terça-feira, 28 de junho de 2011

América para os (norte)americanos

Carregador de flores, Diego Rivera.
A independência dos Estados Unidos da América, como falamos em post anterior, foi um evento que abalou o mundo. Foi interpretado como uma crítica ao Antigo Regime lá e cá (na Europa e na América) e a base dessa crítica era o direito á liberdade. Ora, quem mais inspirou-se na heróica luta do povo norte-americano foram seus vizinhos latino-americanos.
A sociedade colonial hispano-americana era controlada pela Coroa e por seus emissários diretos no continente - chamados de Chapetones. A sociedade colonial portuguesa por sua vez não era muito diferente, mas sua estrutura era menos rígida (nascidos na colônia poderiam desfrutar dos bens públicos). Como nos indica o historiador peruano Juan Carlos Estenssoro, a sociedade colonial é cosntruída em cima de uma oposição, seja entre brancos e índios, seja entre insulares e nativos.
Com o passar dos anos, contudo, uma pequena elite se formará nas colônias e ela fará o jogo dos poderosos por muito tempo (tendo em vista sempre, claro, seu lucro pessoal e seu status). Na América Hispânica será chamada de Criollos e no Brasil de Homens de Grossa Ventura. O maior interesse desses homens era acabar com o pacto colonial e assim comercializar com qualquer país. A situação tornou-se insustentável para esses homens quando no final do século XVIII uma série de medidas foram tomadas pela Coroa Portuguesa (através do Marquês de Pombal) e Espanhola (através das reformas Bourbons) para se controlar melhor as colônias e explorá-las mais.
General Simón Bolívar: um dos líderes do movimento de independência latino-americano.
Essa elite "nativa" começou a atacar o sistema colonial utilizando como argumento a defesa da liberdade. Era uma liberdade restrita, contudo. Se nos discursos ela contemplava á todos os marginalizados pelo sistema colonial (incluindo a população pobre, mestiça, indígena e negra), na prática ela ficaria nas mãos dos homens de grossa ventura e dos criollos. No México, por exemplo, o movimento de independência foi popular, no entanto, após a conquista da autonomia veio a dominação, agora pelos grandes fazendeiros. A maioria dos demais movimentos, contudo, partiu da elite e do exército, conseguindo êxito em grande parte pela situação em que a Espanha se encontrava (guerras napoleônicas).
Uma vez terminada a guerra com Napoleão e restaurada a Coroa, a Espanha tentou conseguir suas colônias de volta. Contava com o apoio de boa parte da Europa que temia a Revolução Francesa (principalmente por conta do período de Terror que veio com Robespierre e de guerras com Napoleão) e anseava retornar ao Absolutismo. Essa liga de países absolutistas ficou conhecida como Santa Aliança (durou de 1815 até 1848) e uma de suas preocupações era justamente reaver as colônias perdidas. No entanto, nessa época surgia um forte adversário á liga: os Estados Unidos da América.
Após conquistar a independência em 1776, o país começou uma expansão a qual deve boa parte das terras que possui agora (algumas tomadas dos povos indígenas do oeste, outras compradas da Espanha, da Rússia e do México - caso, respectivamente, da Flórida, Alaska e Texas). Enquanto estava se expandindo, o EUA construiu um discurso no qual se colocava como o defensor do liberalismo (que a Santa Aliança tanto temia) e do continente americano. Famosa foi a declaração do senador James Monroe: "América para os americanos". Se a doutrina Monroe, como ficou conhecida, era contra a intervenção estrangeira no continente, por outro lado ela era conivente com a intervenção norte-americana em seus vizinhos.

Batalha de San Juan Hill (1896): Guerra Hispano Americana.
Após a Guerra de Secessão (1861-1865) os EUA finalmente superaram a divisão entre Norte e Sul, fortalecendo-se e assim preparando-se, politica e militarmente, para intervir na região. A primeira prova veio com a Guerra Hispano-Americana em 1898. Os Estados Unidos decidiu defender a independência da pequena Cuba diante da Coroa Espanhola, conseguindo atingir seu objetivo: Cuba tornou-se livre, mas dependente de seu tutor norte-americano.
Foi com o presidente Theodor Roosevelt, já no século XX, que o modelo de intervenção norte-americana se definiu com a política do Big Stick: "fale macio, mas use um porrete". Os EUA poderia agir influenciando assim o processo político de seus vizinhos e, em situações mais graves, invadindo o país. Durante boa parte do século XX o continente assistirá a uma série de golpes e de intervenções militares, principalmente na sua segunda metade quando EUA consolidar sua posição de potência militar e tiver iniciado a Guerra Fria. Assim, uma sociedade que se apresentou ao mundo como uma das primeiras á defender a auto-determinação dos povos passou a ser uma das que mais a manipula.

sábado, 25 de junho de 2011

"Mutante com orgulho"

X-Men: Primeira Classe é um filme no qual pouca gente botava fé. Era visto como mais uma maneira da Fox, a distribuidora da franquia, conseguir mais dinheiro mexendo em algo que havia dado sucesso antes. Na realidade, Wolverine: Origens já fazia parte desse plano, mas foi um fracasso. Por isso foi um susto para muita gente, incluindo a própria distribuidora, quando o novo filme estourou nas bilheterias.
Esse filme (que pretende possuir algumas continuações, até para encaixar nos filmes anteriores) fala sobre o começo da equipe de mutantes criada por Stan Lee e Jack Kirby em 1962. Curiosamente, a história se passa na data em que os super-heróis foram criados. O novo filme se aproveita de outro acontecimento de 1962 também: a crise dos mísseis em Cuba.

Manchete do Estado de S. Paulo sobre o desenlace da Crise dos Mísseis de Cuba em 1962.
Foi um ato muito ousado envolver X-Men e História, mas se pensar bem essa relação é mais que explícita. A mensagem de X-Men tem a ver com uma pergunta: como lidar com as diferenças? Temos aqui um bando de pessoas que possuem super-poderes graças á evolução. Elas não sabem o que fazer com seus poderes e a Humanidade não sabe o que fazer com eles. Por isso X-Men foi um sucesso na época, porque naquele momento muitas questões que estavam em pauta tinham a ver com essa mensagem. Naquele momento vivia-se nos Estados Unidos as lembranças do macarthismo (a caça aos comunistas empregada pelo senador Joseph McCarthy entre a década de 1940 e 1950), isso sem falar da luta pelos direitos civis dos negros. Muitos comparam o personagem Professor Charles Xavier com Martin Luther King por seu ideal pacifista e Magneto, o vilão original da série, com Malcolm X ou os Panteras Negras, por sua posição mais radical.

Joseph McCarthy
Martin Luther King Jr.
Malcolm X
Passaram-se os anos 60 e X-Men continua sendo um sucesso. Por quê? Porque a sua mensagem tem um quê de universal: independente de onde e em que época estamos, sempre haverá alguma espécie de preconceito contra o que é diferente do que chamamos de "normal". Hoje, com a temática jovem mais explorada, X-Men pode dizer respeito ao período difícil da adolescência onde criamos nossa identidade e nos preocupamos com a aceitação das pessoas. Há sempre o medo de ser diferente.
E neste filme essa questão fica mais do que clara. No começo do filme, Xavier dispara uma cantada em uma mulher sobre sua mutação: ter um olho de cada cor. Xavier diz que ela não se deve envergonhar, que devemos revisitar o termo "mutante" extraindo dele a carga pejorativa e percebê-lo como fator de orgulho. E no final do filme, Mística (aliás, uma personagem que foi muito bem trabalhada) deixa como mensagem á seu colega Fera, outro que teme mostrar quem realmente é ao mundo, que ele seja "um mutante e com orgulho". Aí está a questão das diferenças.

Charles Xavier (James McAvoy) e Erik Lehnsser (Michael Fassbender).
No entanto, as propostas de como a aceitação deve vir podem ser diferentes e elas são trazidas pelos dois personagens mais carismáticos da franquia: Professor Xavier e Magneto (muito bem interpretados por James McAvoy e Michael Fassbender). Um, como dissemos acima, defende a convivência pacífica e outro a luta. Xavier tem uma visão mais otimista da Humanidade, enquanto Magneto (até por conta de sua experiência em um campo de concentração) enxerga as coisas de uma maneira mais pessimista. Os dois tem bons argumentos e acabam se complementando. Talvez por isso os produtores desistiram de fazer um filme apenas do Magneto: ele e Xavier são inseparáveis, seja como amigos ou como inimigos.

