quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Jaguaretê


Os olhos da onça
garimparam o mato
Uma infeliz silhueta
se revelou.

As patas que acariciavam
o chão de folhas
em minutos
perderão toda sua delicadeza.

O ruído denuncia
mas já é tarde.
Agora, uma batalha se desenrola.
Na imensidão verde, manchas se perseguem.
Silêncio:
Menos uma capivara no mundo.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Existencialismo de Faroeste

Quem nunca brincou de mocinho e bandido?
Hollywood sempre foi uma vitrine de nossos desejos e instintos. Ela sempre se aproveitou de nosso estranho encanto pelo medo e pela violência. Se por acaso isso é mentira, como explicar o sucesso dos gêneros de terror e western? Ora, estúdios se levantaram em cima desse sucesso: a Universal produziu nos anos 20 e 30 os pesadelos mais clássicos do cinema, como Drácula, o Lobisomem e até Frankeinstein, enquanto a Warner Bros construiu sua fortuna com filmes de gangsteres, principalmente com astros como James Cagney e Paul Muni.

Mas hoje vamos falar do western. Bang-bang, faroeste ou western. Seja como for, onde estiver, quem ver na tela homens rudes e calados se enfrentando na imensidão do deserto na hora associará o filme a esse gênero. Mas faroeste é apenas isso? Homens com armas no deserto?
Me arrisco a criar uma definição para esse gênero, sem ajuda de qualquer crítico. Talvez no início, o western pudesse ser definido assim, no entanto, o século XX deu boas sacudidas no gênero. O tema tem sido constantemente revisto, praticamente desde os anos 40 com diretores clássicos como John Ford e Howard Hawks até hoje. Sendo que considero hoje como faroeste todo filme que lida com dicotomias essenciais. Como assim?
O que se vê nesses filmes constantemente é o processo de "conquista do Oeste", que aconteceu entre os anos de 1840 a 1890. Aqui vemos os Estados Unidos se expandindo a custa dos conflitos entre brancos e indígenas, se unificando a partir da Guerra Civil e, por fim, se civilizando com a industrialização. Basicamente estamos falando de uma região bravia que aos poucos é domada. O gênero já nasce nostálgico, pois é alimentado com esse sentimento de uma era selvagem, lendária e finda. 
As lendas do Velho Oeste ajudaram a tornar o faroeste bem sucedido. Lendas como Wyat Earp, o justiceiro, ou Jesse James, o facínora. Fagocitando essas lendas nasce um arquétipo: o homem solitário. Ele, que pode ser tanto um paladino quanto um vilão, não necessita de muitas palavras pra provar sua hombridade. Na realidade, ele só precisa de uma arma. No entanto, a arma é geralmente vista como extensão do caráter do personagem (e isso se faz presente inclusive nos westerns revisionistas), ela apenas endossa suas atitudes. A violência torna-se, portanto, uma ferramenta. Mas nas mãos daqueles que aspiram a violência por prazer, ela se torna um fim em si mesmo.
Aqui encontramos uma primeira dicotomia essencial: caráter versus instinto puro. O "bom" usa a violência como forma de equilibrar as injustiças, enquanto o "mau" cria estas injustiças ao glorificá-la. Você pode me perguntar: se o "bom" é realmente o bom, por que usar de algo tão baixo e primário como a violência? Devemos nos lembrar do ambiente em que as histórias decorrem: as grandes planícies esperando ser conquistadas ou o deserto de gelo quase inabitável (como no caso do filme de Sérgio Corbucci, O Grande Silêncio), ou seja, o espaço selvagem, mais conhecido como "terra sem lei". Num local tão rústico como esse, a linguagem dos brutos é a violência. Ela é apenas sua parte mais visível, uma vez que por trás dela reside toda uma série de regras. Um "código do sertão" digamos assim.
