quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Amazonas, Amazonas II

Enfim vamos analisar um pouco a já mencionada obra de Glauber Rocha para o Governo do Estado do Amazonas. O filme se inicia com imagens sobre a floresta, o rio. A narrativa em off fala sobre a conquista da selva pelo português e os mitos que a envolvem. Estes elementos nos reportam á visão idílica da história da região, aquela visão que coloca o homem, diante da natureza grandiosa, brutalizado pelo ambiente, quase como parte dela. O problema dessa visão, como já falamos aqui antes, é que ela imputa ao caboclo características passivas, isso quando não admite em outras oportunidades que a Amazônia é uma região "á margem da história".
A narrativa (recurso amplamente utilizado por Glauber na maioria de seus filmes) fala da colonização e dá um salto para o boom da borracha. O que une tais momentos? A ocupação da Amazônia. Bem, então o homem não é tão passivo assim, como podia-se inferir da fala anterior. Entramos, contudo, em outro ramo perigoso da história oficial local: a glorificação dos grandes feitos. Entre a colonização e a economia da borracha existe um imenso vácuo, ele é deixado de lado porque não há nada de digno (segundo o critério dos historiadores), nada de grande, de edificantes para ser relatado.
Continuando: a ocupação é feita, mas em grande parte por migrantes. Glauber visita uma comunidade agrícola, fundada por migrantes nordestinos (não se sabe ao certo o nome da comunidade: a placa, que aparece atrás dos entrevistados, está um pouco avariada, mas pode-se ler "Vinhas", embora pareça que exista mais alguma coisa escrita). Glauber entrevista o mais velho dos ribeirinhos. A selva mais uma vez chama mais atenção no enquadramento da câmera: quase não se pode ver o rosto dos dois homens sentados no tronco caído.
O ancião fala então da sua jornada: saiu de sua terra, veio para o Amazonas, passou por Manaus, trabalhou com muita gente, veio para esse canto de terra e planeja ter um terreno só seu. Antes que termine de contar seus anseios sobre o futuro, o senhor é interrompido por Glauber: "Corta!"
Casarões em ruínas em Manaus. Foto:  equipe AFINSOPHIA.

A câmera passeia pelo rio, encontrando barrancos com gado e outros com casebres. Chega ao porto de Manaus e passeia pela cidade. Prédios antigos relembram o fausto passageiro da borracha. Ruas apinhadas de gente e de quitandas, acompanhadas de taperas e alguns barracos denunciam a atual situação da cidade. 
Finalmente o documentário parece ter chegado no tempo-presente, após sair da colonização e do boom da borracha (viagem simbolizada pelas imagens da selva, da extração do látex, dos sobrados, do porto e das ruas). O narrador atesta o que as imagens demonstram: Manaus, depois de tanta riqueza e glória, se encontra abandonada e estagnada. "Á espera de um desenvolvimento que não faça dela apenas peça acessória". O Amazonas quer voltar aos tempos de glória, mas não quer ser enganada de novo, como aconteceu com a borracha. É explícito o discurso de valorização da Amazônia.
Trecho da Rodovia Manaus-Itacoatiara (AM -010) hoje.

Alguns minutos depois, sinais de que o Amazonas está no "rumo certo": a conclusão da estrada Manaus- Itacoatiara, os pastos de gado bovino, etc. (Não se fala muito na Zona Franca, embora ela tenha sido ressuscitada por Castello Branco em 1966. Talvez porque ainda havia muitas dúvidas sobre sua implementação foi melhor deixá-la de lado). Se as lendas e a borracha representam o passado, um passado glorioso e honrado, e o presente simboliza o contrário, o marasmo e o abandono, o futuro, por outro lado, se sinaliza cheio de esperanças. Esperanças trazidas pelo desenvolvimentismo, a ideologia resignificada pelos governos militares. Estradas, colônias agrícolas, fazendas de gado: de fato, tudo isso a ditadura militar implantou na Amazônia, como forma de desenvolvê-la e não perdê-la para o comunismo internacional.

Assim sendo, o documentário tem uma linha temporal que utiliza a visão tradicional e oficial da História do Amazonas e que, de quebra, também se encontra com o programa de governo da ditadura militar. As palavras ditas pelo narrador parecem terem sido escritas pelo governador de então, Arthur Cézar Ferreira Reis. O grande tema de Arthur Reis era a colonização amazônica e sua grande tese a de que o português na Amazônia operou uma das iniciativas mais heróicas e triunfais do mundo: ocupar e civilizar o inferno verde.
Glauber em entrevista á Joaquim Marinho, na época correspondente do Jornal do Commércio (se não me engano) teria dito que teve total liberdade de produção do filme. Em se tratando de um filme de propaganda para o governo estadual e dentro de um contexto de ditadura militar, essa liberdade é muito relativa. Acredito que Reis tenha, pelo menos, dado a linha principal do filme.
Arthur Reis

Outro ponto interessante é que nos anos 60 era muito comum no cinema nacional produções que falavam de temas populares, mas por um prisma um tanto prosaico. O crítico Jean-Claude Bernardet chamou essa característica de "modelo sociólogico": faz-se o filme em cima de uma tese, as entrevistas são usadas somente para comprovar essa tese, geralmente descrita (usando-se a narração em off) em tom austero e sisudo. No campo do documentário, o cinema não estava tão ousado como no mundo da ficção, renovada pelo sopro do Cinema Novo. Talvez, portanto, a falta de intimidade de Glauber com esse ramo e as limitações do "modelo sociólogico" também tenham contribuído para Amazonas, Amazonas ser esta produção um tanto carente de crítica.
Glauber era um cineasta comprometido em entender o subdesenvolvimento. Em todas suas entrevistas, em todos seus artigos, ele reafirmava isso. Havia também a questão de se encontrar um estilo brasileiro, mas ela se entrelaçava com a discussão sobre o subdesenvolvimento. O realizador baiano o entendia como produto de nossa colonização e de nossa condição como país capitalista (como pode se ver, entre suas leituras estavam desde marxistas até pensadores do ISEB). Então, um filme que glorifique a colonização e defenda o desenvolvimento capitalista é de longe a negação de tudo que pensava e que vinha fazendo. Não é segredo nenhum entender porque ele sempre renegou esta e sua obra posterior de sua filmografia.
Ivens Lima apresenta Glauber na sua palestra no GEC. Foto: Aurélio Michiles.
Este documentário possui muitas limitações, algumas duvidosas, mas continua sendo um banquete para os historiadores. Ali encontramos um discurso de uma época, de uma elite e de um governo. Encontramos também imagens sobre o Amazonas e Manaus que nos ajudam a materializar o contexto pelo qual ambos vinham passando. Enfim, é uma fonte esperando as perguntas certas serem feitas.