Sebastian Shaw (Kevin Bacon) e Emma Frost (January Jones).
Magneto, contudo, não é o vilão desse filme, mas o milionário e também mutante Sebastian Shaw (interpretado por Kevin Bacon). Shaw é ávido por poder, mas no discurso se aproxima de Magneto, uma vez que ele sonha em um mundo dominado pelos mutantes. Sua intenção é justamente criar a Terceira Guerra Mundial com o propósito de fazer as grandes potências (EUA e URSS) acabarem com a Humanidade, abrindo o caminho assim para os mutantes. Shaw faz parte de um grêmio de homens poderosos (econômica e politicamente) que influenciam as decisões globais chamado Clube do Inferno (aliás, existiu realmente um Clube do Inferno na Inglaterra do século XVIII, onde os homens mais ricos se embebedavam e participavam de orgias) que acaba provocando nesa história a Crise dos Mísseis em Cuba. O objetivo de Xavier e Magneto é formar um time de mutantes e impedir que ele realize seu plano.
Até agora eu falei sobre o filme explorando essa sua relação com a história. Agora vou deixar minhas impressões sobre o filme como um todo. Em primeiro lugar, não sou um fã carteirinha de X-Men. Sou o que pode se chamar de "fã relapso": eu vi o desenho animado do começinho dos anos 90 e uma nova edição dele que fizeram no final da mesma década e li algumas edições desconexas. O que sei sobre o universo de X-Men é o básico. A grande polêmica que surge quando se fala em adaptações de histórias em quadrinhos para o cinema é as mudanças que os roteiristas fazem e elas partem dos maiores fãs das séries. Nesse filme, assim como no primeiro de 2000, existem muitas mudanças. Óbvio, são mídias diferentes; as mudanças sempre existirão. Por isso se chama "adaptação"! E acredito que toda mudança é bemvinda desde que não se traia o espírito da série ou de seus personagens.
Nesse filme temos várias mudanças: a equipe original não tinha Banshee, Destruidor, Darwin, Mística; Sebastian Shaw era um grandalhão do século XVIII que tinha perdido a mulher; Magneto não tinha pertencido á primeira equipe e por aí vai! Mas mesmo assim, os roteiristas souberam usar isso em seu favor: Shaw continua sendo o personagem megalomaníaco e maquiavélico que era, Xavier continua sendo o mais sensato dos mutantes, Magneto continua sendo o mutante violento e carismático, o objetivo da primeira equipe é impedir outros mutantes de utilizarem mal seus poderes (como os do Clube do Inferno). O que prova que acertaram na mão ao contratar roteiristas que realmente conhecem seu material, como o diretor dos dois primeiros filmes e co-roteirista Brian Synger, apaixonado pela série desde criança.
Isso faz com que o filme seja surpreendete e inovador, aliás, eles estão contando uma história que todo mundo sabe o fim. Ainda assim, esse filme tem várias faces: o começo relembra o filme de 2000 (com a impactante cena de Magneto ainda garoto envergando o portão do campo de concentração), logo a seguir ele toma um rumo que lembra e muito Bastardos e Inglórios (possui inclusive uma cena no bar argentino que faz referência direta áquela cena do bar alemão) e então a história ganha um ar de espionagem á la James Bond (com vilões excêntricos [falando nisso, o Clube do Inferno lembra um bocado o Spectre...], fugas espetaculares e o velho tema da Guerra Fria). Há poucos minutos do final, o enredo consegue realmente se achar e aí sim estamos diante de um filme dos X-Men.
Resumindo, é um filme que explora bem sua relação com a História e com a série. Ele consegue ser novo, sem deixar de ser fiel á série. Quem não conhece a série entenderá e quem conhece também. Além disso tem ótimas cenas de ação e vale a pena ser assistido.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Furacão na Botocúndia II

Roberto Peixoto nas eleições de 2009.
Nesta terça-feira, dia 21, o prefeito de Taubaté e a primeira dama (respectivamente, Roberto Peixoto e Luciana Peixoto) foram presos pela Polícia Federal. Também foi preso um ex-gerenciador de vendas. O trio é acusado de participar de um esquema de desvio de verbas no município - lembra daquela história do lobby das empresas de fornecimento de merenda que foi parar até na mídia nacional? Pois é, a Polícia Federal vinha organizado uma investigação sobre o caso desde 2009 e chamou a operação de Urupês.
Fica a pergunta:  se a investigação corre desde 2009, porque só agora Peixoto foi indiciado? Será que a reportagem que saiu no Fantástico e nos jornais do Brasil inteiro tem a ver com isso? Claro que tem. Ninguém pode negar o peso da mídia quando se trata de pressionar por resultados. Não tenho como medir o descontetamento da insatisfação do povo de Taubaté, mas sei que ela deve ser grande. Una-se isso á imagem negativa produzida pelas reportagens.
No entanto, na noite dessa sexta-feira, o casal foi liberado pela polícia graças á um habeas corpus. Não voltaram para casa, pois temiam a reação popular. De qualquer maneira, o simples atos do prefeito ser preso demonstra o quanto o município está desgastado. A prefeitura parece ter se tornado um feudo onde Peixoto e seus amigos governam há quase uma década. Desde a República Velha, o município faz parte da cadeia de clientelismos dos governos federal e estadual. As disputas políticas não saiam da esfera do município, contudo os votos seriam sempre dados ao governo federal e estadual. Assim, muitos homens foram entronizados em Taubaté. Chegamos a outro ponto interessante: o personalismo. Parece que com o tempo surgem uma nova liderança política sobre a qual se aglutina vários seguidores, mas que na realidade não traz algo de distinto de seu adversário a não ser em algumas propostas administrativas. É o caso dos Marcondes de Mattos, os Costas, os Guisard, os Ortiz e os Peixotos.
Os políticos eram clientelistas não só com o governo, mas com a população. A troca de favores, o apadrinhamento, eram ferramentas muito eficientes para angariar um curral eleitoral. No entanto, era inegável que o cárater autoritário das políticas municipais: a maioria pretendia extirpar a cultura caipira e rural e transformar Taubaté em um centro cosmopolita aos moldes de Paris. O povo,contudo, não conseguia se unir fortemente para combater a situação. As reações eram poucas. Estouravam como pequenas e rápidas explosões.
Hoje não temos mais uma política autoritária (pelo menos na teoria), mas o clientelismo, o apadrinhamento continua. Se antes, a política era inatingível, hoje ela é acessível. Nós que não vamos até ela. Não sei se por que a apatia e a indiferença virou tradição ou porque realmente não temos tempo com tantos afazeres e responsabilidades. O fato é que a cassação dos responsáveis por esse esquema (e de todos os tipos de esquemas de corrupção em qualquer lugar do Brasil) deverá ser feita por dispositivos institucionais, mas ela só será feita com a nossa ajuda. Com a pressão popular.
Eu me alegrei ao saber que o esquema foi denunciado e os responsáveis indiciados, mas ao mesmo tempo me preocupei. Me preocupei com o destino desse episódio: ele acabará em pizza ou não? Será apenas mais uma pequena explosão, como nos tempos da República Velha? Isso só o tempo e o povo dirá.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Daoísmo Fajuto

Daoísmo Fajuto - ou, um poema político
André Bueno

Seja autoritário
E faça com que mendiguem seu favor
Você será exaltado
Seja determinado
E faça com que estudem para o labor
E você será detestado
Seja liberal
E não faça nada por amor
E você será amado

Seja visionário
E faça tudo com furor
E você será desprezado
Seja falso, demagogo, desleal
E você fará tradição
Seja verdadeiro, honesto e leal
E você conhecerá a traição

Mas quando tudo mais falhar
E aí, o outro fugir
Somente o santo sábio vai voltar
E começar a resistir...

(Do seu blog Dedelópolis)

terça-feira, 21 de junho de 2011

A lição de Shutruk Nahunte

O filme Clube do Imperador nos oferece algumas reflexões muito boas sobre a prática de educar. A história, dirigida por Michael Hoffman, se baseia no relacionamento entre um professor de História Antiga, John Hundert (interpretado por Kevin Kline) e seus alunos da Escola Saint Benedict para Garotos, principalmente Sedgwick Bell (Emile Hirsch), um garoto-problema.
Hundert é um homem extremamente ético que possui uma concepção clássica (no sentido de relembrar o pensamento dos filósofos gregos) de educação: para ele, o ensino é capaz de mudar o homem. Se o caráter de um homem é o seu destino, como afirma no começo do filme, a educação pode ensinar um homem a ser ético. É o que Hundert tenta fazer com seus alunos. Ele tenta despertar o interesse pelo aprendizado e utiliza os personagens históricos como modelos para as atitudes de seus alunos. Até mesmo o desconhecido Shutruk Nahunte, um general cartaginês que ganhou uma batalha, mas foi esquecido pela história porque ela não alterou em nada o status da guerra, foi uma conquista pessoal. Nahunte é um modelo do que não deve ser seguido: segundo Hundert, uma conquista baseada somente na ambição, sem contribuição, é uma falsa conquista.

