sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Salve Mestre Arcângelo!

Quando somos levados a falar das pessoas que mais admiramos corremos dois riscos: ou falamos de mais,  beirando a bajulação, ou falamos de menos, deixando muito a desejar. Porém, quando não falamos delas corremos um risco maior ainda: dar a impressão de que não a admiramos.
Eu não gostaria de correr esse último risco, por isso hoje vou falar sobre uma pessoa que admiro muito: Prof. Arcângelo. Quando cheguei na Uninorte me pintaram uma imagem dele como se fosse um carrasco. Com o tempo descobri o exagero - seguindo essa lógica todo mundo que for exigente é um carrasco, uma besteira.
Seja nas aulas ou nas reuniões do projeto de extensão, o professor me surpreendia sempre pelo conhecimento do assunto (de História da Amazônia até o repertório do Nunes Filho) e pelo bom humor. Outra coisa que aprendi a admirar nele é a sua posição ética.
Portanto mesmo que não tivesse o título de mestre, para mim, o Prof. Arcângelo já seria um. É um exemplo em muitos sentidos e uma grande pessoa. Espero, assim como meus amigos, que possamos conversar muito ainda sobre Jackson do Pandeiro, Raymond Aron e cia.

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A cada período, uma palavra ou duas usada pelo professor nas aulas caia no gosto da turma, tornando-se quase a marca do mestre. Abaixo listo algumas:

"É preciso elencar o conhecimento e amalgamar os saberes".
"Isso é produto do etnocentrismo" ou então "da resignificação".

E existem aquelas frases que o professor solta no meio da aula para ver se o povo está mesmo acordado, como essas:

"Quero que vocês façam um trabalho com o seguinte título: 'a importância do cipó na vida cognitiva do macaco'".
"Até pra cuspir na escultura é preciso ter estrutura".
"Muitos elementos são usados para estudar a história: dialética, conjecturas, elixir paregórico, etc...".

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Carcará

A festa tava pra começar. Os homens tudo em frente da barraca. As mulheres iam chegando, carregando as panelas. E aquele cheiro de mugunzá tomando conta do lugar.
Bate um vento. As bandeirinhas mexem tanto, parecem que algum bicho invisível tá pra arrancar elas dali.
Chico Preto se treme todo. Os homens só fazem olhar. Carcará chegou.
Era a imagem da própria morte: capa preta, o chapéu cobrindo os olhos. Só deixava de fora metade do rosto seco. No pescoço, um colar com pena de gavião. O coldre com couro de cascavel.
Deu três passos e se escorou na parede.
Os caboclos resolveram dar uma volta, só pra se preparar para a dança.

Dona Mirtes, depois de terminar a buxada de bode, deu o toque para o Menino. Ele abriu a festa com os acordes da sanfona. Cada qual ia passando pela mesa no canto do salão, beliscando um quindim, pegando um pouco da buxada ou da moqueca com pequi.
Cachaça por conta de Seu Américo. As meninas-moça no outro canto esperam o seu par. Gerusa, carinha de anjo, esperava o seu príncipe encantado. Calhou do dragão aparecer: Carcará lhe tirou pra dançar.
Espanto nos dois lados do salão.
A sanfona nem se importou, continuou a tocar - Menino já estava quase em transe.


A menina tremia-se, ele, no entanto, não tentou lhe beijar a força. Na verdade, lhe tocava com tanta delicadeza. Estava confusa. Do seu par só conhecia a fama (a má fama...) e o bigode. De onde ele veio? Como são seus olhos?

A festa prometia varar a noite, graças á cachaça de Seu Américo e a sanfona de Menino (ele não parava, era uma máquina!). Chico Preto estava caindo de bêbado, para desgosto de Dona Mirtes. Enquanto todo mundo se divertia naquele forrozão animado, lá fora alguns casais se acariciavam.
Num canto quase deserto, do outro lado da casa de Zé das Mulas, a menina-moça e o matador conversavam baixinho. Prosa estranha, sem palavras, só carícias. Ela já não estava certo de quem era aquele homem, mas ainda assim queria estar com ele.
Em nenhum momento lhe desrespeitou. Seus gestos eram de fidalguia. Seu sorriso não tinha nada de macabro.
Então, um beijo aconteceu.
Logo, veio outro. E mais outro, esse no pescoço. E foi subindo. Parou no pé do ouvido. Carcará se acabrunhou, por alguma coisa.
-O que é? Não gosta de mim?
Negou, mas não disse do que se tratava. Resolveu botar pra fora todas as perguntas que estava na cabeça a noite toda. Ele desconversava com uns pigarros, mas continuava alisando o seu cabelo.
-Sei que amanhã o senhor nem vai falar comigo, eu sei, só queria pedir de sua senhoria uma coisa...
-Diga.
-Me mostre seus olhos.
O sorriso sumiu.
Silencio. Ela á espera da resposta, ele á espera da desistência.
-As pessoa acham que o carcará mata pelas garras, mas num é não. A arma do carcará e a visão. Do que adianta ter a melhor carabina do arraial se você não sabe onde atirar? É o olho dele que sentencia os bicho á morte...
Gerusa não entendia, a prosa tinha tomado um rumo estranho, mas queria realizar o seu desejo. Restava pouco para o baile acabar e cada um voltar pra seu pedaço de solidão. Ela precisa ver os olhos dele, agora mais que nunca. Tirou-lhe o chapéu, foi mais rápida.
Duas bolas em fogo apareceram. No fundo delas, viu toda a desgraça que podia imaginar. Sentiu facada no coração, uma facada invisível. Tombou no chão. Ele ajoelhou ao seu lado, tentando reviver a tadinha. Mas nada. Chorava, era inútil.