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Mais informações sobre Amazonas, Amazonas:

Mensagem de fim de ano

Mesmo sabendo que as datas são convenções sociais, a maioria ou pelo menos as mais festejadas não correspondem ao evento que comemoram,
Mesmo sabendo que existe toda uma indústria por trás das festas, nos incitando a trocar sentimentos por presentes,
Mesmo sabendo que ninguém mais acredita em nada do que se pretendia acreditar quando inventaram isso tudo,
Teimo em desejar a todos que conheço um feliz natal, um bom final de ano e um próspero ano-novo. Podem pensar que estou louco, mas acho que podemos resignificar o que foi resignificado pelo capitalismo e cia. ilimitada. Uma resignificação mais humana.
Sim, por que não? É o que precisamos cada vez mais: aprendermos a ser humano a cada dia. Aprendermos, valorizar, perdoar, tudo isso e muito mais. Se podemos começar a fazer isso perto do Natal, por "n" motivos, então por que não fazê-lo?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Contradições I

Duas notícias históricas de ontem, dia 18 de dezembro.
A primeira - EUA finalmente retiram suas tropas do Iraque, apos quase nove anos de ocupação para "pacificar" o país.
A segunda - O presidente da Coréia do Norte, Kim Jong Il, veio a falecer, deixando o governo para seu filho mais novo.
Uma dá uma esperança de paz e a outra de guerra, já que diante da pouca aceitação popular é capaz, dizem os analistas, que o filho de Kim Jong Il inicie uma guerra para unir seu povo.
Pelo jeito, a sra. Tensão Internacional saiu do Oriente Médio para tirar férias no Sudeste Asiático.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Amazonas, Amazonas

Nelson Motta está lançando um livro esse ano sobre a juventude de Glauber Rocha. Isso me lembrou um fato curioso de sua carreira: a sua passagem pelo Amazonas e pelo Maranhão.
A imagem que temos de Glauber é daquele diretor que vivia a maior parte do tempo em outro mundo, no mundo de suas idéias, criticando o imperialismo econômico e cultural brasileiro (imagem essa que ele mesmo ajudou a criar). O diretor baiano era um dos representantes de um movimento que prometia mudar a cara do Brasil: o Cinema Novo. Inspirado no neo-realismo italiano, muitos realizadores brasileiros decidiram usar uma nova linguagem no cinema para um novo Brasil, um Brasil que deveria superar o subdesenvolvimento. Subdesenvolvimento e desenvolvimento eram, nos anos 50 e 60, palavras-chave, encontradas desde em manchetes de tablóides até em discussões da boemia intelectual dos grandes centros urbanos.

Enfim, Glauber selou seu compromisso com a "arte revolucionária" do Cinema Novo com o lançamento de Deus e o Diabo na Terra do Sol em 1964. Ali encontramos o sertão brasileiro, local tido pela intelectualidade brasileira (desde Euclides da Cunha) como hábitat do verdadeiro povo brasileiro. O filme tem um conteúdo político (afinal Corisco não grita antes de morrer "Mais forte são os poderes do povo!" só porque é bonitinho), mas também artístico: valorização da cultura brasileira. Tanto é que a música, composta por Sérgio Ricardo, lembra muito uma balada, um repente ou mesmo a leitura de um cordel.

Vocês prestaram atenção na data de lançamento? 1964. Mas antes do golpe militar. Aliás, quando o golpe é consolidado as fitas do filme guardadas no laboratório Líder são apreendidas pelo governo. Só depois de muito negociar com o poder elas são liberadas. Segundo o jornalista Elio Gaspari, começa aí o relacionamento tortuoso de Glauber com a ditadura militar. O governo nunca digeriu muito bem o cineasta baiano, por isso era tentava contê-lo dos mais diferentes modos. Ora procurava cooptá-lo, ora expulsá-lo.
Se em 1964 encontramos Glauber combatendo um governo que quer queimar seu filme, como explicar então que apenas um ano depois ele esteja em Manaus preparando um filme oficial? Seria como se Michael Moore fizesse um vídeo de propaganda eleitoral para George Bush. O que aconteceu de 1964 a 1965?
Em 1965, Glauber foi preso juntamente com uma turma de intelectuais e estudantes que estavam protestando em frente á um hotel no Rio de Janeiro onde vinha acontecendo uma Conferência Internacional sobre a Paz. O governo, segundo a sugestão de Juracy Magalhães (então Ministro da Justiça), lhe ofertou uma chance de se redimir: sairia da prisão e todas as acusações sobre ele seriam retiradas se fizesse filmes para o governo. Glauber, que já vinha passando por uma crise financeira no final de 64, aceitou á contragosto.
Glauber em viagem para Parintins.
Firmado o acordo partiu para Manaus, onde faria um filme de propaganda sobre o estado do Amazonas. O governador era o historiador amazonense Arthur Cézar Ferreira Reis, velho conhecido deste blog. O responsável por convidá-lo foi seu secretário de cultura, Luiz Maximino Correia de Miranda, que tinha bons contatos no Rio de Janeiro. Glauber chega na terra baré acompanhado do cinegrafista Fernando Duarte e com um título provisório na cabeça: "A Conquista do Amazonas".
O diretor concede uma entrevista ao jornalista e crítico José Gaspar, representante do jornal A Crítica, mas arruma a maior confusão por não ver a versão final desta antes dela ser publicada. Roda a baiana na redação do jornal, mas é contido e o caso abafado. Um grupo de cineclubistas vai visitá-lo e convida para dar uma palestra no Grupo de Estudos Cinematográficos (GEC), o maior centro de cineclubismo da cidade. Lá ele dá uma palestra sobre o Cinema Novo, relembrando pontos que ele abordou no seu livro Revisão Crítica do Cinema Novo (1963).
As filmagens começam em 1965. Ele parte com Duarte para Parintins, Itacoatiara e Manacapuru. Uma das maiores obras do governo Arthur Reis era o término da estrada Manaus-Itacoatiara, que não podia deixar de aparecer no filme. Eles só filmam imagens da natureza, das casas e das pessoas trabalhando, não chegam a entrevistar ninguém. A exceção foi um velho agricultor numa comunidade chamada de Vinhas. A sua entrevista é a única utilizada no filme e é bruscamente interrompida por Glauber.
Cena de Maranhão 66.