Hundert e Bell.
Em 1976, chega á escola um aluno novo, Bell, filho de um eminente político norte-americano e que não leva nada á sério. Hundert o desaprova, mas após conhecer seu pai, se empatiza com o garoto e decide ajudá-lo. Afinal, o menino não tem culpa de ter um pai que não se importa com ele. O que Bell queria era ter o orgulho do pai e a forma dele conquistá-lo podia ser através de boas notas. Hundert o incentiva a entrar para um tradicional campeonato de perguntas sobre História Antiga, o Clube do Imperador, mas como ele não consegue a nota mínima para ser um dos colocados ele manipula os resultados e o inscreve na competição.
Para seu desapontamento, Hundert percebe que Bell estava colando e lhe manda uma pergunta improvável, passando a vitória para o outro finalista. Bell volta a ser o aluno problema que era antes e Hundert fica decepcionado não só com seu pupilo como consigo próprio por ter manipulado os resultados e retirado um aluno capaz da competição.
Passam-se os anos e Hundert espera ser o próximo reitor do colégio, mas perde o cargo para um colega que tinha melhores contatos. Desapontado, deixa a escola, mas é convidado para ser jurado de uma competição no estilo do Clube do Imperador. Uma revanche, mas dessa vez todos são homens feitos. Bell se tornou empresário e é o responsável pela nova competição. Hundert vai com a esperança de que as coisa sejam consertadas dessa vez, no entanto, Bell repete o mesmo ato (colando) e Hundert repete a fórmula que o desclassificou fazendo uma pergunta tão óbvia que não podia estar na cola. Bell não perde a compostura e faz um discurso lançando a sua candidatura política. Assim, Hundert entende finalmente a motivação dessa revanche: uma forma de Bell se auto-promover.
Hundert dessa vez tira satisfações com Bell e este justifica suas ações com base em seu sucesso. Hundert tenta agir certo e está no fundo do poço, enquanto seu aluno corrupto está cada vez mais rico. No entanto, seu filho ouve a conversa e se decepciona com o pai. Parece que a história se repete: um novo abismo entre pai e filho. Hundert então se pergunta até que ponto as conquistas de Bell foram realmente conquistas.
Antes de ir embora, o professor pede desculpas ao antigo aluno que desclassificou para ajudar Bell e recebe uma homenagem de todos seus ex-alunos. A consideração que eles possuem por ele o sensibilizou. Hundert pode perceber que conseguiu atingir o seu objetivo, pois a maioria de seus antigos pupilos eram realmente homens éticos. Bell foi um dos poucos erros.

Hundert entre seus alunos.
Assim ele volta a dar aulas. Pouco lhe importa que a instituição não lhe reconheça, o que importa é que ele está fazendo o certo; está formando homens responsáveis e maduros e estes reconheceram um dia a dívida que tem para com ele. Pouco lhe importa que um aluno não conseguiu aprender isso, pois o que realmente importa é não desistir e continuar tentando atingir esse objetivo com outros alunos.
Hundert possui uma prática pedagógica, como dissemos, clássica, mas que tem muito em comum com a maioria dos filósofos da educação, uma vez que todos concordam que a educação não é só conhecimento, mas também atitudes e habilidades que devem transformar o homem em um ser independente e responsável.
Hundert também algo em comum com nós, atuais e futuros professores: ele não é devidamente reconhecido pelos órgãos oficiais. Nossa profissão possui essa característica muito interessante de ser supervalorizada como instrumento de mudança e desenvolvimento da sociedade e, por outro lado, de não valorizar seu profissional. Ao professor recai as mazelas do sistema educacional: não se enxerga a educação como um processo que merece a atenção de todos. O filme salienta inclusive o papel da família na educação, através do senador que não quer que Hundert molde seu filho, Bell.
O ramo da educação é algo muito difícil. É uma luta diária. Sabemos que o sistema educacional brasileiro foi feito para estimular a alienação (uma vez que ele está subordinado ao Estado e ao capitalismo). Além de possuir esse objetivo, o sistema não é eficiente e está falindo. O resultado é o que vemos na televisão: alunos sem condição de estudar por causa da falta de recursos na sala de aula (inclusive merenda) por conta do desvio de verbas e professores se desdobrando em mil para poder ensinar uma sala de milhares de pessoas.
No entanto, o filme nos passa uma mensagem que está longe de ser conformista: a situação é difícil, mas a realização de ensinar vale a pena. O verdadeiro professor é aquele profissional que sabe disso. O verdadeiro professor é um lutador se pensarmos bem. E a educação nesse país precisa de lutadores, de pessoas comprometidas. Senão nunca conseguiremos formar homens éticos. Senão toda conquista no campo educacional será vazia como a de Shutruk Nahunte.

sábado, 18 de junho de 2011

Inverno e Primavera Árabe

Bernard Lewis
Bernard Lewis é um grande especialista no Oriente Médio, sendo até hoje um dos pioneiros no estudo do Império Turco Otomano, no entanto não é tão festejado assim nos círculos intelectuais  internacionais por conta de sua posição política de apoio á intervenção norte-americana no Oriente Médio.
Lewis parte da idéia de que a civilização islâmica começou a entrar em crise quando o Império Turco Otomano sumiu em 1918. Conhecido como um dos impérios da pólvora por ser um dos poucos a utilizá-la como arma (os outros são o império Grão-Moghol e o Império chinês após ser conquistado pelos descendentes de Gengis Khan), nasceu com a conquista de Constantinopla por um grupo de turcos convertidos ao islamismo em 1453 e durou quase 500 anos. O motivo de tal sucesso está ligado á sua estrutura administrativa eficiente, sua capacidade bélica e sua tolerância (o sultão era o comandante de todos os fiéis muçulmanos, independente da região em que viviam e mesmo os membros de outra religião poderiam viver em território comandado por ele desde que pagassem um tributo). A primeira coisa a roer foi a capacidade bélica com a derrota para a Liga Santa (de reinos católicos europeus) em 1571, logo em seguida veio a cair a sua eficiência administrativa com focos de corrupção e com o surgimento de verdadeiros caciques locais. O Ocidente estava vivendo a Revolução Industrial e o Império Turco Otomano estava caindo aos pedaços. Foram feitas algumas tentativas para se reerguer, mas foram inúteis. O Império veio a acabar com uma revolução feita por jovens estudantes e militares que adotaram os valores ocidentais como seu guia (os Jovens Turcos).
Sem o sultão, as comunidades muçulmanas ficaram órfãs. Logo surgiram uma série de movimentos radicais: ou pregavam a volta ao islamismo dos primeiros tempos ou pregavam a total adoção dos valores ocidentais. Vale um especial destaque para os movimentos de defesa da identidade regional (conhecido como Wattanybia) seja ela iraquiana, síria ou palestina. Outro destaque é o pan-arabismo, iniciado com Gamal Nasser, e que tinha uma proposta laica e populista.
Os conflitos no Oriente Médio começam então com a entrada das potências estrangeiras, uma vez que elas estimulam essas reações á seu imperialismo, e com o fim de uma unidade política e religiosa forte (o Império Turco Otomano). Por isso acredito que os conflitos do Oriente Médio são eminentemente políticos e a religião é utilizada somente como um pretexto. Bernard Lewis acredita que no Oriente Médio religião e política são intrínsecas (uma vez que o islamismo nasceu com Maomé e ele próprio construiu uma instituição e um aparelho de Estado, diferente do cristianismo que nasceu como uma seita de dissidentes judeus e só veio a se tornar uma grande instituição após Constantino ter se convertido séculos depois).
Lewis acredita que o Oriente Médio possui certas tendências: primeiro, a tendência á unir política e religião, e segundo, a tendência á se orientar com base em paradigmas vindos de fora - ora, o islamismo foi criado justamente pela união entre a cultura beduína com o cristianismo europeu e bizantino com o judaísmo, assim como o sunismo foi remodelado pela influência dos conquistadores mongóis. Essas duas tendências explicariam a crise do islã: o Oriente Médio está sofrendo as consequências do fim de uma unidade política e da falta de um paradigma novo. A solução pode estar em renovar a cultura árabe com valores ocidentais como a democracia, a secularização. O que Lewis propõe é uma ocidentalização do Oriente.
Está claro que qualquer sociedade se enriquece ao entrar em contato com outra sociedade, mas nem sempre esses contatos são orientados por motivos nobres. A conquista do Novo Mundo foi movida pelo mercantilismo e acabou com dezenas de povos indígenas. Se pensarmos bem, foi a repartição do Oriente Médio que iniciou a crise do Islã de que fala Lewis. E seu projeto de ocidentalização também está embasado em interesses específicos: controle de uma região rica em petróleo, mão-de-obra e mercado consumidor.