No outro dia, a vila amanheceu com um corpo pra ser velado e um bandido cego ás lágrimas na cadeia pra ser linchado.

domingo, 26 de agosto de 2012

Crônicas das águas


Em homenagem ao grande poeta das águas, Alcides Werk (1934-2000).

ÁGUA CORROMPIDA
As pequenas ilhas são  sofás, caixotes.
Os peixes agora são garrafas peti,
os verdadeiros, de carne e osso, viraram fantasmas.
Quem sabe aquela bolha ali seja mais um agonizando.
As casas com as canelas finas mergulhadas no igarapé
e os urubus na outra margem despovoada
apenas observam essa triste metamorfose
da água cristalina em alguma forma de pixe.

CALÇADA
A mangueira rega a calçada
e as plantas sedentas ao redor
observam a vida que escorre.


DA POESIA
Água - simples, cristalina e vivificante.
A poesia almeja ser como a água.
O poeta é como um alquimista,
mas sua meta não é fazer do chumbo ouro, mas água.
-Já saciou sua sede de poesia hoje?


TORNEIRA
A válvula abre
e ela jorra.
Mãos sujas,
pratos manchados
e copos usados
agradecem a pequena cachoeira encanada.

TIETÊ
Água maltratada pode ser vingativa.
Enjaulada pelo concreto,
espera as chuvas para sua vendeta.


ENCONTRO DAS ÁGUAS
Duas cores se abraçam
no meio da serpente líquida.
É o espetáculo que se repete á milhões de anos
- A Natureza sempre pede bis.

POROROCA
A onda vem engolindo as margens só para depois devolvê-las.
Vem rápida, arrasta troncos e desavisados.
E se dilui no rio-mar,
afinal esse é o destino das ondas solitárias.


HORA DO ALMOÇO
Pernas e braços batendo,
pranchas e bóias se mexendo.
Há sempre algum tubarão faminto
que aprecie esse caos.


DESENCONTRO DAS ÁGUAS
Manilhas vomitam no rio
podridão e desrespeito.
Se peixes pudessem chorar
já teriam salgado essas águas á muito tempo.


PARAÍBA DO SUL
O barro divide espaço com o lixo.
O rio assiste á estranhos monumentos tentando domá-lo.
Corre, enquanto pode, para seu encontro com o oceano.

A MAGIA DAS ÁGUAS BARRENTAS
Na água turva, ocorre a transformação:
Jacaré vira tronco
Peixe vira folha-seca
Tartaruga vira pedra.
E alguns seres desaparecem,
como aquela cobra que estava olhando para a folha-seca.



sábado, 25 de agosto de 2012

Outros Agostos [série]


25 de agosto de 1961. Jânio Quadros, após sete meses de governo, renuncia ao cargo de Presidente da República. As razões desse evento até hoje são nebulosas.

A própria ascensão de Jânio Quadros, de tão repentina, é quase incompreensível para muitos. Seu governo foi polêmico, perdendo só para o governo de Jango Goulart, após sua renúncia.

Jânio nasceu no Mato Grosso do Sul, mas passou boa parte da infância na capital paulista. Lá inicou sua carreira como professor de Português e como político. Na década de 40 se tornara deputado estadual e depois prefeito de São Paulo.

Seus discursos atraíam muita gente. Para o povo, Jânio falava difícil, mas algo na sua fala sensibilizava as pessoas: a promessa de atacar a corrupção, preservar os bons costumes e a Nação.

Jânio tentava se aproximar do povo por meio de alguns truques: fazia questão de não tirar a caspa que caía sobre seus ombros, descia dos palanques para falar com o povo, andava sempre com um sanduíche de presunto no bolso, etc. Isso tudo contribuía para criar uma imagem de "alguém como nós" e ao mesmo tempo de um excêntrico.

A União Democrática Nacional (UDN) não tinha um líder carismático em seus quadros. Carlos Lacerda tinha uma oratória forte, mas não conseguia se livrar da pecha de "inimigo do pai dos pobres" e, por tabela, dos pobres.

Portanto, quando Jânio se filiou ao partido era a chance da UDN finalmente ganhar uma eleição. Na época, a eleição para presidente e vice-presidente era separada, desvinculada. Jânio passou a ser conhecido em boa parte do Brasil por seus discursos e anedotas a seu respeito, enquanto seu vice, Milton Campos, só era conhecido em Minas. O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) apostava no Marechal Lott como presidente e em João Goulart como vice. Lott não era tão popular, apesar de ser reconhecido como homem íntegro, enquanto Jango era popularíssimo. O resultado: Jânio foi eleito presidente e Jango vice.

