facista interior. O que pode transformar um taxista em um atirador maníaco, como aconteceu no filme Táxi Driver. Existem, certas pessoas, que possuem tendências para esse lado obscuro de nossa alma. Seria o caso de Wellington? Não sei dizer ao certo.
O que posso dizer é que, de qualquer maneira, foi um ato desumano - em algum momento Wellington foi pego pela loucura e esqueceu-se de sua humanidade - e que ele não deve ser abafado, por mais que pareça cruel e sem sentido. Devemos discutir isso com nossa família, com nossos amigos. Devemos discutir maneiras de acabar com o buylling, maneiras de deixar nossas escolas mais seguras e, principalmente, maneiras de não perder nossa humanidade.

Mensagem de Páscoa

Religião é um assunto sempre polêmico, mas necessário.
Fui criado numa família evangélica que, com a exceção de alguns parentes, não era muito rígida, muito praticante. Mesmo assim havia um respeito enorme pelo nome de Deus, afinal Ele é sagrado, então não deveria ser utilizado assim sem mais nem menos. Os rituais nós também não questionávamos.
Passaram os anos e o contato com diferentes religiões, por meio de meus amigos, me fizeram pensar mais a fundo nesse assunto, até então renegado ao silêncio. Achei interessante o islamismo, o judaísmo, a wicca, mas ainda tentava entender o protestantismo e o catolicismo, o cristianismo de uma maneira geral.
Eu comecei a fazer uma leitura da Bíblia, um compromisso firmado comigo mesmo. Não o terminei ainda, pois fui interrompido por algumas tarefas e certos acidentes de percurso. Como falei aqui antes, considero a Bíblia não só como um livro sagrado, mas uma fonte histórica também. A Bíblia pode ter uma mensagem universal, mas é também fruto do seu tempo, carrega em si as marcas de quem a escreveu e a quem era endereçada.
Um dos livros que mais achei interessante foi o livro de Jó, onde podemos ver um homem tentando entender como um Deus benevolente que nos ama pode deixar que soframos. Ora, essa é uma pergunta que deve ter passado pela cabeça de todos que crêem ou não em Deus. E o livro de Jó, ao contrário das respostas que costumamos ouvir, termina nos revelando que "se você faz o bem, não está ajudando a Deus; ele não precisa de nada que é seu. São os outros que sofrem por causa dos pecados que você comete; e também são eles que são ajudados quando você pratica o bem" (Jó, 35:7-8). Ou seja, Deus não gosta de pecadores porque eles desrespeitam seus próximos e não somente á Deus. A maldade no mundo não pode alcançar á Deus; ela, antes, é fruto das escolhas dos homens. Deus não pode acabar com a maldade no mundo, pois com isso ele acabaria com o livre-arbítrio do homem.

Sendo assim, esse livro faz uma ponte com o Novo Testamento muito interessante. Jesus e seus apóstolos fizeram uma releitura da tradição judaica, mas adaptaram-na para os tempos em que viviam: opressão pelo império romano e as reações á ele como o messianismo, o terrorismo, etc. Interessante é que ao lado de inovações (como o apelo aos pobres) ele pegue muito da mensagem de Jó, incluindo aí a idéia de redenção. Mesmo pecando, Jó poderia ser salvo se reconhecesse seus erros. Com Jesus, o homem pode ser salvo se arrependendo de seus pecados. E mais: a Salvação seria garantida á todos, uma vez que Cristo, "o cordeiro de Deus", morreu na cruz para garantir á todos a redenção.
A maior prova de amor seria essa, onde Deus se faz homem, vive entre eles, e morre por eles. A Páscoa representa esse amor e a promessa de vida eterna. Os homens renasceriam, assim como Jesus, a partir do momento em que reconhecessem sua ignorância e seguissem seus ensinamentos. A partir desse momento, o reino dos Céus lhes seria garantido.
Acredito que o essencial do cristianismo talvez seja isso: o amor. Não que as outras religiões não visem o amor também (a maioria delas visa o amor através do respeito e do autoconhecimento, por exemplo), mas a mensagem que o Novo Testamento traz, além da promessa da vida eterna - tendo o apocalipse como um ponto importante - , a afirmação de que Deus é amor. Não um amor obsessivo que sufoca o amado, mas um amor compreensivo que respeita a liberdade de quem ama - prova maior seria a proteção de nosso livre-arbítrio, fonte de nossa maior força e de nossa maior fraqueza.
A grande lição que o cristianismo trouxe para mim é a de que temos que reconhecer que somos livres e que, como teria dito o filósofo francês Paul Claudel, a questão é que Deus confia em nós, por isso nos abençoou com a liberdade. Uma lição no campo da religião e da ética, uma vez que devemos amar a todos e respeitá-los como Deus nos ama e respeita.
Hoje me declaro agnóstico porque ainda não acredito que possamos realmente compreender a Deus integralmente, mas podemos sentir sua presença através da experiência do sagrado, do transcendental. Mas desde que descobri o real sentido do cristianismo, passei a nutrir mais respeito ainda por essa religião. É justamente por isso que escrevi esse texto. Esse texto é uma homenagem, ainda que modesta, á Páscoa e ao cristianismo como um todo. Que os atos sombrios e lamentáveis dos homens e instituições que diziam e dizem lutar por ele não obscureçam a sua verdadeira mensagem!