E aqui chegamos a mais uma dicotomia essencial: a regra e a exceção. A lei é generalizante, existe para todos, é um conjunto de regras que deve ser imposto a todos para que haja justiça. No entanto, há outras formas de justiça. O que não está no plano da regra é tido como exceção. Logo, a justiça com as próprias mãos, tema tão caro ao faroeste, é algo condenável. No Oeste impera essa forma de justiça, talvez por estarmos falando de uma sociedade que está se constituindo agora. A vingança pessoal poderia funcionar como uma forma de justiça primária.
Enfim, se nas capitais norte americanas a lei era absoluta, nos espaços selvagens vale a decisão individual. O diretor Sérgio Leone se apaixonou pelo gênero exatamente pelo horizonte de liberdade que o bang bang apresentava aos espectadores. Se na sociedade "civilizada" a ética imana das leis, no Oeste ela imana dos sujeitos. A liberdade de escolha permite que sejam cometidas grandes massacres ou bons acertos de contas.
Acho que já deu pra captar o que entendo como dicotomias essenciais. São aqueles pontos que não se opõem, apenas dialogam entre si. E no meio desse volta-e-trás, se estabelecem os arquétipos e lugares comuns do gênero. Por exemplo, entre o sadismo e o altruísmo se situa o homem solitário, a meio caminho de ambos (pelo menos, o homem solitário que os westerns ajudaram a construir após 1960). Entre a "civilização" e a natureza selvagem, as grandes histórias se desenvolvem. Entre a liberdade e a coerção, o indivíduo. O faroeste é feito dessas tênues e poderosas fronteiras (aliás, o conceito de "fronteira" na cultura norte-americana merece um artigo próprio).
Concordo com o filósofo Gilles Deleuze quando este diz que o western é um gênero mais ético que épico, pelos motivos que enunciei acima. Aliás, acredito até que por conta dessas constantes redefinições de seu tema, o faroeste tenha criado inclusive uma forma de pensar, uma espécie de filosofia de vida. Chamarei apenas de "existencialismo de faroeste". Afinal a questão ética trata-se de uma questão existencial. Se o homem está condenado a liberdade, como queria Sartre, é diante de imensidões como as apresentadas no Oeste que esta situação se torna mais explícita. A pouca força que as leis e outros padrões sociais exercem ali tornam a sensação de liberdade muito maior, bem como o dilema de que decisão tomar, para onde enveredar na escala da decência, dentre outras coisas.
Claro que a adoção da liberdade e da violência não são necessariamente escolhas metafisicamente planejadas pelos roteiristas e realizadores. Quem não gosta de uma boa história de ação? Quem nunca brincou de mocinho e bandido? Alguns aspectos do western estão presentes na nossa lista de fetiches. Na maioria das vezes obedecem ao gosto das massas: se é aventura, liberdade e violência o que querem, que isso seja colocado na tela. No entanto, o que estou fazendo aqui é apenas um exercício de interpretação muito livre (e fuleiro) sobre o gênero. Sim, talvez alguns filmes não tenham tido essa preocupação aparentemente, mas outros tiveram. É um caso a ser estudado.