A campanha de Jânio foi construída em cima do slogan: "varre, varre vassourinha/ varre, varre a bandalheira/ que o povo já tá cansado/ de sofrer dessa maneira". Seu governo, contudo, não foi marcado por uma caça aos "marajás", porque eles já estavam muito bem enraizados no poder. Procurou-se então construir um grupo de político realmente eficientes. Jânio pegou emprestado do primeiro-ministro inglês Winston Churchill o hábito de escrever pequenos e rápidos memorandos para seus funcionários - os bilhetinhos poupavam da lentidão da burocracia.

Aliás, Jânio possuía alguns ídolos que contrariavam sua posição de conservador: Gamal Nasser, presidente do Egito, e Jawarhal Nehru, presidente da Índia. Nasser tinha nacionalizado o Canal de Suez, antes propriedade da Inglaterra que dominava todo o Egito. Nehru tinha continuado com a luta de Gandhi de livrar a Índia do poder da Inglaterra e foi um dos defensores da criação de uma liga de países que não concordavam com a Guerra Fria. Eram dois líderes importantes na descolonização da Ásia, fenômeno que estava longe de acabar na década de 60.

Jânio queria fazer algo parecido com o Brasil: descolonizá-lo economicamente. Convidou Santiago Dantas e Afonso Arinos, dois juristas consagrados, para ajudá-lo. Juntos formularam a Política Externa Independente (PEI) que basicamente defendia que o Brasil não deveria se orientar pelo que o EUA ou a URSS dizia.
Afonso Arinos foi seu executor. Promoveu viagens e acordos com os países africanos e asiáticos (o vice-presidente Jango foi até enviado para a China de Mao Tse Tung para uma missão diplomática).

Nesse ponto o governo de Jânio Quadros foi revolucionário, até então nada desse porte tinha sido feito com sucesso. No entanto, algumas medidas lembravam de sua posição um tanto conservadora: como a proibição do lança-perfume (que tinha lhe feito perder um olho quando criança) nos carnavais, das rinhas de galo e do biquini. Isso demonstra como Jânio era ambíguo: por um lado, moralista, por outro, revolucionário. 

A cúpula da UDN não gostava de sua outra face. Já suspeitavam de que Quadros faria algo que os desagradassem. As primeiras discussões entre Jânio e Lacerda começaram. Lacerda tinha sido eleito governador da Guanabara (até então, o Rio de Janeiro era dividido em Distrito Federal e Estado da Guanabara), mas continuava a transmitir seja pelas ondas de rádio ou pelos comícios seus virulentos ataques á seus opositores. A discussão entre os dois políticos, no entanto, ainda era algo particular. Afonso Arinos era o conciliador, fazendo de tudo para que ambos não rachassem o partido. Mas era inútil, já se percebia que existia uma ala da UDN encantada com o presidente (os janistas) e outra á favor de Lacerda.

A situação piorou quando á 21 de agosto de 1961, Jânio condecorou com a Medalha Cruzeiro do Sul, a mais alta honraria militar, o guerrilheiro e então ministro de Cuba, Che Guevara. Como um homem que se diz de direita pode condecorar um guerrilheiro comunista com uma ordem militar?
Era o que se perguntavam os demais membros da UDN. Lacerda, como provocação, convidou o líder anti-castrista, Manoel Verona, para receber a chave do Estado da Guanabara.

Na realidade, Jânio foi procurado pelo Núncio Apostólico do Brasil que pediu que ele intercedesse por quinze padres e bispos que seriam fuzilados em Cuba. Jânio pediu que Che não os matasse, apenas os exilasse. Atendendo ao pedido do presidente brasileiro, Che foi convidado, como prova da gratidão de Quadros, para ser condecorado. Mas não adiantava mais explicar. O ato em si foi visto como um heresia pelas Forças Armadas e pelos setores mais conservadores que até então apoiavam o presidente. Lacerda já o chamava de golpista.

Quatro dias depois, Jânio entregava ao Congresso Nacional sua carta de renúncia. Dizia que "forças terríveis" obrigaram ele a fazer isso. Alegava que tentou trabalhar pelo Brasil, mas a "reação" foi mais forte.
Cláudio Lembo, que trabalhou com Jânio quando este foi novamente prefeito de São Paulo na década de 80, lembra que em momentos de pressão sempre preparava uma carta de renúncia que depois de um tempo acabava engavetada.
Outros acreditam que a carta de renúncia foi um blefe: sabendo da sua popularidade e do medo da UDN que seu vice, tido como comunista, assumisse, Jânio esperaria que o povo e o Congresso Nacional pedissem para ele ficar.

Nada disso aconteceu. O Congresso aceitou sua renúncia e a UDN e alguns militares trataram de impedir a posse de Jango. Uma junta militar com o apoio do Congresso assumiu o poder. Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Jango, começou uma campanha pelo rádio e imprensa á favor da posse de Jango. Os demais partidos temiam que não houvessem mais eleições e apoiavam a posse de Jango. As duas partes chegaram a um acordo: o Ato Adicional N. 5. Basicamente quem governaria o Brasil seria um primeiro-ministro e não o presidente. O Ato Adicional N. 5 trouxe o parlamentarismo para o Brasil. Só em 1963, com um plebiscito, o parlamentarismo cairia e Jango passaria a governar o país de fato. A experiência foi curta. Em 31 de março de 1964, ele seria deposto por batalhões militares vindo de Minas Gerais.