Em 1966 o filme é lançado com o nome de Amazonas, Amazonas, em uma noite de gala no Cine Ypiranga, se não me engano. Glauber não chegou a ver o filme todo, pois saiu na metade dele. Desgosto? Quem sabe. Mas a sua "dívida" com o governo estava longe de ter terminado: foi convidado pelo governo para cobrir a posse do novo governador do Maranhão, o jovem e desconhecido José Sarney. Assim, temos em 1967 o filme Maranhão 66. Um filme que ressalta a forte ligação do político da ARENA com o povo maranhense e prenuncia um governo progressista para a região.
Depois do Maranhão, Glauber deixaria de fazer filmes para o governo. Viajaria para fora do Brasil e voltaria com uma idéia louca na cabeça: filmar a epopéia de um jovem poeta em um país latino-americano, do populismo á ditadura. Em 1968 era lançado Terra em Transe, uma crítica ferina ao golpe de 64 que utilizou muitas imagens de apoio de Maranhão 66 - o jornalista Narciso Lobo se pergunta até que ponto o político populista interpretado por José Lewgoy se fundiu com o Sarney empossado em 1966, literalmente.
Anos depois, Glauber renegou estes dois filmes de sua filmografia. O motivo já sabemos. Mas só por curiosidade, postarei aqui o documentário sobre o Amazonas e prometo fazer uma análise detalhada dele á seguir, no próximo post.


sábado, 17 de dezembro de 2011

Jongos, Calangos e Folias

Zanzando pela internet me deparei com esse excelente documentário de Hebe Mattos e Martha Abreu (ambas da Universidade Federal Fluminense) sobre manifestações culturais negras no Vale do Paraíba fluminense.
O nome do documentário é Jongos, Calangos e Folias: Música Negra, Memória e Poesia (2005). Postei aqui no blog o começo do vídeo, mas quem quiser vê-lo na íntegra é só dar uma passadinha aqui 


Para quem não sabe:
Jongo - É uma dança de origem angolana fortemente rural que gira em torno da improvisação e da advinhação. É considerado por muitos como o avô do samba, por causa de seu ritmo. O bairro de Madureira, no Rio de Janeiro, após a Abolição, foi um grande centro de jongos. A Escola de Samba Império Serrano foi fundada por jongueiros do Morro da Serrinha. Hoje os principais centros de jongos se encontram no Vale do Paraíba Fluminense (no lado paulista temos Guaratinguetá e Lagoinha também) e no interior de  Minas Gerais onde também são conhecidos como Caxambu (nome do tambor usado na dança).

Calango - Além de ser o nome de um lagarto, é também o nome de uma dança onde os pares dançam arrastando o pé, como o lagarto, enquanto dois cantadores, como os repentistas nordestinos, se desafiam com suas rimas. Também é muito presente na Baixada Fluminense, embora se fale nessa dança em todo o país, mas com variações profundas (em alguns lugares, calango pode ser o nome genérico para bailes, por exemplo).

Folia de reis ou reisado - A encenação da visita dos três reis magos ao menino Jesus pode ser de origem portuguesa, mas é sob a influência africana que ela ganha contornos mais coloridos e musicais. A festa basicamente começa no dia 6 de janeiro, com os reis magos e sua banda visitando todas as casas do bairro. Em cada casa, uma canção pela hospitalidade do dono em recebê-los e outra como despedida
Obs: Quando criança, a figura dos reis magos para mim só era menos assustadora que a dos bate-bolas. O motivo era a máscara toda tosca e os passos meio caóticos. Pensava que eram monstros. Eles chegavam em casa, comiam um pãozinho e bebiam um café e a banda tocando. Eu me danava a chorar. Coisas da infância, né?

Congada - Algumas são representações da batalha de Carlos Magno contra os mouros, outras histórias sobre São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, mas existe uma terceira versão que fala sobre a vida de Chico Rei, um monarca do Congo escravizado e levado á Minas Gerais, mas que consegue juntar ouro e compra sua liberdade. Já ouvi falarem de congadas onde se representa a guerra do rei do Congo, convertido ao cristianismo, contra as tribos pagãs. Das congadas nasceram os maracatus, que são festas mais coloridas e frenéticas, sem um roteiro certo. Basicamente, no maracatu, os foliões dançam em homenagem ao rei do Congo. A parte falada foi sumindo aos poucos da dança.