quinta-feira, 21 de abril de 2011

O mártir da independência


Hoje é dia 21 de abril, dia de Tiradentes.
Tiradentes é uma espécie de camaleão: já foi retratado como oportunista, subversivo, fofoqueiro, visionário e bode expiatório, mais recentemente.
Evidentemente, falo aqui das imagens construídas sobre esse alferes que também trabalhava como dentista no distrito de Diamantina. Durante o Império, pouco se falava da Inconfidência como um todo - uma vez que a família real descendia de Maria I, a Louca, algoz de Tiradentes.
Com a República, Tiradentes vai entrando no panteão cívico nacional pela porta da frente. Barbudo e franzino, como Jesus. O princípio é simples: José Joaquim da Silva Xavier foi um martir da independência, finalmente conseguida agora com o regime republicano. Na década de 1930, com Getúlio Vargas, o inconfidente ganha seu dia.
E o culto á um dos mais importantes mártir da independência continua durante a ditadura militar. Em seus anos finais, no entanto, nas universidades, essa imagem começa a ser questionada. Historiadores brasileiros e estrangeiros (como Kenneth Maxwell, por exemplo) nos mostram um movimento tramado por uma elite que se encontrava incomodada com o aumento dos impostos no distrito, mas não queriam se libertar da Coroa. Nessa conspiração, que visava atingir o governador (Visconde de Barbacena) e não a rainha, sobrou para o elo mais fraco da corrente: o alferes, mulato e dentista José Joaquim da Silva Xavier, uma das ligações entre os "figurões" da inconfidência e o povo. E hoje, por sua vez, estudiosos questionam realmente se Tiradentes foi um simples bode expiatório.
Bem, ao que tudo indica, a imagem de Tiradentes continuará a ser essa metamorfose ambulante por muito tempo ainda.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Vigários e Vigaristas

"Conto do vigário" é uma destas expressões obscuras e comuns que utilizamos volta e meia, possivelmente dela surgiria a palavra "vigarista". Mas qual a sua origem?
A historiadora Denise Lotufo nos fala que a origem do termo pode estar num caso que aconteceu em Ouro Preto no século XVIII quando dois padres decidiram que resolveriam a disputa pela imagem de Nossa Senhora amarrando-a em um burro que estava solto na rua. Eles levariam o burro até a frente das duas capelas, a do Pilar e da Conceição, e onde o burro se dirigisse seria a morada da santa enfim. O burro foi para a Igreja do Pilar. Detalhe:  foi revelado mais tarde que o tal burro era do vigário da capela.

Outra versão é a de Fernando Pessoa - sim, essa expressão existe me Portugal também - que nos expõe em uma de suas crônicas o caso de um certo Manuel Vigário que consegue ser ludibriado duas vezes: na primeira por um homem que lhe presenteia com notas falsas e na segunda pelos seus irmãos que aproveitam o estado de embriaguez em que ele se encontrava em certo momento para pedir um "dinheirinho" emprestado e assim conseguem esvaziar sua carteira.