No meio desses anos tumultuados, onde vivia-se á espera de um golpe (seja da direita como da esquerda), os setes meses de governo de Jânio Quadros foram uma experiência ambígua. E não poderiam acabar de outro jeito senão por meio de uma nebulosa carta de renúncia.

Á Diego Gatto


Filosofar é sacudir os eixos. Por isso o filósofo é tão odiado, por isso ele é taxado de chato e inconveniente. Ele desconstrói para refletir e isso ataca nosso rochedo de certezas. O filósofo não quer nos deixar flutuando no espaço sem nada para se segurar, não. Ele quer mesmo é saber onde estamos pisando, a que estamos nos agarrando.
Quando o filósofo está na área, o banal que se cuide!

Outros Agostos [série]


Dia 24 de Agosto de 1954. O presidente do Brasil, Getúlio Vargas, se suicida. Fato inédito na nossa história, um presidente se suicidar. Já tivemos atentados, mas suicídios não.
Por que Vargas atirou contra o próprio peito? A resposta pode estar bem no fim de sua carta-testamento: "saio da vida para entrar na História".
Realmente, depois do que fez poucos esqueceriam isso. Seus vários admiradores, sejam eles funcionários públicos que reconheciam sua astúcia ou trabalhadores que viam nele o "pai dos pobres", nunca se esqueceram daquele dia.
Quando souberam da notícia, desconfiaram: "Mataram o velho! Mataram ele!" Muitos gritaram. A fachada do jornal A Tribuna foi depredada; Carlos Lacerda não pode sair de casa com medo da turbe furiosa que o esperava do lado de fora com pedras e paus na mão.

Dois dias antes, Vargas estava, como se dizia nos jornais, "num mar de lama". A UDN (União Democrática Nacional) fazia ferrenha oposição ao seu governo, temendo que ele fizesse um golpe novamente como fizera em 1937 instaurando uma ditadura. O seu maior porta-voz era o jornalista Carlos Lacerda. Denúncias de corrupção eram publicadas no jornal A Tribuna todo dia. Lacerda discursava nos rádios atacando Vargas e sua corte de amigos. A situação piorou quando atiradores tentaram matar Lacerda. O jornalista não foi morto, mas seu amigo Rubem Vaz sim. Vaz era major da Aeronáutica e estava fazendo a segurança de Lacerda.

Logicamente, quem mais se beneficiaria com a morte do "Corvo" (apelido dado pelo jornalista Samuel Wainer á Lacerda) seria Getúlio. A investigação sobre o Atentado da Rua Toneleros (local onde Lacerda morava) foi feita em grande medida pela Aeronáutica no Base Áerea do Galeão. Os atiradores foram encontrados pela polícia e interrogados. Confessaram que o mandante do crime era Gregório Fortunato, segurança pessoal de Vargas e seu amigo íntimo. Era o bastante para se pedir a renúncia do presidente. Era o que exigia a UDN e as Forças Armadas.

O Exército já desconfiava das intenções do "velhinho" assim que concorreu á presidente em 1951. Na realidade, as Forças Armadas, que acabaram com sua ditadura em 1945, estavam divididas: uma parte estava convencida que a melhor maneira de salvar o país era pedindo ajuda ao capital externo, enquanto a outra era mais protecionista. Vargas voltou com um discurso nacionalista atraindo não só esse setor das Forças Armadas como também comunistas.

Falava-se em lutar contra os trustes, as grandes empresas que pretendiam explorar os recursos e a mão de obra do Brasil. Esse era um dos pontos fortes de seu discurso, junto com a defesa do trabalhador. Os primeiros de maio se tornaram épicos: os estádios de futebol ficavam lotados de trabalhadores que assistiam, primeiro, a desfiles e depois eram premiados com as palavras do presidente.
As denúncias abalaram sua imagem. Vargas era um homem muito maquiavélico no sentido real da palavra: se considerava acima do bem e do mal e que os fins justificam os meios. Fortemente influenciado pelo positivismo de sua terra natal, o Rio Grande do Sul, achava que sua missão era salvar o Brasil da situação que ele se encontrava antes, na República Velha: descentralizado, subdesenvolvido, etc. Já tinha ficado no poder por 15 anos antes e não achava que tinha conseguido finalizar sua missão. Na realidade, é bem possível que tivesse se encantado pelo poder também.

Precisava, portanto, sair dessa crise. Não conseguiria sem o apoio do povo e das Forças Armadas. Contudo, a opinião pública já desconfiava dele por conta do atentado e as Forças Armadas estavam divididas. Suicidar-se foi uma maneira de fugir da crise, mas também uma forma de reverter ela. Na carta-testamento dizia que "forças" impediam ele de governar e o Brasil de ser um país grande um dia. Era uma menção aos seus inimigos políticos. Queria dizer que eles não lhe deram outra saída. Com isso não foi só um homem que morreu, mas um Brasil melhor. A carta-testamento de Vargas é, portanto, também um discurso. Um de seus mais inflamados e mais eficientes. Basta nos lembrarmos do quebra-quebra que ocorreu no dia seguinte quando todos souberam da notícia.