Vale ressaltar que a maioria dessas danças folclóricas de origem negra são rurais e possuem quase os mesmos instrumentos (tambores como o caxambu e o alfaia, chocalhos como o ganzá, triângulo, sanfona, etc.) Com a urbanização muitas dessas danças perderam sua força, mas não quer dizer que estejam a ponto de estarem extintas. A UFF vem promovendo desde 1996 Encontros de Jongueiros, enquanto na cidade capixaba de Muqui são organizadas festas de grupos de reisado nacionais, só para ficarmos em dois exemplos.

Ensinar ou pesquisar: eis a questão!


O ano-novo traz novas esperanças também para os estudantes de História, afinal o projeto de lei que regulamenta a profissionalização do historiador está em vias de ser aprovado. Esta decisão me deixa feliz, claro, mas também preocupado. Há mercado de trabalho para o historiador, ou seja, para o pesquisador especializado? Na certa há, mas muito pouco. As fundações de amparo á pesquisa espalhadas pelo país estão aí para provar isso.
Queira ou não, todo historiador tem de passar pela sala de aula. Sabemos de professores que se desdobram em inúmeras escolas só para cumprir seu turno de horista, embora desejem um tempo livre para pesquisar. A realidade é que o ensino ainda é o destino da maioria dos formados em História.
E isso é um problema? Não, o problema é como enxergamos essa realidade. Marlene Cainelli nos alerta para uma falsa oposição entre ensino e pesquisa que reside nas faculdades brasileiras.Essa oposição acredita que não se pode ser um bom pesquisador e um bom professor ao mesmo tempo e que a pesquisa é um espaço mais nobre do ofício justamente por produzir o conhecimento, por refletir.
É uma falsa oposição porque um professor pode sim dominar os instrumentos de pesquisa histórica. As duas esferas não se distanciam, mas se complementam. É preciso produzir conhecimento, mas guardá-lo nas prateleiras da academia é uma atitude fatalmente anti-crítica, contrária á expansão da reflexão. Produzir conhecimento deve vir acompanhado de meios de traduzi-lo para públicos maiores, sem desvirtuá-lo totalmente.
Essa dicotomia pode ter nascido da mentalidade tradicional que se tinha sobre o professor, visto como o dono do conhecimento que iria vomitar todo o conteúdo na cabeça de seus alunos. Essa falta de reflexão sobre o ensino, a didática, pode ter se unido á uma condição histórica: o papel de oposição velada ao regime militar que os cursos de pós-graduação em História adotaram. A pesquisa era valorizada, como forma de revelar uma visão mais realista da história do país e criticar os rumos que ele vinha tomando. São dois motivos, elencados por Cainelli, para tal distância entre ensino e pesquisa.
Aproveitemos essa discussão suscitada por tal medida para repensarmos não somente sobre o futuro mercado de trabalho do historiador, mas também sobre as tensões entre ensino e pesquisa e como superá-las.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O descompasso

Costa e Silva, já presidente, ao lado de seu vice, Pedro Aleixo, e do Ministro da Justiça, Gama e Silva.
Em agosto de 1966 passava pelo estado do Amazonas o marechal Artur da Costa e Silva, candidato único á presidência da República. Foi saudado no dia 23 pelo então governador Arthur Cezar Ferreira Reis com um discurso no qual clamava-se por uma maior integração entre o Norte e o Sul, um desenvolvimento que não excluísse as chamadas áreas periféricas do Brasil.
"A Universidade brasileira, por exemplo é, realmente, a Universidade de que estamos precisando para as operações de desenvolvimento que importam na obtenção desse progresso. (...) Há seiva a utilizar. Há semente boa para a semeadura. Aproveite-a, Excelência. Plante as árvores. O momento é propício. A Revolução de 31 de Março, a que Vossa Excelência serviu desde a primeira hora, abriu perspectivas luminosas. Não deixe-as perdidas."
O regime que se instaurou no Brasil em 1964 tinha como bandeira acabar com a subversão e a corrupção, moralizar e desenvolver o país, no entanto, pouca coisa mudou. Se instalou no poder uma fração da elite brasileira francamente anticomunista com um grupo de militares com pretensões mais autoritárias (os chamados "linha-dura"). Com o tempo a "linha-dura" acabou ganhando poder, em boa parte graças ao marechal Costa e Silva que como meio de se promover, de se chegar á presidência soube manipular os desejos desse grupo radical.

Artur da Costa e Silva (1899-1969) era Ministro da Guerra durante o governo de Castello Branco, o primeiro marechal na presidência, aquele que ajudou a construir o regime, embora defendesse uma ditadura temporária, apenas para estabilizar o país segundo o discurso oficial. A ditadura foi sendo prolongada. Todos esperavam eleições presidenciais em 1965, mas em outubro desse mesmo ano Castello anuncia que não haverão eleições por enquanto. Na mesma época, um dos tantos Atos Institucionais do governo acaba com os demais partidos. Os políticos terão de se refugiar em dois partidos: Movimento Democrático Brasileiro, a oposição, e Aliança Renovadora Nacional, a situação.
Castello, que procurava passar uma imagem de homem de alto valor cultural, muito refinado - aliás, foi em uma das muitas reuniões no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro que conheceu o historiador amazonense Arthur Reis, se tornando seu amigo, amizade essa que culminaria na nomeação deste último como governador de sua terra natal - , na realidade, fez pouco para que a democracia voltasse. Por omissão, preferiu não punir os torturadores, denunciados na Missão Geisel (que tinha o propósito justamente de apurar denúncias de tortura por militares); chegou a se reunir com líderes da UNE, quebrando o protocolo da burocracia parlamentar, mas extinguiu a entidade em junho de 1964.
Marechal Castello Branco.
Em cima do muro, com um pé na democracia e outro na ditadura, titubeando entre o diálogo e a censura, Castello passou a ser reconhecido pelos próprios militares como um presidente fraco. Costa e Silva soube explorar essa sua fraqueza para se auto-promover, como se fosse um arauto dos militares que queriam aprofundar as perspectivas nada luminosas de 1964. Com fama de burro e bronco, Costa e Silva, no entanto, tinha pulso firme e entendia dos maquiavelismos da política (tanto que não é a toa que ele conseguiu com êxito sobressair-se mais que Castello Branco).
Lança sua candidatura pela ARENA. Como o MDB procurou se abster desse esboço de eleição, a vitória de Costa e Silva já era certa. Por isso, Reis em seu discurso lhe aconselha o que fazer com os rumos do Brasil. Como presente de aniversário, é declarado eleito em 3 de outubro de 1966, com 294 votos. Um fato curioso é que a eleição de Costa e Silva não inaugura só os anos de chumbo, já que a "linha-dura" agora tem total liberdade para fazer o que quiser, mas também é o marco da esquerda armada.
Aeroporto de Guararapes depois da explosão da bomba.