Parafraseando o grande filósofo Gaguinho: por hoje é só, pessoal. Mas por conta da amplitude do tema e do meu apreço pelo gênero (pronto, falei!) falarei aqui mais vezes sobre westerns e sua filosofia. Até breve!

Medindo o Oriente II: Inverno Palestino?


Você sabe a diferença entre um cachorro doido e um cachorro brabo? O cachorro doido morde sem razão.  Assim um vizinho me explicou uma vez a diferença entre seu Doberman e um vira-lata com raiva que vivia tocando o terror na nossa rua. Seu cão tinha sido treinado para ser feroz, infelizmente, á base de muitas surras. Assim só restava ao animal duas opções: ser submisso ou ser agressivo.
A imprensa pinta o Estado de Israel como um cachorro doido. Muitos os comparam aos algozes nazistas. Mas vamos tentar compreender algumas coisas antes de prosseguirmos nossa análise. Israel foi criada por uma resolução da ONU no final dos anos 40. Foi decidido que os judeus do mundo todo agora teriam uma nação, ainda que fosse em território ocupado por outros povos como os palestinos. Tal ação originou um sentimento de hostilidade por parte dos demais países vizinhos de maioria árabe. Nos anos seguintes, o apoio dos EUA (como forma de conseguir aliados no Oriente Médio contra a URSS) apenas acirrou o conflito. 
Assim, Israel nasceu sob a égide do conflito. Nos anos 60, a situação se agrava com as guerras dos Seis Dias e do Yom Kippur. Já nos anos 80, temos a Intifada, a série de ataques palestinos contra o domínio israelense. Aos israelenses, a segurança nacional vem em primeiro lugar. Como a hostilidade da região já é antiga, há até um pouco de verdade nesse discurso, no entanto, é sabido que já faz tempo que o discurso da segurança nacional se tornou uma plataforma política. Diante desse quadro pouco otimista, em que os conflitos apenas se multiplicam, as autoridades insistem em continuar nessa via.
Por outro lado, o drama dos palestinos não é oriundo somente do imperialismo israelense, mas também da incapacidade das autoridades locais se articularem. O grupo Fatah de Yasser Arafat, responsável por levar a bandeira da libertação da Palestina para o resto do mundo, começou radical, mas quando assumiu a liderança da Autoridade Nacional Palestina (uma grande conquista, afinal até 1993 a região não tinha o direito de se auto-governar) perdeu um pouco de sua aceitação popular por conta de muitos membros envolvidos em esquemas de corrupção. O Hamas aparece então aos olhos dos palestinos cansados dos mesmos escândalos e opressão como o único grupo comprometido com a libertação da região. Daí a aceitação do Hamas ter crescido, enquanto a Autoridade Nacional Palestina parece se tornar a cada dia mais obsoleta e impopular. O problema é que o Hamas apela inadvertidamente para atentados contra o país vizinho.
Há mais de uma semana, mísseis atravessaram a fronteira israelense o que motivou uma retaliação á Palestina pelos atos do Hamas. Na tentativa de punir os culpados vidas inocentes vão se perdendo. O ódio e o sofrimento se prolongam apenas. Uma solução pacífica parece cada vez mais distante no horizonte com um governo irredutível e um grupo disposto a continuar atiçando lenha na fogueira.
Enquanto o sopro da Primavera Árabe parece sinalizar para uma transformação no Oriente Médio, a relação entre israelenses e palestinos continua quase a mesma. Ambos estão longe de serem cachorros doidos, como a mídia tenta demonstrar, uma vez que possuem motivos para serem "brabos" uns com os outros. A verdade é que julgar os dois lados desse dilema é muito fácil para nós que não conhecemos e principalmente não vivemos essa realidade. Se a lógica até agora tem sido "atacar pra se defender", mesmo com tantos apelos internacionais de diálogo, é porque no meio de tanto sofrimento e medo o "sangue-quente" parece ainda dar as cartas. Num contexto assim, os extremistas (sejam sionistas ou do Hamas) saem vencedores, para infelicidade da Humanidade.

domingo, 18 de novembro de 2012

Medindo o Oriente I: Á Espera da Primavera


O pan-arabismo, movimento político que abalou o Oriente Médio durante os anos 50 a 70, nasceu no Egito com Nasser. O fundamentalismo moderno também, com a estrutura da Irmandade Muçulmana e com o pensamento de Sayd Qtb. A Primavera Árabe começou na Tunísia, mas tornou-se mais emblemática no Egito com a queda de Mubarak que governava o país há mais de 30 anos com a benção dos EUA.
Essa curiosa coincidência é o suficiente para que muitos analistas políticos alegassem que a democracia seria um destino inevitável para o resto do Oriente Médio. Não uma democracia ocidental, como aquela que os EUA tentam empurrar goela abaixo nos países locais há décadas, mas uma democracia árabe, construída e idealizada por eles próprios.
Tenho uma certa bronca com analistas políticos justamente poque eles podem tomar uma coincidência por tendência histórica. Aliás, os historiadores também fazem a mesma coisa. Vejamos o caso do historiador Bernard Lewis, especialista em Oriente Médio e consultor da Casa Branca sobre assuntos dessa região: Analisando a história do Oriente Médio, sempre governado por impérios estrangeiros (Romano, Bizantino, Turco-Otomano, etc.), ele chega a conclusão de que o carma dos povos árabes é ser dominado por potencias de fora. A ascensão do fundamentalismo islâmico seria uma espécie de crise de abstinência - tantos anos sem ser governado por outrem, faz com que eles sonhem em se auto-governarem, mas por meio de atitudes primárias, como ordens religiosas.
É visível aonde Lewis quer chegar: vamos colonizar o Oriente Médio.
Cabos eleitorais de Mohammed Mursi.