Vargas saia, assim, vitorioso. Assim como todos que apoiava. Pesava sobre o quase desconhecido Juscelino Kubistchek a imagem de ter sido amigo do "pai dos pobres". Em Jango Goulart mais ainda: era amigo íntimo de Getúlio e tinha sido seu ministro do Trabalho. Aliás, por ter concedido um aumento de 100% nos salários quando era ministro provocou a ira dos opositores de Vargas que viram nisso demagogia pura. Goulart seria lembrado, no entanto, como mais próximo dos comunistas que de Vargas por conta de sua passagem conturbada pela presidência em 1963. Goulart acabou tendo seu mandato interrompido pelo golpe de 1964, quando um grupo de militares tomou o poder com o apoio da UDN.

Forças Armadas e UDN. Os mesmos personagens que pressionaram a deposição de Vargas se encontrariam novamente em 1964. Muitos acreditam que 1954 foi um ensaio do que seria em 1964. Vale a pena lembrar que nas eleições de 1954 Juscelino foi vitorioso, mas a UDN e alguns setores militares tinham medo de que um dos "herdeiros de Vargas" assume a presidência. Tentaram impedir sua posse por meio de um golpe que não foi realizado graças ás ações de um grupo de militares liderado pelo Marechal Henrique Lott que consideravam esse ato institucional e anti-nacionalista.

Vargas, mesmo morto, tinha dado muito o que falar. Vitórias eleitorais, golpes, contragolpes, etc. Aquele tiro que ceifou a vida de um homem determinou o rumo de uma década (ou décadas).

A garota dos olhos turquesa


Símbolos, letras, desenhos. Todas estas pequenas coisas tem um poder.
Num mundo como aquele, o poder era muito maior. Sim, estamos falando de um mundo mágico. Ali os sinais e as palavras abrem portais, transformam seres, etc.
Toda ação mágica depende de um rearranjo desses sinais. O segredo é organizar eles direito.
Como fazer isso? Bem, os magos dizem que tudo não passa de vocação. Na verdade, se trata de intuição e prática. Não sou um mago, mas conheço bem eles. Gostam de transformar tudo em mistério.
Não os odeio, não tenho ressentimentos por não terem me aceitado. Reconheço que tentei investir numa habilidade errada. Mas aquela garota de olhos turquesa... ela tem potencial. Só não acredita que tenha vocação. Sempre digo a ela, não se trata de vocação, mas de coração e garra. Não é auto-ajuda barata, é a realidade.
Como faço pra dominar as palavras?, ela me pergunta. Deixe elas te dominarem, respondo.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Ficções baratas

EMBALOS DE SÁBADO A NOITE EM CASA
Noite de sábado e Luana em casa. Nada na TV, quase o mesmo na geladeira. Queria muito sair, nem que fosse para ir no bingo da terceira idade. O problema é que preciso de dinheiro até pra ir pra lá.
Lembrando o passado não muito recente. Ah, os gloriosos dias de balada... Chegando uma hora da manhã com o tamanco na mão pra não acordar a mãe e os joelhos em frangalhos...
A nostalgia foi interrompida, o bebê acordou.

BUSINESS IS BUSINESS
Vendo histórias de vida. Pode ser á vista ou parcelado. O preço varia de acordo com o tamanho da história. Se tenho lucro? Meu amigo, onde você acha que os mentirosos e as pessoas com baixa auto-estima tiram suas lorotas?

EDILANES
Que amor de pessoas, Edilane! Que amor! Quando toma os remédios, claro.


O HOMEM QUE BEBIA SÓ
Há pessoas que são naturalmente divertidas, tanto que são capazes de rir de si próprios várias vezes. São aquele tipo expansivo, comunicativo e simpático, que mesmo sozinho não deixa a alegria cair. Aquele cara que você convida pra um churrasco ou ir num boteco com a moçada.
Não era o caso dele.

O CAPETA É CHIFRUDO
Odenir Candeias, diretor de presídio. Segurança máxima, delicadeza mínima. Já mandou abrir fogo com pavilhões em rebelião cheios sem piscar duas vezes. Ameaçado de morte a cada 2 minutos. Sempre escapou das balas, mas não dos chifres.

ROVERSON-SON-SON...
Roverson está pensativo. Desde que sofreu o acidente de moto ouve tudo e fala tudo que vem na cabeça. É um super-herói! Fazer o uniforme foi fácil, já a música-tema...

SÍTIO MARASMO
Um final de semana inteiro. A sinfonia dos mosquitos é tão relaxante...

TOTONHO CEGUETA
Eu sempre disse á ele que isso não daria certo. Tava na cara que ela só queria o dinheiro dele. Mas não adianta. O pior cego é aquele que não quer ouvir.