Edward Said
Um grande crítico de Lewis era o professor de literatura norte-americando Edward Said que construiu sua obra tentando mostrar através da literatura e dos discursos como o Ocidente construiu uma imagem do Oriente para justificar sua dominação sobre ele. Lewis, em sua visão, é mais um nome para lista de adeptos dessa ideologia. Said iniciou uma corrente de pesquisadores do Oriente Médio que criticavam justamente essa dominação ocidental e lembravam a complexidade da região. No entanto, quando se fala em propostas para solucionar o conflito, muitos defendiam, além da saída das potências estrangeiras, a promoção do debate como forma de esclarecer a população. O debate seria levado por intelectuais, mas de onde? Do Ocidente. Temos então uma reafirmação assim do Ocidente, ainda que de forma sutil.
Essas duas visões tentam entender, de formas diferentes, como o Oriente Médio entrou em uma fase obscura. No entanto, não demonstram certo otimismo com a capacidade dos seus habitantes: a solução pode ser diferente, mas sempre deve ser efetuada por ocidentais. O que dizer então quando a Península Arábica toda é sacudida com movimentos que surgem de dentro dela e que clamam por mudanças. Esses movimentos, alguns bem-sucedidos e outros não (pelo menos ainda não), pegaram todo o Ocidente de surpresa. Não se esperava ver árabes lutando por melhores condições de vida, indo além do discurso do rancor ou da obediência aos ditadores locais, porque está muito enraizado em nossa cabeça essa mentalidade pejorativa em relação ao povo islâmico - Said dedicou boa parte de sua vida á desconstruir essa mentalidade, por isso sua militância se concentrou mais dentro dos países ocidentais.
Hoje, o que ficou conhecido como Primavera Árabe, pode remodelaro status da região, se para melhor ou para pior ninguém ainda consegue saber com certeza, uma vez que a região é cheia de peculiaridades. Tivemos o caso do Egito onde o poder foi transferido parcialmente aos rebeldes (é sempre bom lembrar que o governo ainda está nas mãos de homens que estiveram ligados á Mubarak) e o caso da Líbia onde Kaddaffi ainda luta para se sustentar e os rebeldes contam com o apoio da OTAN.

Liberté ou Freedom?

Os Estados Unidos é um dos países mais odiados do mundo. Os motivos são inúmeros para tanto ódio, mas basicamente se referem sobre sua participação em episódios obscuros da história de muitos outros países, seja apoiando ditaduras ou invadido-os. Mas esse anti-americanismo eclipsa a sua contribuição ao mundo. Para entendermos melhor isso, vamos estudar um pouco da história da América do Norte.
A colonização inglesa nos primeiros tempos das grandes navegações era algo mínimo. A Inglaterra se dedicava mais á financiar piratas para roubar as mercadorias e o ouro que Espanha e Portugal encontravam no Novo Mundo. Apesar disso, a Coroa inglesa financiou algumas expedições em busca de uma terra só pra si. Walter Raleigh, o lendário corsário á serviço da rainha Elizabeth, achou um território na costa norte-americana e fundou a colônia de Vírginia.

Walter Raleigh
A Inglaterra só foi se dedicar realmente á colonização alguns anos depois quando a Espanha estava mais fraca (a Invencível Armada de Felipe II tinha sido vencida por Elizabeth) e o Reino Unido sofria com o problema da superpolução (os cercamentos, uma espécie de reforma agrária ao contrário, expulsou a maioria dos camponeses para a cidade e deu suas terras á nobres e burgueses, o que inchou principalmente Londres). Como era de se costume nesse tempo, a Coroa concedia á exploração das colônias á terceiros: ás vezes podiam ser fidalgos, burgueses ou uma empresa. No caso da América do Norte, a administração das colônias do norte ficou á cargo da Companhia de Comércio de Londres e a as do sul para a Companhia de Comércio de Plymouth.
Existe uma diferença muito importante entre o Norte e o Sul do atual EUA: enquanto no Norte o clima é temperado, no Sul ele é mais tropical e a terra mais fértil. Por isso, a Inglaterra se dedicava mais á sua colônia do sul, afinal nela ela podia plantar e colher gêneros que não podiam plantar no Reino Unido - como a cana-de-açúcar, o tabaco e o algodão, por exemplo. Tamanho era o interesse da Coroa que logo a Companhia de Plymouth saiu do jogo e a Coroa assumiu ela própria a administração dessas colônias (tornaram-se assim colônias régias).
Assim, as colônias no Norte se tornaram colônias de exploração (o mesmo modelo de colônia que Portugal criou no Brasil) onde imperava a monocultura e o latifúndio e onde esses dois estão juntos outra figura logo tem de aparecer para sustentá-los: a escravidão. A Inglaterra se aproveitou da escravidão africana também, sendo que por um tempo os escravos passaram a ser comprados não mais dos comerciantes negreiros, mas dos traficantes que viviam nas Antilhas (colônias francesas).
E o Norte? Nas colônias no Norte se plantavam os mesmos produtos que se plantavam na Inglaterra, por isso não se deu muita atenção á elas. Essa indiferença fez com que os colonos que vinham para o Norte tivessem maior liberdade. Eles não eram tão explorados assim - não é a toa que aqui imperava o minifúndio e o trabalho assalariado, embora também tenha havido aqui escravidão - e nem tão fiscalizados. Tanto que muitos homens que fugiam da perseguição religiosa na Inglaterra (como os quakers, presbiterianos, batistas, católicos, etc.) aqui podiam exerceu seu culto religioso sem muita censura. Alguns deles fizeram um pacto enquanto vinham no navio para o novo continente de que nesse Novo Mundo eles não persegueriam ninguém nem seriam perseguidos. Esse pacto é conhecido como o Pacto do MayFlower, nome do navio em que vinham.
Mas como esses colonos sobreviviam sem o incentivo da Coroa ou da Companhia de Comércio? Eles vendiam entre si os produtos de suas pequenas propriedades, mas também tinham desenvolvido uma indústria naval forte (antes dedicada á pesca, mas depois ao comércio triangular feito com as Antilhas, onde conseguiam açúcar, escravos e rum) e algumas manufaturas (como tecelarias). Além disso, entre as colônias do norte e do sul existia um enorme território vazio, ao qual os colonos do norte decidiriam colonizar. Nessa região eles encontraram uma forma segura de ultrapassar a cadeia de montanhas do Apalaches (que limitou a colonização inglesa ao litoral e impedia os colonos de conhecerem o interior da América do Norte) e lá encontraram uma outra forma de ganhar a vida: a venda de peles, uma vez que ali existiam muitos búfalos e outros animais. Assim, as colônias do norte e agora do centro iniciam uma nova atividade econômica: os cortumes.
Se a Coroa não tinha interesse nas colônias do norte porque ainda as tinha? Simplesmente porque não queriam perder mais territórios para outras potências européias como a França ou a Espanha, suas maiorias inimigas.  A França tentou tomar as Treze Colônias no século XVIII, atacando-as do interior para o litoral (uma vez que a França tinha conseguido estabelecer um posto em Quebéc, perto do círculo polar ártico). Assim começou a Guerra Franco-Indígena de 1754 (que pode ser entendida como um capítulo da Guerra dos Sete Anos, uma disputa intercontinental entre França e Inglaterra).Nessas guerras lutaram tanto as colônias de povoamento como as de exploração e conseguiram expulsar os franceses do entorno de seu território. Essa vitória aliás até trouxe um certo sentimento de independência para os colonos, uma vez que eles passaram a confiar em si mesmos como defensores de sua própria terra e não mais a Coroa.
Além disso, com o fim da guerra em 1763, a Coroa tinha que administrar um território maior que o original e recuperar o dinheiro que perdeu com as batalhas. Assim, os impostos para todas as colônias aumentam gerando mais descontentamento. Os colonos começaram a se rebelar, principalmente no Norte e Centro onde sempre desfrutaram de uma certa liberdade. Na década de 1770, a situação se radicalizou: os ingleses aprovaram uma série de medidas que restringiam as liebrdades dos colonos, mandando até tropas para resguardar os portos e capitais, enquanto alguns colonos partiam para a revolta explícita como um grupo de comerciantes de Boston que em protesto contra a proibição do comércio mundial no porto de Boston e a tarifa em cima do chá jogaram vários pacotes do produto no mar no que ficou conhecido como a Festa do Chá.