Voltemos á Primavera Árabe. Em 2011, ela prometia ser um sopro indestrutível de renovação. No entanto, na Líbia e na Síria encontrou obstáculos poderosos. Ora, o sucesso depende da situação de cada região. Se temos uma classe militar forte na Síria e confederações de tribos ainda leais á Kaddafi na Líbia é claro que o conflito será feio.
Outra coisa: muitos enxergaram na porta aberta pelas revoltas, um passe livre para o fundamentalismo islâmico chegar ao poder. Com medo do sonho virar pesadelo, funcionários do governo e das Forças Armadas no Egito, que ajudaram na transição á democracia, começam a impor uma série de restrições ás atitudes do novo presidente eleito, Mohammed Mursi, membro da Irmandade Muçulmana. A mãe de todas as cédulas terroristas, no entanto, não está mais na "moda": o modelo atual de fundamentalismo se ampara ou no xiismo radical de Khomeini ou na Al Quaeda de Bin Laden. Será que a Irmandade Muçulmana se reinventou, tornando-se uma organização democrática e não mais uma associação terrorista?
A eleição de Mursi foi o bastante para prever um Oriente Médio infestado de governo fundamentalistas legítimos, eleitos pelo povo. Mais uma vez o argumento do Oriente Médio se espelhar no Egito foi usado. Eu honestamente não faço ideia do que acontecerá. Há alguns anos a situação era o menos otimista possível: ditaduras e teocracias era tudo que se enxergava ali. Hoje, por meio dessa ação espontânea e popular, acredito que devemos dar mais crédito ao inesperado. Talvez o futuro do Oriente Médio nos surpreenda, positivamente.

História hoje


A História no século XIX era centrada na narrativa, privilegiava o aspecto político e factual e tinha um sentido evolucionista, onde o Progresso era tido como o motor da História. Já no século XX, o historiador italiano Arnaldo Momigliano enxerga um painel radicalmente diferente: a História não é mais dominada pela narrativa, os fatos e a política. Agora, se fala em "forças sociais" e não em Progresso.
É inegável que o Positivismo tenha inúmeros defeitos, mas ele também tem seus méritos. Um deles é o de transformar a História em uma ciência. Essa é uma contribuição enorme, porque ajudou a amadurecer os estudos históricos. O grande nome nesse momento é Leopold von Ranke que ao pregar a urgência de se fazer uma "história tal como aconteceu" renegava assim a especulação exagerada que muitos escritores faziam quando se tratava de falar de História. Ao mesmo tempo, essa atitude tornou a escrita da História da Escola Metódica um pouco paranoica com qualquer tipo de reflexão. Assim, os seguidores de Ranke afunilaram seu trabalho na pesquisa e descrição dos dados coletados.

Momigliano nos fala de um momento posterior ao declínio do poder dessa concepção de História. As duas interpretações contrárias ao Positivismo que existiam no século XIX, o Historicismo e o Marxismo, também amadureceram e conquistaram maior espaço no século seguinte. Além disso, tentando conciliar as propostas de uma História interpretativa e ampla com a legitimação da História enquanto ciência, que até então era obra dos positivistas e rankeanos, surge o movimento da Escola dos Annales. Assim, na década de 1950 (momento em que o historiador italiano nos escreve), os nomes de Marc Bloch, Lucien Febvre, Gyorg Lukács e Benedetto Croce, dentre outros, já figuram como pioneiros numa nova concepção de História.
Se os positivistas tornaram a História uma ciência, os historicistas, marxistas e membros dos Annales a transformaram em uma ciência social. Ora, o modelo de ciência que se tinha no século XIX era o das ciências naturais. A História, por seu caráter residual e social, se sentia engessada nesses moldes. Os movimentos que abrocham na virada do século, no entanto, tentam encontrar um paradigma mais humano, mais passível de compreender melhor a complexidade do trabalho do historiador, e cada um a sua maneira ajuda a construí-lo.

Ora, os historicistas relativizam os sentidos da História e discutem a questão da subjetividade com muita propriedade, dando uma contribuição enorme ao campo da Historiografia em específico. A Escola dos Annales nasce com a bandeira da interdisciplinaridade e História-problema, ajudando a revitalizar o caldo conceitual de que os historiadores se valiam e repensando a metodologia da pesquisa. Os marxistas (os mais coerentes, não os "marxistas vulgares" de que tanto Hobsbawm fala) trouxeram á discussão uma concepção da História e um método que tentam captar a complexidade da sociedade e como ela muda. Estamos falando da visão da sociedade em níveis hierarquizados (base, superestrutura, etc.) e a análise das contradições internas (sejam elas de classes ou não) desse sistema por meio do materialismo dialético.
Claro, essas três correntes se assemelham em alguns pontos e discordam em outros. O historicismo, por exemplo, é contrário á uma História total, proposta tanto do marxismo como dos Annales, porque não enxerga a História como um processo que tenha uma direção determinada.