TIA CELINA
Era uma dona solteira,
dessas completamente caseira.
Matava a solidão
nas ondas da radiofusão.

PRIMEIRA CAPA
Um OVNI apareceu em Dois Córregos, um daqueles bem colorido. Só Maria Terçado viu. Foram os 15 minutos de fama dela. E deu sorte: voltou a ter eles de novo um ano depois quando apareceu um corpo no quintal de sua casa, daqueles bem esfaqueado.

GERVÁSIO MILAGREIRO
Conheci um senhor em Itacoatiara que curava todo tipo de doença com um galhinho de arruda e um facão. Primeiro ele benzia o sujeito com a arruda. Se ainda assim continuasse doente, benzia com o facão. Todo mundo parava na primeira etapa.

ENCONTRO
Dois velhos. Primeira vez que se vêem há vinte anos. Um traz uma flecha quebrada. Outro oferece um café. Antes se matariam sem cerimônia, seja com flecha ou carabina.

MANÉ BACURAU
Jagunço, quando tem o corpo fechado ou a graça de Deus e consegue envelhecer é assim: não faz nada, apenas espera para ver quem vai sacar primeiro - o tempo ou ele.

DELMO
O tímido é um baú lacrado por um cadeado desse tamanho chamado "insegurança". E o dele parece ser dos bons, porque tem resistido ao pé de cabra da psicóloga.

TOBY
Amava quando ela coçava a sua barriga, mas quando colocava aqueles suéters apertados só não pulava na jugular da sua dona porque a maldita roupa não deixava...

GOGÓ
Nunca fez nada de valente na vida, até defender a irmã do ex-namorado, sujeito meio parrudo. Depois disso contava pra todos: "E mandei ele sair correndo se não quisesse apanhar, porque a minha mão tava coçando..." A cada vez que a história era recontada, o rapaz aumentava de tamanho e ele em bravura.

A ALMA DO NEGÓCIO
-Dignidade? Compre um de nossos tênis e você a terá!
E os olhos do moleque brilhavam...

TRAIÇÃO
A avó a castigaria. A mãe a reprovaria. O namorado consentiria. E ela, continuaria.

RECEITA DE SURUBA
Umas garrafas de vodca, um carro, três garotas e uns rapazes afoitos. Misture bem e os hormônios fazem o resto.

DO YOU LIKE A WASH IN YOUR CAR?
Cidade de primeiro mundo é assim: franelinha tem curso superior e fala duas línguas.

ZÉ LESADO - A MISSÃO
A ideia: sobrevoar a Serra da Jaguatirica. O meio: balões de Hélio. O resultado: um fantasma muito mal humorado.

PRECOCE
Idade é uma questão de afinidade. Remy não queria ter 60 anos só na imaginação, por isso a artrite.

NO CULTO
Amém pelo carro
Amém pela casa
Amém pela promoção
E se sobrar tempo
Amém por mim.

PASSADO
Lediene cheia de curvas e com um sorriso mágico. Essa foto é cruel...

PRESENTE
De todos os filósofos hedonistas, Mário Veludo é o maior deles: "foda antes que você se foda". Pra finalizar a reflexão, um porre.

PASSAMENTO
Seu Palmerindo convalescia na Casa Grande porque não queria morrer em lugar estranho. Se comunicava com suas bengaladas no guarda-roupa. O máximo que fazia era ajoelhar na cama, para fazer a oração costumeira e ajeitar o pijama. Esperou e esperou e nada da morte. Um dia a coruja piou...

LAMÚRIA COM ACORDES
Yuri Gagarin viu a Terra e ela era azul. Para Leo Brenner, tudo é azul. Mesmo sem o óculos. E se Yuri Gagarin ouvisse suas músicas diria que a Terra perto delas é transparente.

MADE IN MELANCHOY
É fácil ser um infeliz. Mas na terra do sol e do carnaval isso é uma arte.

QUASE MANCHETE
O garoto tentava ajeitar o seu rap a caminho de casa com o pão francês do lanche. Um ônibus afobado passou e quase atropelou o refrão. Os pombos agradecem pelas asas.

CARLÃO MANTEIGA DERRETIDA
Ela é linda, mesmo com aqueles dentes acavalados. As pernas então... nem se fala! Mas o melhor de tudo são os mimos, os carinhos. Não troco ela, por nada. Aquele cafuné vale é ouro!

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Escrevendo para o mar



Penso que escrever crônicas seja um pouco como fazia o padre Anchieta todas manhãs na praia: escrevia na areia alguns poemas, poemas que logo seriam apagados pelas ondas do mar.
A crônica é efêmera, mais um objeto para nossa pilha de banalidades diárias. Não estou denegrindo a imagem desse gênero, apenas considero a banal, pois o fato de ser publicada todo dia acaba por retirar sua excepcionalidade.
O que tira a sua excepcionalidade não é o autor ou o veículo em que é publicada, mas o tempo. É verdade que alguns cronistas conseguem ser geniais na maioria dos casos, mas a genialidade não é algo que se repete todo dia. Escrever crônicas é como escrever para as ondas do mar.
Amanhã essa será a crônica de ontem. E assim caminha a Humanidade... Aí vem a pergunta: qual o sentido disso tudo? Além dos sentidos práticos (o cronista precisa sobreviver, os jornais ou revistas precisam de um espaço para algo além da pura informação, uma espaço de opinião), posso entrever algumas respostas. Entreter? Muitos se deliciam com os textos de certos cronistas simplesmente porque acham eles divertidos e sempre esperam com ansiedade o próximo sair do forno. Informar? Há o cronista que dá mais informações do que sua opinião propriamente dita.
Essas são apenas algumas das possíveis respostas. Por que são tantas? O próprio status da crônica permite que as possibilidades sejam várias. A crônica nasceu com o princípio de ser um relato, principalmente histórico, hoje, após as várias vanguardas literárias, ela se tornou um meio caminho entre o conto, a poesia e o relato.