Em 25 de julho de 1966, durante a campanha presidencial, o marechal chegaria em Recife, mas por se atrasar um pouco na sua visita á outro estado preferiu ir de automóvel até Pernambuco. Contando que o futuro presidente do Brasil passasse pelo Aeroporto de Guararapes, um membro da Ação Popular colocou uma bomba dentro de uma valise em um roll do aeroporto. A bomba explodiu, matando duas pessoas e ferindo e aleijando quase uma centena de transeuntes. Até então esse era o primeiro atentado da esquerda brasileira.
Nos anos anteriores todas as demais tentativas dos grupos de esquerda de combater o regime não chegaram á tal nível, de promover um atentado onde inocentes pudessem ser mortos. É fato que parte da esquerda, distante do PCB que defendia uma linha de combate pacífico, já tinha escolhido trilhar o caminho das armas, como os guerrilheiros de Caparaó, entre Minas e São Paulo, e como a operação comandada pelo coronel Jefferson Cardim, no Rio Grande do Sul, podem demonstrar. Mas todas foram rapidamente desbaratadas pelo governo. A esquerda já estava armada, só não tinha ainda optado pela "guerrilha urbana" ou pelo "terrorismo".
O interessante é que a Ação Popular foi criada por rapazes vindos da Juventude Estudantil Católica e da Juventude Operária Católica, órgãos que nos anos 50 eram conservadores, mas um pouco liberais. O que fez eles deixarem a moderação e partir para um atentado desse porte? A resposta está no modo como a universidade era tratada pelo governo.
Flávio Suplicy de Lacerda.
Arthur Reis pede que o futuro presidente dê mais atenção ás universidades. O pedido de diálogo com as universidades é feito justamente pela falta do mesmo. Em parte, a culpa era do próprio governo. Castello Branco, o "militar culto e refinado", tinha como Ministro da Educação um obscuro reitor da Universidade Federal do Paraná que chamava estudantes de escorpiões e via o movimento estudantil como um bando de ladrões. Flávio Suplicy de Lacerda não se reunia com a UNE. Aliás, a UNE então estava sem sede própria, uma vez que na onda de manifestações de apoio ás causas "revolucionárias" um grupo de vândalos teria ateado fogo no antigo prédio da organização o incendiando por completo. O governo não teve nada a ver com o ocorrido, mas consentiu com o fato, na medida que não apurou quem estava por trás dos atos e não fez nada para encontrar uma nova sede para a organização (a desconfiança nascia da ligação que a UNE mantinha com o presidente deposto, Jango Goulart).
Autoritarismo na educação se unia ao oportunismo de alguns. É famoso o caso do reitor da antiga Universidade do Brasil, Eremildo Luiz Vianna, que ficou por anos a fio no cargo e com o golpe de 1964 demitiu 4 professores e 19 estudantes por suspeita de serem subversivos. O mesmo Eremildo Vianna foi investigado pelo governo e denunciado como fraudador das verbas da faculdade há anos, mas o processo foi arquivado por Suplicy de Lacerda. O reitor da USP, Antônio Luis Gama Silva, denunciou alguns de seus professores, dentre eles Florestan Fernandes para o Exército. Nos lugares dos professores e funcionários expurgados se colocavam amigos, gente de confiança e familiares. Ficava bem claro o tráfico de influência.