A Declaração de Independência no II Congreso Intercontinental, Filadélfia.
Em setembro de 1774, representantes das Treze Colônias se encontraram na Filadéfia, no que ficou conhecido como I Congresso Intercontinental, para discutir a idéia de se separar da Inglaterra. A separação deixou de ser uma idéia para ser uma bandeira após um desentendimento entre tropas inglesas e comerciantes de Massachusetts. Assim, a Revolução Americana explode em 17 de abril de 1775 e só irá terminar em 4 de julho de 1783 quando o Reino Unido reconheceu sua derrota com o Tratado de Paris.
Como colonos puderam vencer sua metrópole? Apesar das colônias do Norte, como dissemos antes, possuirem um certo avanço e uma tradição militar (com a guerra contra os índios e franceses), numericamente eram inferiores ao Império Britânico. As primeiras batalhas foram decepcionantes, mas o jogo parece mudar quando a França entra na guerra, dessa vez do lado dos colonos, em 1778. Tanto que a assinatura do tratado que reconhece a independência da antiga colônia foi feita justamente em território francês.
Apesar de se unirem pela independência, as Treze Colônias, como dissemos acima, tinham interesses muitos distintos que só foram superados com a Guerra Civil Norte-Americana (1861-1865). A independência só foi consolidada após uma segunda guerra com a Inglaterra entre 1812 e 1815, sendo essa muito menor que a anterior e cujo principal motivo era o controle do comércio nas Antilhas.
A Constituição Norte-Americana instituiu uma República Federativa, uma solução, segundo muitos historiadores, para impedir conflitos entre as diversas regiões. O federalismo garantia a autonomia estadual e a república substituía o rei pelo presidente. Até então quando se falava em república tinha-se em mente uma pequena comunidade, como imaginava Jean Jacques Rosseau. A mesma constituição garantia uma série de direitos considerados inalienáveis e que se centravam no conceito de igualdade e liberdade. A liberdade de expressão era uma delas.
O pensador francês Alexis de Toucqueville visitou o país recém-liberto e escreveu suas impressões alguns anos mais tarde, revelando o que uma nova forma de democracia (a democracia dos gregos era bem restritiva: não era permitida á mulheres, estrangeiros, artesãos, escravos e pobres). No papel, ela garantia direitos á todos os homens e mulheres dos Estados Unidos da América, sendo que na prática a democracia circulava entre grupos de homens poderosos no Sul e Centro e pequenos proprietários no Norte.
Os Estados Unidos estavam inaugurando assim a democracia liberal. O ideal de liberdade que tanto agitou a Revolução Americana também influenciou as demais colônias da América: Simón Bolívar, o general revolucionário venezuelano clamava liberdade para a América do Sul e utilizava o episódio bem-sucedido dos EUA como exemplo de que isso não era impossível (embora, Bolívar não desejasse implantar o mesmo tipo de regime norte-americano). Basta lembrarmos que alguns dos inconfidentes mineiros tentou se corresponder com Thomas Jefferson pedindo apoio do governo norte-americano.
E não só o Novo Mundo se apaixonou pela mensagem da Revolução Americana: a França de Luís XVII foi sacudida pelo desejo de liberdade que resultou na Revolução Francesa em 1789. Alguns iluministas franceses se inspiraram no novo regime que surgia nos EUA. O lema dos revolucionários era: libertè, igualitè e fraternitè (complementando assim a proposta dos norte-americanos). Embora muitos se assustassem com as possibilidades abertas com ele: o próprio Toucqueville tinha medo de um governo regido pelas massas, pois via no povo um grupo fácil de se manipular e quase irracional.


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Esse post terá uma continuação em breve.

domingo, 12 de junho de 2011

Manaus: tentativa de retrato em 1947

Samuel Benchimol
Samuel Benchimol, grande pensador e empreendedor amazonense, escreveu sua tese de mestrado em Sociologia na Universidade de Miami (EUA) em 1947. Nesse estudo, chamado Manaus: O Crescimento de Uma Cidade no Vale Amazônico, o autor tenta produzir um retrato da capital do Amazonas e propor algumas diretrizes para seu futuro.
Antes de falar da Manaus de seu tempo, Benchimol nos lembra como a cidade surgiu: fundada na década de 1660, mas com o nome de Vila da Barra de São José do Rio Preto, nasceu sob o signo do Forte militar e da Igreja Matriz, numa área quadrangular. O pequeno quadrado inicial com o passar dos anos foi se expandindo, mas condicionado pelos igarapés e rios. Com o boom da borracha, Manaus deixa de ser uma cidade provincial, quase uma aldeia, para se tornar uma cidade cosmopolita, erguida segundo os padrões da Belle Epóque européia.

Vista aérea de Manaus na década de 1940.
Manaus chega á decada de 1940 com três bairros além do centro: São Raimundo, Cachoeirinha, Educandos e Adrianópolis. Mas desde que ainda era uma pequena vila colonial há o desejo de se morar no centro. No começo, o centro da cidade era onde se localizava o poder (seja por conta das instituições como por conta das residências dos membros dessas instituições). Com a borracha, o centro passa a ser também o espaço de comércio e lazer. O centro é o cartão de visitas de Manaus, por isso ele é sempre mais assistido pelo poder público. Morar no centro significa ter boas condições de vida e possuir um bom status.
Benchimol começa uma tipologia do status em Manaus, relembrando os tempos da colônia: possuir status na época da Vila da Barra era ser branco e católico. O autor acredita que esse status começa a mudar com a Cabanagem: a revolta dos caboclos, negros e índios ajudou um pouco a ascensão social do caboclo. Mas com certeza o maior ataque ao status colonial veio com a borracha: a economia gomífera atraiu muitos aventureiros que em questão de meses tornaram-se milionários. Apesar da dominação, alguns coronéis conseguiram se tornar "coronéis de barranco". Esses "novos ricos", conhecidos também como "arrivistas", não foram recebidos sem resistência - Benchimol lembra do glebarismo, movimento regionalista amazonense que desdenhava pessoas vindas de fora do estado principalmente as que ocupassem cargos públicos.
Mas os "arrivistas" instituiem uma nova série de indicadoresde status: a educação de seus filhos fora do país, por exemplo. Ou mesmo a educação na Universidade do Amazonas, criada ainda na época da borracha.Viajar para o exterior também ajuda.

Cinema Avenida, 1942. Fonte: Roberto Mendonça Furtado.
Agora, Benchimol falará do status como ordenador do espaço urbano: o centro, como sabemos é o local de todo comércio, lazer e assistência pública, um bairro para a tradicional elite amazonense. Educandos, por sua vez, é um bairro para onde veio muitos imigrantes, principalmente do Maranhão (o que sucitou vários conflitos entre os moradores mais antigos e os novos), e que, segundo o autor, se tornará um distrito industrial, uma vez que lá foi erguida a refinaria de Isaac Sabbá, o aeroporto da Ponta Pelada para escoar os barris de petróleos e as toras vindas das madereiras instaladas em seu entorno. Em São Raimundo, entretanto, há uma unidade cultural (há um senso de comunidade realmente forte), mas ainda é um bairro muito pobre, com poucas fontes de trabalho. Cachoeirinha é um dos bairros mais antigos da cidade e um dos mais populares. Na época ele tinha adquirido a imagem de um "bairro dormitório", uma vez que a maioria de seus moradores trabalhavam no centro a semana inteira. Adrianópolis, por seu turno, é um bairro muito recente: começou como um conjunto de chácaras de moradores do centro e pouco a pouco está se tornando em um bairro para a classe média que não conseguia moradia no centro. Benchimol ainda mensiona os balneários dessa mesma classe média feitos nos arrabaldes da cidade (onde hoje seria o Parque Dez de Novembro de Flores) para onde elas vinham aos finais de semana se esquecer um pouco da correria da cidade nos banhos de igarapés.

De uma maneira geral, Manaus é uma cidade que ainda está em crescimento. Claro que num crescimento menor se tivermos a Manaus do boom da borracha como comparação. Estão surgindo agora muitas fábricas, principalmente no bairro de Educandos, como madereiras, fábricas de cerveja, ferrarias, etc. Uma nova figura que promete redimensionar a cidade, como fizeram os coronéis de barranco, é a do jovem industrial. Esse personagem está por trás de iniciativas industriais não só em Manaus, mas também pelo interior, construindo usinas para beneficiar a castanha-do-Pará ou o pau-rosa, por exemplo. Talvez o maior exemplo desse jovem empreendedor naquele momento seja Isaac Sabbá, futuro amigo de Benchimol.

Atlético Rio Negro e um ônibus modelo Zeppelin em frente á ele, 1950. Fonte: IBGE.
Assim, o amazonólogo critica aquela visão cristalizada da "Manaus estagnada". Ele a critica de uma outra maneira também: demonstrando como a cidade vinha experimentando uma vida social até que agitada. Existiam algumas instituições de ensino boas na cidade (a maioria localizada, como era de se esperar, no centro). Existiam também instituições de lazer, como os clubes Ideal, Nacional, Rio Negro, Olímpico (sendo, respectivamente, reduto da elite mais conservadora, da parte mais liberal e das classes médias). E haviam as festas populares, a maioria de cárater religioso - como as festas de São Pedro, Nossa Senhora da Conceição, etc. Mas as festas profanas também tinham seu lugar, principalmente o Carnaval e o Boi Bumbá.