O historiador José Augusto Dias Júnior, que lançou no ano passado o livro Os Contos e os Vigários - Uma História da Trapaça no Brasil nos fala de três versões, sendo a de Pessoa uma delas. As outras duas seriam parecidas: um homem receberia uma carta enviada por um vigário espanhol que dizia que um homem rico tinha falecido e deixara para ele uma polpuda herança e a guarda de sua filha de 13 anos, tudo o que ele deveria fazer era manda ruma certa quantia para liberar os documentos do falecido e conseguir a guardar de forma definitiva.

José Augusto Dias Júnior e seu livro.
O livro de Dias Júnior é interessante porque faz uma análise mais profunda sobre essa expressão. É um exercício de História Cultural, na verdade. O seu objetivo não é só descobrir a origem desse termo, mas entender como ele foi se articulando com o contexto do Brasil no século XX, um contexto de mudanças significativas. A urbanização, por exemplo, modificou os métodos convencionais do "conto do vigário". Agora, os vigaristas podiam se aproveitar das condições desse processo, como é o caso do golpe da Light onde um homem que se apresenta como funcionário dessa empresa de energia chega em um determinado bairro ou rua onde esse serviço é precário e oferece-se para consertar a falha com uma "pequena quantia" oferecida pelos moradores (golpe, aliás, que minha família caiu quando morávamos em Sepetiba).

Outro caso é o do vigarista que finge ser uma autoridade política ou mesmo policial para desfrutar de certos privlégios em certos locais - como uma "boquinha livre" em um restaurante ou furar fila num banco. Enquanto o outro golpe demonstra as condições desiguais dessa urbanização, esse mostra o quanto a sociedade brasileira é autoritária e clientelista. Dias Júnior afirma, por sua vez, que os "contos do vigário" revelam algo a mais que o momento histórico em que são feitos, revelam também um dado estrutural da nossa sociedade: o tão falado "jeitinho" brasileiro, a vontade de fazer tudo do jeito mais fácil. O conto do vigário, utilizando a definição pescada pelo historiador de um relatório policial, é quando o esperto se faz tolo e o tolo quer ser esperto e justamente por isso paga o pato. O malandro acaba virando bobo. Ora, quem não quer ser malandro?

terça-feira, 19 de abril de 2011

A Lei da selva

Ferreira de Castro registrou, com efeito, a epopéia do homem dentro da selva levado pelo destino, guiado pela ambição, espoliado pelos patrões e pelos mosquitos, enterrado no seio da floresta, na exuberância de cuja clorofila reside o maior laboratório da vida primitiva no planeta.
Djalma Batista, Letras da Amazônia, 1938.
 
Falei aqui do filme A Selva (2005), mas foi apenas um rápido resumo diante da profundidade do filme. Hoje vou tentar explorar os caminhos abertos pela história.
Ferreira Castro (1894-1974)
Primeiramente, A Selva se baseia num romance escrito pelo português Ferreira de Castro e publicado em 1930. Ferreira de Castro veio para o Amazonas com doze anos de idade e trabalhou no Seringal Paraíso, como o protagonista do romance, Alberto. Levou anos para poder acumular considerável riqueza e prestígio e, enfim, retornar á Portugal, onde ainda hoje é reconhecido como um de seus maiores escritores. O ideal seria lermos o livro antes e depois assistirmos ao filme, para termos uma idéia do que se perdeu com a adaptação para as telinhas (ou o que foi acrescentado), mas infelizmente o livro de Ferreira de Castro é raríssimo em terras tupiniquins.

A rara edição brasileira de A Selva.
O que podemos dizer é que Ferreira de Castro se vincula ao realismo ou naturalismo, movimento literário difundido na época, cujo maior representante no Brasil foi Aluíso de Azevedo com seu Cortiço. O realismo permitiu que Ferreira de Castro expressasse a vida árdua no Seringal Paraíso (posteriormente transformado em Museu, graças ao filme) sem ter que amenizar alguns aspectos em nome do pudor dos leitores.

Leonel Vieira, diretor português, viu nessa obra antológica um ótimo thriller e apostou na sua adaptação. Teve a sorte de poder filmar no Seringal Paraíso - que apesar do tempo, se conservava bem ainda. A produção contou com a presença de atores brasileiros (Maitê Proença, Chico Díaz, Claudio Marzo, João Acaiabe, dentre outros), portugueses (Diogo Morgado) e espanhóis (Karra Elejade). Pelo que me lembro ela foi pouco divulgada, pelo menos no Sudeste (onde eu vivia quando o filme foi lançado em 2005), por isso não sei dizer como foi a recepção em terras barés.