No Brasil, a crônica, desde começos do século XX, é o grosso de nossa literatura. A crônica divulgou ao brasileiro médio o mundo das letras. E a crônica está em constante transformação. Ela é, como na música, essa metamorfose ambulante.
Hoje temos a internet e o blog se tornou a plataforma ideal para as crônicas. O blog democratiza a crônica. Assim, descobrimos muitos cronistas desconhecidos e que até desconhecem que o que estão escrevendo sejam crônicas. 
Com o blog, nasce a crônica digital: marcada pela seu pequeno tamanho (na maioria dos casos), os retalhos do maneirismo da linguagem da internet e aberta aos links (se tornando aqui uma espécie de hipertexto, um texto que possui vários caminhos possíveis).
As crônicas continuarão, seja na tela do computador, no jornal ou no que mais vier por aí. Continuarão porque precisamos de banalidades diárias. São o que de mais precioso existe em nosso cotidiano, pois elas nos dão certa segurança. Se muitas vezes a rotina nos sufoca, noutras ela pode ser um porto seguro para um mundo onde tudo é líquido, tudo está mudando a todo momento (parafraseando Bob Dylan). E a crônica está aí, no rol das banalidades diárias mais dinâmicas que existe.

(Recanto das Letras, 29/ 09/ 2011).

O convite


[Homenagem atrasada - segunda feira foi o Dia do Maçom]

..., rapaz, to lhe dizendo, isso de maçonaria é coisa do Diabo!
-Que nada, cara! Isso é tudo conversa do povo que não entende as coisas.
-Como não? Já me disseram que eles não seguram em crucifixo!
-É balela! Pois se até o bispo, D. Edivaldo é maçom, como ele não vai segurar em crucifixo?
-Ele é maçom?
-É.
-É mesmo?
-To lhe dizendo! Não tem nada a ver com o Tinhoso...
-Mas e os sacríficios?
-Que sacrifício?
-Não tem essa coisa de matar bode?
-Não, menino! Tem a história do galo, na iniciação, que simboliza o novo homem e tudo mais.
-Mas de galo pra bode é um pulo!
-Ah, vai te lascar!
-E como tu sabe isso tudo da maçonaria?
-Ué, eu pesquisei um bocado para saber como é a coisa toda.
-Olha, se eu fosse tu eu não aceitava esse convite pra ser maçom. Boa coisa não deve ser pra fazerem tudo escondido!
-Quer saber, eles fizeram o convite pra mim e quem tem de saber disso sou eu e não os outros!
-Tá bem. Também não falo mais nisso...



-Ei, já percebeu que D. Edivaldo tem um cheiro parecido com enxofre?
-Má Rapaz!...

(05/11/ 2011)

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Repensar o olhar



Minha última empreitada foi fazer um vídeo sobre o movimento negro no Amazonas ao lado dos meus bons amigos da faculdade. Uma das nossas dificuldades foi como apresentar o tema sem esquematismos demais. Bem, encontramos uma maneira (não adianta, não vou revelar).
Nós pretendemos continuar enveredando por essa seara, tanto do audiovisual como da história da cultura e do movimento negro, por isso devemos refletir um pouco mais sobre esse assunto. É na realidade um assunto que se desdobra em dois: a linguagem e a narrativa.
Linguagem é o conjunto de signos que você utiliza para se comunicar. Narrativa é uma construção lógica. No nosso caso precisamos conhecer a linguagem do cinema e aprender um pouco mais sobre apresentar fatos de maneira bem interligada. Um ajuda o outro.
Claro que assistir muitos filmes e documentários ajuda a ter uma familiaridade com a linguagem e as narrativas cinematográficas, no entanto é preciso mais que isso (agora percebemos isso), é preciso refletir sobre elas.
Nessas horas a gente sente a falta que faz um cineclube...
(Dezembro de 2011).

domingo, 19 de agosto de 2012

Verso... digo, Microconto do dia

NOITES DE JULIETA
Dolce Vita


Sua mais legítima felicidade não era segredo. Amava o cinema. Amava o marido. Não necessariamente nessa ordem. Muito menos em ordem.

[Para quem não sabe, essa é Giulietta Masina, esposa do cineasta Federico Fellini].

Ficou interessado? Tem muito mais aqui: Dolce Vita - Tela de Letras.