Nas décadas finais do século XX, essas diferenças serão muito mais explícitas. A virada antropológica, o renascimento da narrativa e a recusa de um sentido á História fortalecem mais o viés historicista, que como tudo, mudou também no decorrer dos anos. O foco na linguagem (na análise da cultura e do discurso, por exemplo) se tornou tão popular por englobar a cultura e o indivíduo, conceitos que perdiam espaço em interpretações mais estruturais. Hoje a História está tão ligada á linguagem que há quem diga que ela não passe de narrativa também (como Hayden White).
Se cada corrente deu sua contribuição, qual o mérito dos pós-modernos? Acredito que eles tenham aprofundado as discussões da geração anterior: a subjetividade, em maior medida, hoje é considerada um fator de fundamental importância nos estudos históricos e faz-se uso de conceitos vindos de outras ciências em larga escala. Apenas é renegada a concepção de História Total, por não contemplar a diversidade. Até a visão social hoje, após os atritos iniciais entre pós-modernos e marxistas, é debatida e reaproveitada.
Hoje a História é mais que nunca uma ciência social, que sabe o lugar que ocupa na sociedade.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Comemorar?


Em 15 de Novembro proclamou-se a República. A república que não foi. Hoje, mais que nunca, sabemos disso. Depois de maracutaias, crises e golpes chegamos á uma república embaraçada por não ser tão popular quanto tencionava ser.
O Império reunia uma espécie de valor simbólico ao redor do seu monarca. Aura que blindava o imperador e de quebra conferia unidade ao Brasil, é o que dizem. É importante lembrar que a legitimação da monarquia no Brasil foi iniciada durante o período da Regência por uma equipe de políticos e intelectuais. A unidade territorial foi mantida, mas a forma como ela foi construída (por meio da conciliação de interesses ou então imposição central) acabou por abalar os alicerces desse regime. Províncias como São Paulo ou Rio Grande do Sul abraçaram o republicanismo por conta de sua promessa de autonomia regional.

No entanto, algo não se pode negar: em relação ao Império, os republicanos contavam com menos aceitação popular. Alguns nomes já eram conhecidos e admirados pelo seu papel em eventos das décadas finais do Império, como é o caso do marechal Deodoro da Fonseca que lutou em mais de três batalhas no Paraguai. Ou seja, o novo regime precisava se legitimar como a monarquia o fez durante a Regência e aí temos a garimpagem de heróis e símbolos de ideologias vinculadas ao novo regime, como nos mostra muito bem o historiador José Murilo de Carvalho em A Formação das Almas.
Novos estudos como o de Maria Thereza Chaves Mello, A República Consentida, revisitam o silêncio do povo diante da Proclamação. Por meio da imprensa e de conferencias, líderes republicanos e positivistas conseguiram difamar nosso "Antigo Regime tropical" contribuindo para que a maioria da população não se indignasse com o fim do Império. O silêncio popular foi o silêncio do consentimento. Mas fé no novo regime também não havia. Quando a República sinaliza seu caráter aristocrático, as revoltas pipocam tendo motivos vários como pretexto, como é o caso de Canudos.

Os primeiros anos do novo regime ficaram conhecidos como República do Café com Leite, dada a importância que os estados de São Paulo e Minas (respectivamente, os maiores produtores de café e leite, dois itens que alimentavam o grosso da nossa economia) tiveram em seus arranjos políticos. Hoje nosso sistema político é outro. Depois de várias mudanças constitucionais (algumas até bisonhas), chegamos a um sistema representativo que lembra em muito o das modernas democracias liberais. Ainda assim, a corrupção, o elitismo e a apatia política perduram, claro, com novos nuances.
Por causa desse status quo, vejo muitos argumentos perigosos se desenvolverem e ganharem inúmeros adeptos: primeiro, o de que a transição de regimes não significou nada, uma vez que nada mudou; segundo, hoje estamos pior que antes, já que durante o Império não existiam tantos escândalos. O primeiro desclassifica a transformação histórico, o segundo idealiza um passado que nunca existiu. A corrupção não é uma invenção exclusiva da República, mas uma prática que já nos acompanha de longe. Na realidade, muitos pesquisadores tentam entender como a corrupção se transforma com o tempo, como esse fator estrutural dialoga com o contexto, ou seja, como ela se adapta aos novos tempos.