Atual Museu do Seringal, em cena do filme.
O filme se inicia com uma imagem icônica dos tempos do boom da borracha: um seringueiro, no meio da floresta, retirando o látex da árvore. Esse homem, no entanto, percebe que existe algo por perto. São os índios. Então corre em direção ao barracão onde estão seus companheiros de trabalho, mas não consegue. É decapitado antes. Seu amigo Firmino reclama ao coronel Juca Tristão das condições de trabalho, pede segurança contra os índios, mas o coronel nega mesmo a presença dos índios (na realidade, ele só não quer fornecer armas aos seringueiros com medo de que se rebelem contra ele). Diante das reclamações, o coronel Tristão argumenta que isso é natural, afinal estão na selva.
O filme está mais do que bem apresentado através dessas cenas iniciais: a fala do coronel Tristão demonstra que o que prevalece nesse lugar é a lei da selva. Mesmo se tratando de homens, aqui eles são tratados como bichos. A bestialidade está por toda parte, como verificará Alberto, seja nos índios, nos impulsos sexuais de um colega seringueiro, na violência dos capatazes, em tudo. O jovem português reconhece, com poucos dias de chegada, que realmente esse era outro mundo. Aqui, ou o homem morre ou vira objeto, como o negro Tiago que se torna uma espécie de brinquedo para o coronel Tristão.

Firmino (Chico Díaz) e Alberto (Diogo Morgado).
Mas com o tempo ele se adapta: os seringueiros, que antes via como alienígenas, agora são seus amigos e os impulsos sexuais que repudiava agora tomam seu corpo. Ele passa a ser guiado pelos desejos, mas pela bela e educada dona Yayá, mulher do contador do coronel. Penso eu que esse amor proibido representa apenas mais uma prova de que esse é outro mundo, um mundo onde tudo que é proibido e reprovado pode ser feito.

Dona Yayá (Maitê Proença)
Alberto, contudo, não se adapta totalmente á selva, ele ainda pode exercer sua "civilidade" dentro do casarão do coronel Tristão, onde vai morar depois de ser "promovido" à ajudante do contador e balconista da loja de viveres. Nas canções que toca ao piano, talvez, seja resgatado desse mundo assustador e se remeta á sua terra natal. As ações do capataz Velasco também são por ele repudiadas. Não sei se isso seria outro traço de "civilidade" de Alberto ou apenas uma indignação natural. Ora, Firmino, representando os seringueiros, também é assim. Essa indignação pode ser vista como uma reação natural á brutalidade: ora, os seringueiros estavam encurralados por um lado pelos índios e pelo outro pelos capatazes.
Contudo, esse mundo-limite parece ter sempre existido, dando provas de que continuaria a existir. A situação muda coma notícia que o coronel Tristão traz de uma visita á Manaus: a borracha está entrando em crise. A fuga dos seringueiros parece ser um sintoma de que a ordem construída na selva está caindo. Se ela era o sintoma, então o golpe fatal virá pelas mãos do negro Tiago. Até então manipulado, humilhado, o negro (possivelmente um ex-escravo do coronel Tristão) demonstra que ainda é um homem e destrói tudo o que representava essa ordem ao incendiar a casa do coronel.
O final, ao meu ver, foi muito vago. O que teria acontecido após o desenlace nas ruínas do casarão (que lembrou, inclusive, um faroeste como Três Homens em Conflito) é rapidamente resumido na viagem de volta de Alberto para sua terra. Todos os outros personagens que sobreviveram, no dizer do protagonista, ficaram para trás, como a selva. A selva, contudo, nunca saiu de seu coração. A lição de desumanidade e humanidade que Alberto teve ali (e Ferreira de Castro também) seria uma dessas experiências que define uma vida. E não só uma vida, como um tempo.
A Selva, pode ser entendido então, como uma espécie de denúncia da Belle Epoque amazônica. Enquanto a historiografia tradicional defende uma época de progresso na região e as literatura local tentava imitar o parnasianismo europeu, Ferreira de Castro com seu livro atacou ambas demonstrando que esse mundo de "civilização" e "progresso" era construído em cima de muita irracionalidade e sangue.