Também havia o contexto cultural. O mundo estava vivendo um momento onde conservadorismo e inovações estavam em choque, na chamada Era de Aquarius. Muitas certezas, construídas nas décadas anteriores, estavam sendo abaladas por uma juventude inquieta. 1968 é tido como o marco. Em Paris, estudantes universitários cansados do governo reacionário do presidente De Gaulle foram á rua protestar, enquanto nos EUA jovens que gostavam de música tinham seu contato com o movimento hippie no Festival de Música de Woodstoock. No Brasil, a experiência do Cinema Novo e dos Centros Populares de Cultura já davam a pista do que estava por vir. Isso tudo ajudou a criar uma estética da agitação, no dizer dos críticos da época; onde se unia a busca por um estilo novo com a cultura popular e um engajamento político.
Cada vez mais governo e universidade vão se distanciando, graças ao modo como o primeiro reagia ao segundo. Em 1964 temos a extinção da UNE, as principais faculdades passam a ser vigiadas por policiais, manifestações estudantis são reprimidas com pancadaria, líderes estudantis são presos. Essa radicalização do governo gera outra radicalização, a da esquerda, porque coloca estudantes insatisfeitos com o governo (o que não dizer que sejam todos comunistas) na mesma cela de comunistas históricos, militares contrários ao golpe e brizolistas. A Ação Popular contava com muitos jovens estudantes católicos como Herbert de Souza, o Betinho, mas também com sargentos e suboficiais, pessoas que entendiam de táticas militares. O que os unia era essa convicção de que a democracia não chegaria pelo diálogo com um governo que não queria diálogo.
O corpo de Edson Luis Souto sendo velado, com a bandeira do Calabouço.
Costa e Silva não ouviu os conselhos de Arthur Reis, pelo contrário, agravou o problema: em 1967 extingue as entidades estudantis estaduais, aprofunda a clandestinidade estudantil, além disso a "linha-dura" coloca mais peso nas repressões ás manifestações estudantis - numa manifestação em frente á embaixada americana, 28 estudantes são mortos, sem falar dos 300 alunos da UFRJ presos em outro protesto. O clímax desse desencontro pode ser considerado a morte do estudante paraense Edson Luís Souto em 1968, num restaurante para estudantes pobres no Rio de Janeiro conhecido como Calabouço. O motivo da confusão foi um protesto contra o aumento do preço da comida do Calabouço. Na batida policial, um tiro acerta Edson e o outro estudante Benedito Dutra. Os estudantes velam o corpo dos dois, tidos por eles como os primeiros mártires do movimento estudantil da época.
No final de junho uma grande manifestação é feita na Cinelândia, a Passeata dos Cem Mil, reunindo artistas, estudantes e até políticos, todos contrários aos métodos de repressão do regime. Aos poucos a classe média começou a perceber que a "linha-dura" estava dando um rumo estranho ao país, saindo de uma ditadura temporária para uma possível ditadura eterna. A última sinalização desse desejo se deu quando o AI-5 foi promulgado em dezembro de 1968. O pretexto foi um discurso polêmico do deputado Márcio Moreira Alves, pedindo que as mulheres boicotem seus namorados (se por acaso eles pertencerem ás Forças Armadas) e zombando do Dia do Soldado, uma vez que a Câmara dos Deputados não deixou que ele fosse punido. Tal ato demonstrava infiltração da subversão dentro do próprio governo, deveria ser feita uma limpeza, criando um governo mais coerente, sem objeções ao grande projeto de desenvolvimento e moralização que o regime vinha construindo.

Não é a toa que a universidade foi se tornando aos poucos a oposição velada ao governo. Apesar de com os constantes expurgos entrarem em seus quadros muitos oportunistas, ainda existia muitos descontentes com os rumos da política nacional, principalmente no ramo das Ciências Sociais (Filosofia, História, Pedagogia, Sociologia, Antropologia, etc). Aí está a origem da costumeira imagem do sociólogo ou historiador como o marxista de carteirinha, o contestador por excelência do status quo. Enquanto isso, se investia mais nas Ciências Exatas, principalmente na Engenharia, como forma de ajudar a dinamizar o mercado de trabalho e dispor de profissionais para construir a infra-estrutura que se desejava erguer, o Brasil Grande das obras faraônicas.
Como começamos esse artigo em Manaus é justo que falemos um pouco dos reflexos desse momento na capital do Amazonas. Bem, no atual estágio da minha pesquisa posso apresentar só algumas considerações: a primeira é de que os expurgos universitários também chegaram no Amazonas. O caso mais emblemático, com toda certeza, é do padre Luiz Ruas que além de ser pároco, poeta e cronista (vinculado ao Clube da Madrugada) também era professor da Faculdade de Filosofia do Amazonas. Preso em 1964, na onda de prisões de elementos considerados subversivos, Ruas foi liberado meses depois do golpe, mas guardou por toda sua vida essa péssima experiência. Continuou lecionando, mas com uma menor carga horária, em comparação a que desfrutava antes.

Mesmo detendo o pioneirismo por sediar a primeira universidade do Brasil, fundada em 1919 por Eulálio Chaves dentre outros, após a crise da borracha na década de 1920 a Universidade do Amazonas se esfacelou em uma série de pequenas faculdades, sendo a Faculdade de Direito uma das mais forte e prestigiada delas. Dela saiam os bacharéis, o título que a elite tradicional esperava que seu filho tivesse para ter acesso aos mais honrados empregos disponíveis. Mas havia também a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, onde o prestígio era menor, mas a agitação menor. Nos primeiros dos anos 60, a agitação não tinha um cunho tão político, embora tenham se envolvido com a campanha dos Centros Populares de Cultura (promovendo uma Semana Cultural em Manaus com músicas e peças de teatro de fora do estado). É importante ressaltar o seu vínculo com o movimento Clube da Madrugada, que desejava desprovincionalizar Manaus, retirá-la de seu marasmo cultural. Um dos membros do Clube era o jovem estudante marxista Francisco Vasconcelos, que foi presidente da União dos Estudantes do Amazonas no começo dos anos 60.
Francisco Vasconcelos hoje mora em Brasília.

A partir de 1965, já na gestão de Manoel Alexandre, a UEA patrocina a formação de um grupo de teatro chamado Decisão (inspirando-se no show Opinião de Nara Leão, João do Valle e Zé Kéti) que ensaia produções teatrais ousadas. Mais tarde passaria a se chamar Teatro Universitário do Amazonas e teria seu fim com a baixa audiência de peças tanto do teatro político de Brecht como do teatro do absurdo de Ionesco e, claro, pela pesada vigilância do governo, que chegou a impedir a encenação da peça Zona Franca, Meu Amor de Márcio Souza, em 1968. A crítica ao governo já é notória.
Em 1968, a Zona Franca estava começando a ser instalada em Manaus e o AI-5 tinha destruído os programas de rádio Dimensões do Clube da Madrugada e Voz do Secundarista da União dos Estudantes Secundaristas do Amazonas, todos da Rádio Rio-Mar. O estudante de Direito Internacional Nestor Nascimento estava no Rio de Janeiro, onde presenciou a morte de Edson Souto. A partir daí e das torturas que viria a sofrer a seguir se engajaria na luta contra a ditadura, levando esse engajamento até Manaus. O PCB de Manaus ainda não sabia qual caminho tomar, embora a diretriz do Partidão pra todo país fosse a via pacífica. As manifestações eram pequenas e quando reprimidas, variando com o bom humor dos policiais, temia-se que os estudantes presos fossem levados para a prisão da Ilha de São Vicente, onde ficava o quartel do Grupamento de Elementos de Fronteira.
O peso dos anos de chumbo, portanto, também recaiu sobre Manaus. E as faculdades sentiram isso. Os estudantes de Manaus, os que desejavam ficar por aqui, enfrentavam dois problemas: encontrar mercado de trabalho numa cidade ainda provinciana e se livrar da forte repressão do governo militar. Ao primeiro, a Zona Franca parecia ser uma boa promessa de esperança. Ao segundo, contudo, a solução estava longe de vir ainda, justamente pela desarticulação dos movimentos de esquerda e estudantil na época. Talvez a fragmentação das faculdades tenha ajudado nisso. Talvez o fraco patrulhamento das faculdades e as poucas prisões não tenham criado, como aconteceu no resto do país, aquele vínculo que criou a esquerda armada, o contato entre os demais descontentes do regime. Não sei. Ainda é cedo para falar isso, melhor, para provar.