Feira da Manaus Moderna em ocasião de enchente em 2010. Fonte: Marinho Ramos.
A última seção de seu estudo chama-se "Fluxo de vida" e se dedica justamente a compreender o que comanda a vida do manauara. Aqui o autor começa uma análise antropológica mas que não se baseia na ciência, mas sim na memória. O autor justifica essa escolha, pois acredita que para entender realmente o amazonense não se pode confiar só na ciência, mas na convivência. "Realmente para conhecê-los, é preciso ter uma íntima associação com a sua cultura, morar na sua casa, dormir em uma rede, dançar nas suas festas, ver o seu trabalho, respirar o mesmo ar, comer da sua cozinha, e até amar as suas garotas"
A primeira parada nessa viagem é a alimentação. O grosso da alimentação do manauara é com certeza os peixes que habitam o enorme rio, sendo que até aqui encontramos a divisão de classes: o jaraqui costuma ser identificado como o peixe dos pobres, enquanto a pescada ou o tambaqui é encarado como um alimento de luxo. O preço do peixe varia com de acordo com o fluxo do rio durante o ano. A cidade se alimenta do que vem do rio e em alguma épocas ela não precisa ir ao mercado público e ás feiras para entrar em contato com o que vem do rio; ás vezes o rio vem até o manauara. O autor menciona as costumeiras enchentes e inicia assim a citação da série de problemas que a cidade possui: as enchentes, as doenças, a falta de iluminação pública e as importações. Manaus precisa importar alimentos e bens o que encarece tais produtos e assim afastam as classes mais pobres de seu acesso. Esses são problema estruturais. No tempo da borracha isso também existia, mas a riqueza do látex o fazia menos sentido. A cidade era muito precária.
Geralmente, depois do diagnóstico vem a receita do remédio e para Benchimol a indústria era esse remédio. Não só ela, claro. Manaus precisava adotar uma economia racional e planificada, diferente do extrativismo da borracha, e a indústria é o melhor exemplo desse tipo de atividade. Benchimol não está falando de indústrias de base (metalurgia, etc.), mas de fábricas menores. A cidade precisa começar com um passo de cada vez. Ele não está prevendo a instalação da Zona Franca, está apenas conclamando o poder público local que aposte nessa solução. Dado interessante é que o próprio Benchimol apoiaria por um tempo o modelo da Zona Franca, por não poluir os rios e derrubar a floresta (modelo que hoje sabemos que produz esses problemas sim).

Concluindo, esse texto, apesar de ser produzido para uma faculdade estrangeira, tem uma mensagem enfática aos amazonenses. Mensagem que Benchimol defenderia ao longo de toda sua vida. Ainda que nesse texto ele fale mais como economista ou sociólogo que historiador, seu estudo pode ser uma boa fonte para se entender a Manaus pós-borracha. Como falamos antes, ele critica um pouco a visão da "Manaus estagnada" e nos fornece um painel da história da cidade que destaque o papel das classes sociais na construção do espaço urbano, diferente do que diziam seus predecessores.

sábado, 11 de junho de 2011

Revolução?

Há alguns dias surgiu um debate em sala de aula sobre um termo muito utilizado em História: revolução.
Estávamos falando dos movimentos tenentistas e da chegada de Getúlio Vargas ao poder. A tentativa de golpe pelos tenentes em São Paulo e em Manaus, em 1924, pode ser entendida como uma revolução ou como uma rebelião? E o movimento de 1930?
O que entendemos por revolução? Revolução é todo movimento que impõe uma nova ordem social. Revolta ou rebelião é algo menos total e globalizante, geralmente um movimento que visa destruir um ponto específico da ordem social com o qual não concorda. Reforma, por sua vez, pode se entendida como uma tentativa de aperfeiçoar regimes ou sistemas, promover uma renovação. É o velho "renovar para não mudar".
O tenentismo, portanto, não pode ser encarado como um movimento revolucionário, pois suas ações não conseguiram romper com o sistema político contra o qual lutavam: a República Velha. Mesmo onde conseguiram chegar ao poder, como foi o caso de Manaus, não criaram um novo tipo de regime: seu objetivo não era governar, mas continuar a marcha até a capital federal. Mas mesmo assim fizeram medidas inovadoras para a época e para a região, como a transparência pública através da imprensa e a redistribuição de renda (ainda que não fosse para toda população) através do Tributo da Plebe.
E na proposta: eles eram revolucionários? A proposta dos tenentistas era acabar com a política oligárquica que vigorava na época e instituir uma política saneadora, moral e patriótica, tendo os militares á frente. Assim, ela pode ser entendida como uma ruptura, uma posição mais radical, visto que outro grande opositor da política do café-com-leite, o bloco de oligarquias menores que não participavam tanto da política nacional (Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul - que ficou conhecido como Reação Republicana) não queriam destruir a república das oligarquias, mas apenas entrar no jogo também.
Os tenentes acreditavam que a República tinha se desviado de seu objetivo quando Floriano entregou o poder á um civil, um representante dos fazendeiros paulistas: Prudente de Moraes. Desde então o governo tem sido usado á favor das oligarquias e o Exército se tornou uma espécie de "jagunço" deles. A solução passava por um governo militar, centralizador e moralizante.
Por que não conseguiram? Simples. Os tenentes não tinham apoio do alto escalão do Exército, que se encontravam acomodados, nem da Reação Republicana (que incitou o conflito entre civis e militares principalmente através do episódio das Cartas Falsas, onde fabricaram cartas atribuídas ao presidente Artur Bernardes no qual se insultava os militares), que decidiu acabar com a sua campanha, com medo de retaliação do governo federal. Assim, o movimento tenentista não conseguiu ir além de uma revolta. Se ele tivesse contado com apoio teria feito então uma revolução? Quem sabe! Mas a história não é feita de "e se"s, especular é algo sempre perigoso á um historiador.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Oprimido e Opressor

Oprimido e opressor, dominado e dominador. São definições que já foram tão usadas que parecem ter se tornado rótulos muito convenientes. Não só na Política como na História. A culpa é de quem? De Marx? Ao contrário do que muitos pensam, Marx não foi um dos primeiros pensadores á falar de dominação. Antes dele houve pensadores, inclusive conservadores, que falam da dominação, muitos, aliás, defendendo a opressão. Quase contemporâneo de Marx, Max Weber desenvolveu quase uma tipologia das dominações (desde a dominação seguida de violência até a manipulação pelo carisma).
No entanto, não foram esses autores que divulgaram ao extremo essa "dobradinha". Suas produções estiveram voltadas para o meio acadêmico e mesmo aqueles que tinham um projeto político (como Marx) tiveram suas idéias simplificadas ao máximo pelos seus seguidores. Marx, por exemplo, dizia que não existe dominação absoluta, enquanto muitos dos que diziam ser seus seguidores a concebia como estrutura onipotente.
A dominação é um dos assuntos principais das Ciências Humanas, sendo apenas ponto divergente entre os vários pensadores a qual classe devem defender. Oliveira Vianna, pensador autoritário brasileiro, por exemplo, se simpatiza com as elites e o Estado, defendendo uma política opressiva que ensine o povo brasileiro a ser civilizado. Ortega y Gasset, filósofo espanhol, acreditava por sua vez que a modernidade tinha dado muito poder ás massas e que caberia ás elites o dever de discipliná-las para não cairmos na anarquia. A opressão no pensamento desses autores é vista como positiva, já que aqui se salienta o papel disciplinador do poder.
Michel Foucault construiu sua filosofia em cima da denúnica dos mecanismos de poder, dentro e fora da política, simpatizando-se com todos os alvos do "projeto disciplinador": as mulheres, os loucos, os homossexuais, os bandidos, etc. Walter Benjamin declara que todo historiador deve simpatizar com os marginais, pois eles são apagados da história pelos vencedores. É uma forma de dominação simbólica: a história desses marginais não é uma história sobre eles, mas sobre aqueles que os dominam. Pierre Bourdieu, sociólogo argelino, lembra que a dominação pode assumir diversas formas e considera interessante as formas como as pessoas a enganam.
Acho interessante a contribuição do educador pernambucano Paulo Freire: a maioria das teorias e ideologias que querem acabar com a dominação não desejam realmente acabar com ela, mas apenas substituir uma dominação por outra. O desejo do oprimido é se tornar opressor, porque para ele essa é a única maneira dele se afirmar como sujeito de sua própria vida. O modelo que ele tem de ser humano digno é seu opressor. Assim, devemos romper com essa visão. O oprimido tem que ter sua humanidade valorizada e podemos fazer isso tentando desenvolver a sua autonomia e independência, tanto material como intelectual. Portanto, a função da educação aqui é essencial.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Um conto e uma teoria historiográfica

Arthur Engrácio da Silva
Arthur Engrácio da Silva é um contista amazonense que participou do movimento conhecido como Clube da Madrugada que tinha como objetivo criar obras que fossem além do marasmo cultural porque Manaus passava após a crise da borracha. Engrácio é tido como o inaugurador do regionalismo moderno (aos moldes de Graciliano Ramos ou Rachel de Queiroz) no Amazonas com seu livro Histórias de Submundo (1960) com doze contos que versam sobre a fome, a miséria e toda forma de injustiça em geral.
Um desses doze contos, A Revolta, foi escolhido pelo Prof. Arcângelo Ferreira para ser objeto de seu estudo. Nesse conto, segundo o pesquisador, encontraremos pistas não só sobre o seu autor e do tempo em que foi feito, como também de uma concepção historiográfica que vinha ganhando peso na época.