Quanto á negação de mudanças, tão habitual ao conservadorismo, ela tem suas raízes, nesse caso em especial, na interpretação da corrupção e do autoritarismo como um dado estrutural da nossa sociedade, quase como um órgão monolítico. Claro que o modo como se rouba hoje não representa o mesmo modo como se fazia no passado, embora os motivos para tal crime deem a impressão de que nada mudou. Há outros aspectos, que nos parecem menores á primeira vista, que devem ser levados em consideração, como a gradativa conquista de espaço da população e dos movimentos sociais na política. O reconhecimento do poder da massa e das organizações da sociedade civil fez com que a classe política tentasse cooptá-los de diversas maneiras como foi o caso do trabalhismo e do populismo. Até que ponto conseguiram ou até que ponto o povo se aproveitou disso são outros quinhentos.
Bem, então voltemos á vaca-fria: hoje é 15 de Novembro e o que temos a comemorar? Pouca coisa na verdade, mas nem por isso devemos jogar a República Velha ou todo os 120 anos do regime republicano no lixo. Antes, devemos ter essa longa trajetória em mente para saber o que ainda nos impede de termos um governo democrático e um povo compromissado.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Corrupteca


Nove em cada dez pessoas acham que o maior problema do Brasil é a corrupção. O que muitos não sabem responder é como ela começou. Será a corrupção de hoje a mesma dos tempos da Colônia? Até mesmo a subvenção tem sua historicidade.
A USP, ou melhor, seu Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas se uniu com o jornal O Estado de São Paulo para construir um banco de dados sobre o assunto. A universidade já conta com 100 mil textos completos extraídos de mais de 4 mil periódicos científicos. E o Estadão entra no projeto om seu acervo de notícias.
A Corrupteca está sendo organizada por meio da plataforma web 3.0, onde os termos e o contexto dos textos são identificados pelo sistema através de palavras-chave.
Mais informações: USP e Estadão lançam biblioteca digital sobre a corrupção.

domingo, 11 de novembro de 2012

Trocas térmicas


O domingo começou como uma prévia do fim do mundo: trovões, chuva e ventania. A vida debaixo do cobertor ficou muito mais interessante. Membros se entrelaçaram formando um único ser vivo, com dois corações. A tempestade tem suas compensações.

Céu branco, lua ao pino. A doce brisa da noite. Uma pequena fagulha de calor, o sopro da vida, a esquentar aqueles dois seres. Não são mais parte do cenário, muito menos figurantes.

domingo, 4 de novembro de 2012

O fim do fim de semana

DOMINGO
Astrid Cabral
Foto: A Crítica.


O domingo veste
santidade e repouso
ranço de missas
e sinos roucos.
Pausa obrigatória
somos espichados
comida requentada.
Freiada no atropelo
de seguidas feiras.
Momentos de passeios
e programas de fuga:
salva-vidas pairando
sobre águas em fúria.

Hora de encarar o oco
e cuspir no abismo.

(De déu em déu, Astrid Cabral, 1998).

sábado, 3 de novembro de 2012

Dia de Finados


O Império contra ataca?