Homens e muros (parte II)


Dando um passeio por Manaus é meio que inevitável não perceber o que está escrito ou desenhado em seus muros. Se limitando na área, digamos assim, central (Adrianópolis, Centro Histórico, Coroado, Praça 14) encontraremos grafittis e pichações, segundo a classificação que abordamos antes, convivendo junto.
A verdadeira febre ultimamente tem sido a frase "ÉORAP" e suas variações (EORAP...3R, É EORAP..., etc). Como uma epidemia, estas palavras parecem ter infectado cada muro da cidade. Nem o Encontro das Águas escapa, numa montagem feita no Facebook. O que significa? Uma brincadeira cujo significado só meia dúzia de gatos pingados sabe? Pode ser. Como dissemos, o anonimato e a possibilidade de ter muitos significados é uma característica dessa prática urbana, o que produz algumas frases obscuras como essa.
Em um muro na Rua Major Gabriel, antes de se chegar ao conjunto de casinhas pré-moldadas do Igarapé de Manaus (acho que uma quadra antes) podemos ler, entre as rachaduras do reboco: "Só peixe morto que nada com a correnteza". Uma mensagem interessante de inconformismo.

Na Avenida Paraíba, na altura do ponto de ônibus em frente á Escola Ida Nelson, atrás da parada, uma imagem da logomarca da TV Globo acompanhados da frase: "Cuidado! Veículo de Alienação em Massa!" Indo na direção do hospital Check Up encontraremos um desenho de um homem carrancudo dizendo "Manaus Reallity Show!" Este último é assinado por Buiú e Zé, uma dupla que já assinou outros trabalhos pela cidade, principalmente no bairro de Adrianópolis.
Há também os mais bairristas: num muro branco na Rua Leonardo Malcher, atravessando a Rua Japurá, podemos ler "Sou Bairo 14!" Desculpando a falta do segundo "r", até que é uma declaração válida de orgulho por pertencer á essa comunidade. Será que foi feita na época do carnaval, quando as rivalidades das Escolas de Samba afloram? Não se sabe.
Ainda na Leonardo Malcher, mas próxima da Rua Tapajós e da escola Lato Sensu, em um muro sem graça, há um desenho de um rapaz com uma rosa saindo de um de seus dedos e uma estrela de David do outro. Ao lado uma mensagem escrita: "Vamos Amar Mais" (se não me engano).
Pena que não carrego comigo sempre uma câmera fotográfica para registrar estes desenhos para vocês, mas espero que tenha dado uma boa mostra do que se esconde pelos muros de Manaus, no meio de declarações de amor, nomes de grupos ou gangues e até mensagens religiosas. O que eu apenas gostaria de salientar aqui, antes de terminar esse trecho, é que os muros de Manaus tem uma tradição de experimentalismo, mais antiga do que se pode imaginar. Basta dizer que o Clube da Madrugada, movimento cultural que surgiu nos anos 50 em Manaus, teve um papel muito importante nisso. No próximo tópico falaremos mais sobre isso.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Um marechal entre as malocas

O marechal Candido Mariano Rondon (1865-1958) costumava aconselhar os membros do Serviço de Proteção aos Índios, fundado por ele em 1910, que se diante de alguma adversidade com tribos indígenas era melhor "morrer se preciso for, matar nunca".
Rondon e sua máxima são famosos até hoje quando se discute questão indígena. Não é a toa. Desde que esse militar, de origem bororo, participou do serviço delimitação de fronteira e fixação de postes telegráficos no interior do Brasil e entrou assim em contato com os povos indígenas dessa região começou a sua preocupação com o destino desses povos. Preocupação que perduraria por toda a sua vida.
Em suas andanças, Rondon encontrou muitas aldeias á míngua, quase sendo destruídas por doenças como a varíola ou por ataques de grileiros. A maioria dessas comunidades sempre lhe recebeu de braços abertos, algumas até esperando que ele fosse o seu grande salvador, retirando-os da miséria. Isso deve ter sensibilizado muito o então quarentão coronel do Exército.

Rondon estudou na Escola Militar da Praia Vermelha na virada do século e, como muito de seus colegas, apreendeu ali a cultivar uma rígida disciplina e a apreciar o Positivismo. Ordem e Progresso era o lema da nossa bandeira e do ideal positivista. Para essa ideologia, a Humanidade tem estágios de evolução: os primeiros, são os mais primitivos, e a tendência é se chegar até o último, o Estado Positivo ou Científico, onde a razão passa a guiar as pessoas e os sentimentos bárbaros e violentos são deixados de lado.
No Brasil, essa corrente de pensamento foi uma das mais fortes durante a República Velha, contudo fizemos uma leitura toda nossa do Positivismo: enquanto August Comte, seu fundador, acreditava que essa evolução seria feita primeiro na sociedade, para depois atingir o Estado, o político gaúcho Júlio de Castilhos acreditava que deveria acontecer o contrário e Benjamin Constant, republicano histórico e professor de gerações de militares, defendia que só chegaríamos ao estágio positivo com a ajuda do Exército.