Seringueiros
O conto se ambienta no interior da selva, num seringal na época do boom da borracha. Os seringueiros estão felizes ao redor da fogueira comemorando a vingança contra o coronel Euzébio que realizaram em breve. Os líderes da revolta são Manduca e Chico Pantoja. O bando vai indo em direção ao barracão central, ganhando mais adeptos, até que quando chega ao barracão ateiam fogo á casa do seu cruel patrão.
Arcângelo percebe na narrativa de Engrácio um sinal de compaixão com o caboclo interiorano, ele finalmente deixa de ser uma coisa, brutalizado e silenciado, para ser agente de seu destino - o que se concretiza na queima do barracão. No entanto, o mesmo autor trata os revoltosos como bárbaros e selvagens á compará-los com caitetus assanhados ou horda de selvagens. Como se o que tivesse motivado a revolta não fosse á sua consciência sobre o processo de dominação do coronel de barranco, mas viesse de um recanto da mente ligado á irracionalidade, á violência. É justamente aqui que Engrácio repete uma idéia presente no pensamento social de intelectuais marxistas brasileiros (sendo ele mesmo um grande simpatizante do marxismo) da época: uma concepção que enxergava nas revoltas populares uma falta de unidade, por conta da sua heterogeneidade cultural (graças á miscigenação, em boa parte), e por uma falta de racionalidade, por se amparar na reação violenta e selvagem do nativo. Essa concepção está ligada ao que Eric Hobsbawm chamou de marxismo vulgar, uma interpretação das idéias de Marx marcada pelo estruturalismo e pelo esquematismo. Um dos principais exemplos da adaptação do marxismo vulgar em terras tupiniquins pode ser encontrando na questão do feudalismo: por muito tempo achava-se que todos os países precisavam passar pelos mesmos estágios que passaram os europeus para chegarmos á sociedade industrial e assim estarmos apto para a revolução socialista, sendo assim alguns historiadores marxistas da época acreditavam que o Brasil tinha passado pelo feudalismo no tempo da colônia e que estaria entrando no mercantilismo á pouco tempo (opinião defendida por Nelson Werneck Sodré e Nestor Duarte e criticada por Jacob Gorender).

O pesquisador identifica um ponto importante do conto: a presença do fogo. Na festa, onde se preparam para a revolta, os seringueiros estão ao redor da fogueira. A revolta se consuma com o fogo destruindo o barracão do seringalista. Imagem parecida com o final do romance de Ferreira Castro, A Selva: Juca Tristão é morto por um incêndio provocado pelo ex-escravo Tiago. O fogo é o símbolo da mudança. Não é a toa que Heráclito acredita que o princípio de todas as coisas seja o fogo, uma vez que o filósofo grego pensa que todas as coisas do mundo não param de mudar.
Além disso, Engrácio está falando de um tempo de transição: o estadonovismo de Álvaro Maia está sendo substituído pelo trabalhismo de Plínio Coelho e Gilberto Mestrinho. A mudança não significa que a situação do povo está melhorando: Manaus ainda é extremamente precária, isso sem contar o interior. O foco da atenção dos novos governantes foi o povo da capítal, á procura de voto, e seu objetivo era reeguer a economia extrativista e o status da Manaus da Belle Epoque. Era o tempo no Brasil do desenvolvimentismo de Juscelino Kubistchek e a Amazônia não parecia totalmente integrada nesse plano de 50 anos em 5. O fogo aí pode representar a chegada dos novos tempos: tanto no seringal quanto na cidade de Manaus.
Engrácio rompe com visões tradicionais sobre a época da borracha, mas comete alguns deslizes ao avaliar a essência de uma revolta popular, deslizes esses praticados por boa parte da nossa intelectualidadena época. O escritor Zemaria Pinto considera o rancor como a essência da obra de Engrácio: rancor provocado pela situação humilhante ao que o caboclo, o interiorano, é submetido e que irrompe no crime, na violência. O autor, portanto, possui sua especificidade, mas mesmo assim em seus escritos denota muito do seu tempo e da sua região. O diálogo, portanto, entre história e literatura é extremamente proveitoso e interessante, como o professor Arcângelo pode nos demonstrar em sua análise.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Para além do inferno verde

Euclides da Cunha é um nome central não só quando se fala em Canudos, mas na Amazônia também. Nomeado como parte de uma comissão para reconhecer as fronteiras entre Peru e Brasil na região do Alto Purus em 1904, Euclides escreveu dois livros sobre essa experiência : Á Margem da História e Peru versus Bolívia (que mais tarde foi reunido no livro Contrastes e Confrontos).

Euclides da Cunha
Apesar de ficar um ano e meio na região, a estada do jornalista no Norte lhe permitiu investigar não só a realidade como a história local - Euclides entrou em contato até com os relatos dos cronistas. Essa investigação nasceu da sua inquietação para entender o homem amazônico. Euclides, como sabemos, tornou-se conhecido por desenvolver uma teoria sobre os dois Brasis: o Brasil oficial e o Brasil real. O Brasil real seria aquele de Canudos, aquele onde o Estado não chega e onde o homem se faz por si mesmo. O sertanejo se moldou de acordo com o ambiente e o caboclo amazônico também.
No Nordeste, o ambiente era agreste e rígido o que fez o homem ser rude e agressivo. Na Amazônia, a floresta impenetrável  se impõe, portanto o homem aqui é comandado pela natureza. O caboclo amazônico vive de acordo com o rio e com as estações do ano. Ele não possui ambições materiais tampouco intelectuais, apenas com o que consome, o que, aliás, é sempre o mínimo possível. A imagem formada por Euclides se assemelha e muito á do caipira de Monteiro Lobato.
A visão euclidiana tornou-se predominante na "amazonologia", como os intelectuais amazônicos chamavam o exercício de compreender o Extremo Norte. Ou seja, durante muito tempo buscou-se entender a Amazônia como uma batalha entre a natureza e o homem, sendo que a primeira saiu vencedora. O homem aqui estava á margem da história não só no sentido de não participar do curso dos acontecimentos nos grandes centros urbanos, mas também por não possuir uma história realmente, aqui tudo era a natureza e na natureza as coisas são sempre as mesmas.

Djalma Batista. Fonte: Roberto Mendonça Furtado.
Djalma Batista, um grande intelectual acreano radicado amazonense, nunca se acostumou com essa visão. Talvez porque ela condene a Amazônia ao subdesenvolvimento eterno, a não ser que se destrua a floresta toda. Em seu primeiro livro, Letras da Amazônia (1935), já demonstra essa sua divergência de Euclides, apesar de reconhecer seus reais méritos, ao exaltar a avaliação de Araújo Lima em seu livro Amazônia. a Terra e o Homem (1932). Araújo Lima, médico de formação assim como Djalma, fez uma análise antropogeográfica e contestava a tese de que o ambiente determina o homem. Acreditava antes que o homem podia ludibriar o meio e o fez na Amazônia. Aqui o homem teria construído, aos poucos, uma civilização na luta contra a selva. A maior prova seria o bravo seringueiro que consegue viver na floresta, sendo seu único mal a exploração do seringalista ambicioso. Araújo Lima era contra a idéia de inferno verde, inaugurada por Euclides mas divulgada pelo escritor Alberto Rangel; para ele, a Amazônia era apenas "uma terra fraudada e saqueada". A seleção aqui não era natural, mas social.

Djalma baterá de frente contra a concepção evolutiva e determinista de Euclides em um artigo publicado nos Cadernos da Amazônia pelo INPA em 1965: Da Habitalidade da Amazônia. Nele, o médico e sociólogo acreano demonstra por meio da demografia e da história que a Amazônia não é impenetrável e que o homem não é comandado pela selva. Ao contrário, ele anda dominando muito ela e de forma desordenada (extrativismo puro). Aqui Djalma já expôe seu conceito de "desenvolvimento auto-sustentado" que consiste numa primeira fase de maior compreensão do mundo amazônico, através de pesquisas científicas e de consultas á cultura cabocla e indígena, e numa segunda de uma industrialização que respeite a floresta e saiba explorá-la sem depredá-la. Tese essa que será melhor explicada em seu livro mais conhecido: Complexo da Amazônia (1970).
Araújo Lima é o primeiro a combater a visão euclidiana dentro da amazonologia, sendo Djalma Batista o continuador de sua luta. Ambos tentam tirar a Amazônia do fatalismo provocado pelos determinismo (sejam étnicos ou geográficos) trazidos pela concepção de Euclides, muito embora ele também tenha trazido ás reflexões amazônicas um primeiro sopro de síntese, cientificidade e realismo (principalmente na descrição da vida cruel dos caucheiros e seringueiros).

Convicção

Convicção
Hemérito Cabrinha (1892-1959)

Tenho a certeza de já ter vivido

Através de outros mundos, de outras eras;

Na rude embriogenia das moneras,

Microcósmicamente impercebido.