Como vocês devem saber, a Lucasfilm foi comprada pela Disney, assim como a Marvel. Mal a transação foi feita e se fala em reativar a série Guerra nas Estrelas. Inicialmente seriam dez filmes, mas George Lucas decidiu parar no sexto. Após fazer o prelúdio da série e modificar algumas coisas nos filmes antigos, Lucas começou a ser encarado como um louco que retalha sua própria criação. Em entrevista ao New York Times teria dito: "Por que fazer mais filmes quando todos gritam comigo e falam da pessoa horrível que sou?"
Alguns fãs encararam a notícia com entusiasmo, justamente por reconhecerem que a falta de criatividade do diretor está matando o universo Star Wars. Outros, a maioria, não quer mais continuações, com medo de que cheguemos á uma saturação da história.
Francamente, tenho minhas desconfianças em relação á toda essa patacoada. De certa forma, concordo com o segundo grupo. Ás vezes é bom reconhecer que a série já deu tudo de si. Mas executivos são insaciáveis...
Estranho seria Lucas se desvincular de uma das mais lucrativas franquias da história do cinema (que lhe rendeu desde 1977 mais de US$ 4,4 bilhões). No entanto, caro leitor, não é tão estranho se levarmos em consideração a pressão que recai em cima de George Lucas desde que decidiu começar a contar a saga dos jedis em 1999 por meio do Episódio I: A Ameaça Fantasma. Muitas soluções manjadas e um roteiro pouco emocionante incomodaram os fãs. Por outro lado, a expectativa dos fãs tenha sido grande também. O fato é que desde 1999, Lucas tem sido criticado por aqueles que mais lhe admiravam.
Uma dessas pessoas era o escritor e crítico Bráulio Tavares que em uma de suas crônicas manifestou sua visão sobre o diretor: Ao contrário de Spielberg, que tem Hollywood no DNA, Lucas é um nerd introspectivo cujo sucesso precoce o fez desabrochar como executivo e murchar como artista. Star Wars vai renascer? Tomara, porque gosto muito da saga, que me deslumbrou “quando eu era alegre e jovem”. Mas algo me diz que o suspiro de alívio de Lucas ao assinar o contrato de venda deu para se ouvir até na Paraíba.

O âmago da cidade

Um amontoado de prédios? Uma série infindável de carros? Um barulho, ás vezes ensurdecedor, misto de buzina, motores de veículos, gritos de ambulantes?
É isso a cidade?


Assim pergunta a geógrafa Ana Fani Alessandri Carlos em seu livro A Cidade. Interessada em pesquisar como o espaço urbano é constituído, a autora questiona se podemos entender a cidade por meio desses signos. Sua conclusão é outra: a essência da cidade não está na sua superfície, mas no que se encontra abaixo da sua pele de concreto.
Uma cidade não é feita apenas de prédios, carros e barulho. Uma cidade é mais do que isso. Antes de mais nada, a cidade é humana. É construída por homens e habitada por homens. Sim, o cotidiano em uma grande cidade pode nos dar a impressão de que estamos nos mecanizando, daí sempre enfatizarmos o trânsito e as construções quando pensamos em espaço urbano.
A cidade tem sua história. Ela nem sempre é do jeito como a conhecemos. Seus habitantes a modificam constantemente. Seja material ou culturalmente. O espaço urbano é construído, para Ana Alessandri Carlos, por meio de um jogo entre o Estado, empresariado e cidadãos. Todos sabemos que o mercado imobiliário ou mesmo o comércio e a indústria operam grandes mudanças no traçado urbano. O Estado tenta racionalizar a vida na cidade e o povo... o povo tenta viver na cidade, mas viver em meio á essas imposições e regras, muitas vezes injustas, torna isso mais difícil.
Portanto, a construção da cidade é cheia de tensões. As relações sociais se materializam de forma mais evidente na geografia urbana: bairros nobres, balneários, residenciais de classe média, shoppings, centro comercial. Na cidade temos um conjunto de classes sociais morando lado a lado, por mais que se tentem separar (centro e periferia).
Na cidade também temos uma coleção de tempos e espacialidades diferentes. Cada construção carrega em si estilos diferentes, cada família também possui tradições próprias. Nem todo o perímetro urbano tem características plenamente urbanas. Em alguns casos, a periferia se une com o campo, formando os chamados arrabaldes ou as chácaras.
E além de tudo isso, uma cidade também é cheia de sentimentos e emoções. Impossível negar que somos indiferentes á vida urbana, seus benefícios e suas mazelas. Antes de tudo, vivemos em sociedade. A cidade nos proporciona algumas formas específicas para esse convívio: seja em relação ás instituições que regulam nosso comportamento, seja em relação ás nossas ações. Expressamos essa situação das mais diferentes formas: poemas, grafitti, protestos, confissões, fofocas, músicas, etc. O viver urbano também é cheio de subjetividade.
Seja como for, Ana Alessandri Carlos nos propõe que a cidade deve ser analisada para além de suas formas concretas. Forma e conteúdo não podem ser entendidas se não forem articuladas. Se o pesquisador deseja compreender a sua cidade deve tentar chegar ao seu âmago por meio da análise de seu traçado, de sua história, de suas classes e de sua cultura, sempre respeitando a diversidade e a complexidade.