O que isso tem a ver com a questão indígena? Rondon, sendo fortemente positivista e nacionalista, inseriu a problemática indígena nessa discussão. A sociedade brasileira teria que incorporar os "primeiros brasileiros" se quer se tornar evoluída e uma das maneiras de se efetivar essa incorporação é justamente o Exército, segundo a interpretação de Rondon. Por isso, o general incentivou o ingresso de tantos jovens indígenas nas fileiras do Exército. Prometia á eles uma educação gratuita, uma carreira sólida e um certo prestígio.
O que encontramos na interpretação de Rondon é aquela velha associação do indígena com o arcaico e o primitivo. A conclusão a que se chega: A sua cultura é louvável, mas sua extinção pelo Progresso é inevitável, o que podemos fazer então é incorporá-lo, aculturá-lo. Mesmo carregando um pouco de etnocentrismo, marechal Rondon foi uma das poucas figuras públicas que nutria uma simpatia e uma preocupação com os povos indígenas. Um dos poucos que no alvorecer da Primeira República se dedicou a discutir as políticas indigenistas, diante da indiferença geral que reinava na sociedade sobre tal assunto.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Homens e muros (Parte I)

Os versos de Anibal Beça nos serviram como uma bela introdução para o tema que pretendemos abordar hoje: os muros de Manaus. Melhor, o uso artístico dos muros de Manaus.
Na realidade, faremos aqui uma viagem: do presente ao passado, do passado ao presente. Confrontaremos alguns dizeres inscritos nestas telas em branco ao ar livre. Mas antes precisamos iluminar alguns pontos: primeiro, por que o muro? Por que as pessoas gostam tanto de soltar a imaginação nos muros?
Ora, para registrar algo de seu cotidiano, para passar adiante alguma gracinha ou uma mensagem engajada. São várias as respostas. O lugar escolhido é o muro porque ele é uma das tantas dimensões de nossa vida pública. Nós passamos por eles todos os dias. É inevitável; alguma hora você vai prestar mais atenção nele. É o cantinho perfeito pra quem precisa de visibilidade, afinal, não é a toa que muitos cartazes e outdoors lhe enfeitam.
A botinha preta, marca de Alex Vallauri.
Não falaremos sobre o uso comercial do muro, mas sobre o uso artístico. Mais uma pergunta se impõe: desenhar/escrever em um muro é arte ou poluição visual? Quando a depredação de um espaço público se torna arte? Bem, as fronteiras não estão tão bem demarcadas assim. Há aqueles que acreditam que há um lado artístico nessa prática urbana e que há um lado criminoso também. Criou- se a divisão entre grafitti e pichação. Enquanto a pichação é mais tosca e agressiva, o grafitti é mais elaborado, esteticamente, e consciente de que pode passar uma mensagem poética ou uma denúncia social. Contudo, há aqueles que colocam tudo no mesmo saco.
Essa discussão se iniciou no final dos anos 60. Maio de 1968 foi muito importante nisso porque os muros foram utilizados pelos entusiasmados jovens franceses para denunciarem o conservadorismo em que viviam. "É proibido proibir", "Seja realista: peça o impossível!", esses e outros tantos dizeres estampavam as paredes de Paris, enquanto nas ruas do Rio de Janeiro podia-se ler "Abaixo a Ditadura" ao lado de "Celacantos provocam maremotos".
Você deve estar procurando no Google agora o que quer dizer celacanto, mas vou logo adiantando para você que esse peixe pré-histórico nada tem a ver com os anos de chumbo da ditadura militar. Era apenas uma brincadeira, como tantas que vemos por aí. O fato é que teve gente que até chegava a fazer toda uma interpretação simbólica da frase: "celacantos" seriam os políticos caquéticos e os "maremotos" as crises econômicas. Se era isso, ninguém sabe. Essa é uma das características dessa prática urbana: ela é anônima, na maioria das vezes, e de livre interpretação.
Mas, enfim, estávamos falando da importância de Maio de 1968 para a valorização do grafitti. A verdade é que o grafitti foi beneficiado também por outro fato histórico: desde o começo do século XX, com as infinitas vanguardas artísticas, passou a se questionar o que se entendia por arte, tornando esse conceito muito mais flexível. Até então só uma escultura que seguisse os padrões estéticos gregos era considerada arte. Na virada do século XIX vários artistas começaram a questionar isso e a propor novas formas de arte.
Os sonhos podiam se transformar em arte, segundo os surrealistas, e obetos industrializados também, de acordo com os papas da arte pop. Então, por que não o grafitti? Os olhares passaram a se voltar para os muros das cidades.

Basquiat
No final dos anos 70, em Nova York, o pintor Basquiat deixou em muitos muros pela cidade alguns desenhos seus. Dizia que preferia expor suas obras nas ruas que nas galerias, embora nunca tenha deixado de pintar telas. Nós também tivemos nosso Basquiat: o desenhista e gráfico italiano, mas radicado brasileiro Alex Vallauri que pintou por toda a cidade de São Paulo, entre 1980 e 1990, uma botinha preta de couro e suas peripécias. Não é a toa que o dia do grafitti é comemorado em São Paulo no dia de seu falecimento: 27 de março (1989).
Enfim, por causa de todos esses fatores, o grafitti hoje é reconhecido como uma arte urbana, democrática e engajada. Se resta alguma dúvida, o prestígio que grafiteiros conhecidos dispõem hoje pode corroborar isso: Os Gêmeos (Gustavo e Otávio Pandolfo) já expuseram seus trabalhos em galerias de San Francisco e Nova York e um documentário sobre o anônimo grafiteiro britânico Banksy até já ganhou o Oscar.

Banksy