Grão de pó entre abismos e crateras,

Nos turvos elementos confundido.

Hei por milhões de séculos sofrido

Entre minérios, vegetais e feras.



Rolei no caos da natureza bruta,

Conseguindo, através de intensa luta,

Chegar à borda dêste humano abismo.



Partícula do Todo simplesmente,
Mas já sentindo no evolver da mente

A razão dêste eterno transformismo.

domingo, 5 de junho de 2011

A Máquina do Mundo

A Máquina do Mundo
Carlos Drummond de Andrade

E como eu palmilhasse vagamente
Foto: Man Ray.
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco o simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

sábado, 4 de junho de 2011

O claro enigma de Clarice

Clarice por Gabriela Brioschi
Há poucos minutos atrás assisti na televisão uma espécie de mesa-redonda que aconteceu na Flip do ano passado sobre Clarice Lispector. Participavam dela o jornalista e pesquisador José Castello (especialista em Clarice, uma vez que já a entrevistou em várias ocasiões), o também jornalista Claudiney Fonseca e o jovem escritor Benjamin Moser que lançou ano passado o livro Why this World que tenta apresentar Clarice para os leitores não-brasileiros. Why this World foi traduzido para o português, ganhando inclusive alguns trechos a mais. O nome do livro, aqui, é Clarice: Uma Biografia.
Primeiro, quem é Clarice Lispector? Clarice nasceu na Ucrânia numa aldeia muito pobre em 1920 e originalmente se chamava Haia. Dois anos depois a família consegue vir para o Brasil, chegando primeiro em Alagoa e depois indo para Pernambuco. A mãe de Clarice veio a falecer em 1930 e isto marcou toda a família. Anos depois, o pai conseguira transferir toda a família para o Rio de Janeiro e lá Clarice começa a cursar Direito, enquanto trabalha como professora e free-lancer de alguns jornais para pagar a faculdade. Em 1943 casa-se com um colega de faculdade, Maury Gurgel Valente, que se tornaria diplomata. Com a carreira do marido, Clarice teve de acompanhá-lo em viagem por muitos estados (inclusive ao Pará) e até fora do Brasil. Deu á luz aos seus filhos Paulo e Pedro na Europa. Em 1953 vem a se separar do marido e volta á morar no Brasil. Em 1966, ao dormir com um cigarro aceso, Clarice provoca um incêndio, o qual quase leva á sua morte. Esse acidente será o início da depressão da escritora, que passa a conviver com as dores do passado e do presente (as queimaduras). Dessa época até 1977, ano de seu falecimento, ela sobrevive basicamente de sua escrita, diferente dos anos anteriores, colaborando para jornais, suplementos, traduzindo livros e publicando os seus.
Em segundo lugar, como era a obra de Clarice? Muitos a enquadram na geração de escritores de 1945, onde o nacionalismo e a fúria iconoclasta dos primeiros modernistas tinha sido consolidada. A literatura se ocupa de temas maism íntimos e psicológicos. E a obra de Clarice é fortemente existencialista. Começa a escrever na década de 1940, sua estréia vem com Perto do Coração Selvagem. Se aprimora na arte do conto, embora seu livro mais conhecido seja um romance: A Hora da Estrela (1977). Outro romance conhecido também é A Paixão Segundo G.H. (1964). Clarice dizia que seu processo criativo era baseado na intuição, por isso sua narrativa parecia tão fragmentária. Fragmentária, mas pontual, sagaz. Tanto que o escritor Otto Lara Resende advertiu José Castello : "Clarice não é literatura, é bruxaria!"

Mas voltemos á entrevista: Benjamin Moser estava esclarecendo como entrou em contato com Clarice. Depois de uma tentativa fracassada de ser fluente em chinês, Moser escolheu o idioma português para estudar e entre os escritores brasileiros encontrou justamente Clarice com seu A Hora da Estrela, a história de Macabéia - uma imigrante alagoana em São Paulo que é marginalizada no trabalho e no amor por sua condição de mulher e de nordestina. Castello, na mesa-redonda, lembra que geralmente a obra de Clarice parece ser um pouco misteriosa, por isso leva um certo tempo para tomarmos aquele choque, entender realmente sua intenção. Moser acredita que esse choque foi instantâneo nele, por conta de seu conhecimento inicial sobre o português (as diferentes regras gramaticais seriam o maior impedimenteo, segundo ele, para entendermos os contos em forma de aforismos da escritora).
No evento também me chamou a atenção uma observação de Moser referendada por Castello de que Clarice é como se fosse uma ilha dentro da literatura brasileira. Seus admiradores, chamados por Moser de "claricianos", são uma espécie de sociedade secreta, uma vez que Clarice sempre foi tida como enigmática. Moser ajudou a desvendar esse enigma com uma pesquisa muito aprofundada sobre a autora. Primeiro, entrando em contato com biográfos anteriores, depois conversando com parentes e amigos dela e em seguida visitando os lugares em que morou.
O que a biografia de Moser traz de novo? Além dessa pesquisa intercontinental, o jovem escritor norte-americano levantou duas abordagens novas sobre a vida da escritora: primeiro, a sua relação com a mãe e, em segundo, sua relação com o tempo em que viveu, principalmente contra a ditadura militar. Já era sabido do fato de Clarice se responsabilizar pela morte da mãe, mas o que não se sabia era que o que podia ser um simples sentimento de culpa era algo muito mais místico. A mãe de Clarice fora estuprada na Ucrânia durante os turbulentos anos da Guerra Civil Russa e contraiu sifílis. Nas aldeias geralmente se pensava que as doenças venéreas poderiam ser curadas com o nascimento de um bebê. Clarice nasceu e esperava-se que sua mãe se curasse com seu nascimento, mas não foi o que aconteceu. Com o falecimento da mãe, Clarice teria entrado em contato com seus diários e descoberto isso. Esse sentimento de culpa seria carregado por toda sua vida. Por isso, segundo Moser, Clarice se considerava não só uma "escritora falhada", mas uma pessoa que falhou em diversos outros aspectos.
Agora sobre a parte que nos toca: o contexto de Clarice. Moser lembra muito bem que Clarice vem para o Brasil num contexto de mudança com a Revolução de 1930 chegando. Sua carreira como escritora começa no Estado Novo. Clarice estava assistindo todas as transformações que vinham acontecendo com receio: enquanto na Europa se combatia o nazismo, no Brasil, Vargas e seus asseclas sinalizavam ora para o fascismo ora para os EUA. No período que vai de 1940 á 1950, Clarice sai do Brasil, segue o marido em suas missões diplomáticas. Quando retorna encontra um país dividido entre comunistas e direitistas. Apesar de existirem outros grupos, esses eram o que se sobressaíam na opinião pública. Em comum eles tinham o ideal de que para alcançarem seu objetivo tinham que tomar o poder, de qualquer forma. Essa polarização, provocada pela Guerra Fria, resultou no golpe de 1964. Interessante que Clarice tinha uma posição diferente, moderada, que não encontrava nem no comunismo (traumatizada pelas consequencias da Revolução Bolchevique em sua família) nem nas propostas da direita (por conta de seu conteúdo conservadoríssimo) como sua bandeira. Clarice protestou bastante contra o regime, junto com os seus grandes amigos Fernando Sabino, Marcos Scliar, Paulo Mendes Campos e Lúcio Cardoso.
José Castello
A contribuição de Moser é nos dar novos fatores para entender o existencialismo de Clarice, que chega a ser pessimista em algumas ocasiões, mas cheio de amor por outro lado. Antes, a obra de Clarice era entendida pela sua condição de imigrante, mulher e judia, agora ela também é entendida como filha, mãe e mulher de seu tempo.

Benjamin Moser segurando o livro de Hermano Vianna, O Mistério do Samba.
Alguns comentários sobre a mesa-redonda: ela foi extremamente reveladora e agradável. Todo mundo já ouviu falar de Clarice, mas são poucos os que a leram. Eu mesmo li muito pouco dela. Mas essa mesa-redonda e o livro de Moser são uma ótima introdução á sua obra. O personagem principal da fala deles era Clarice, mas o encontro foi conduzido como uma espécie de entrevista á Moser. Mas uma entrevista em forma de conversa, tal a descontração de todos ali. Castello, um especialista em Literatura brasileira, parecia apenas um colega do jovem pesquisador. Claudiney, embora não o conheça tanto quanto Castello, teve pequenas participações, mas interessantes. Moser, apesar de um pouco de dificuldade com o idioma, foi muito claro e simpático e creio que conseguiu fazer muitos presentes ali se interessarem por seu livro. Mais interessante ainda ver como pessoas tão diferentes, seja pela profissão, pela geração ou pela distância, conseguem se aproximarem, se tornarem tão íntimos, por causa da literatura. Talvez não seja literatura mesmo e sim bruxaria...