Louvação do mestre carpinteiro


Na roda, todos Josés, mas nenhum é igual. Zé da Catirina cria cabras e foi afligido por dois infortúnios: bicho de pé e casamento. Zé Quelé é sargento aposentado, não cansa de dizer, e vive no boteco. Refletindo sobre a vida, naturalmente. Zé Morcego é o dono da grande agremiação cultural da cidade, o boteco Praia da Lua. Até Zé Fortuna está aqui! Ele que vive sem dinheiro, mas ainda assim conta firula de que é parente de alemão e tem primo rico na capital. Até ele largou os seus afazeres na casa do cunhado para vir aqui hoje. Zezim Condeixas é o melhor sanfoneiro de N. Senhora das Neves. E também o maior paquerador. Só perde pra seu filho, Zé Vitor, galã de quermesse. O menino ainda não desenvolveu o charme do pai, ou seja, ainda não tem barriga. E Didico é famoso pelo baião de dois que faz. Chamado por muitos (incluindo aqui a mãe e a mulher dele) de "manjar dos deuses". Sim, ele também é Zé: José Frederico dos Santos de batismo, Didico de intimidade.
Até o José mais famoso - mais famoso que Zezim Condeixas! - está aqui: São José, pai de Jesus e padroeiro do trabalho. Trabalho que cada um desses Zés conhece muito bem. Hoje como manda a tradição, plantaram o milho e as sementes de gerimum pelo roçado. Agora chegou a hora de louvar o santo. Zabumba, triângulo e sanfona não podem faltar. E a cantoria vai até a noite. Ou até o baião de dois e a garrafa de pinga acabarem.
Os Zés louvam José e o santo louva os xarás profanos, desse e de outros sertões.

Proficonfessionais


O DENTISTA
No consultório só se ouvem duas coisas: o som do motorzinho e a voz do doutor. Poucos ficam tão felizes em fazer uma obturação quanto ele. Não é uma conversa, como ele gosta de dizer, tampouco é um monólogo. É uma terapia.

ATENDENTE DE TELEMARKETING
Que voz linda! Queria poder convidá-la para sair ao invés de pedir para experimentar nosso novo pacote de promoções...

GARI
Palito de picolé, absorvente, vômito. Vez ou outra a rua o presenteia com uma nota de 10 ou um celular novinho.

HISTORIADOR
Ele nunca está sozinho, por mais que se isole. Aliás, os mortos podem ser também uma boa companhia. Ontem, por exemplo, teve um papo cabeça com Napoleão Bonaparte, ainda com aquela dor de cotovelo por Waterloo.

sábado, 18 de agosto de 2012

Sobre cutucar feridas


Cada um tem uma imagem de como deve ser um historiador. Um homem preso no passado, deslocado no presente. Um velhinho cercado por uma pilha de papéis e livros em seu escritório. Ou um bicho grilo, alguém que viveu os momentos mais importantes da história de nosso país e os reconta.
Não estou aqui para dizer quais dessas imagens são válidas ou não, estou aqui apenas para falar de uma dessas visões sobre essa profissão: o historiador como o sujeito inconveniente que conta o que ninguém quer lembrar.
É algo de que Walter Benjamin defendia e Carlos Drummond de Andrade definia em seus versos. Para nosso poeta, ele "veio para contar o que não faz jus a ser glorificado". Ele escalpela "os mortos, as condecorações, as liturgias, as espadas..." Para o filósofo alemão, o historiador tem um compromisso vital com os vencidos, com todos aqueles que são apagados pelo discurso oficial na História, a história dos vencedores.
Assim, o historiador é pintado como uma figura extremamente importante. Importante e maldita, porque afinal ele se filia á todos aqueles que estão fora dos livros didáticos, das belas e limpas calçadas que a história oficial construiu. Ele mora no subúrbio da história, mas passeia pelas avenidas e boulevards dos vencedores segurando um cartaz ou então pichando um muro. Ele incomoda tanto como os mendigos e beatos que declamam suas profecias, lembrando que o fim está próximo. Ele, no entanto, diz: o fim da mentira está próximo.
Por quê? Por quê ele se põe em posição tão mal vista? Porque, meus amigos, ele sabe que um povo não é nada sem sua memória. Pergunte aos amnésicos. Alguém que se esquece de um truque, será enganado de novo. E estamos sendo enganados há tempos.
Ora, hoje dizem: está tudo bem, a história acabou. Quando não: a coisa tá feia, mas pior não fica. Ou então: não adianta fazer nada, não vamos conseguir. O historiador sabe que isso é tudo falácia, porque ele sabe que já foi dito isso antes e no entanto as revoluções, as grandes descobertas e obras primas mesmo assim foram feitas.
Benjamin e Drummond sabiam disso.

CASO ASSANGE

Brasília (JB) - O australiano Julian Assange conseguiu asilo político do Equador, mas o governo do Reino Unido quer enviá-lo para a Suécia onde responde por crime sexual. Houve indicações de autoridades britânicas de que Assange seria retirado à força da representação diplomática equatoriana.




Muito bem, senhoras e senhores, vamos abrir o leilão de hoje com essa peça rara: Julian Assange, fundador do WikiLeaks. E Inglaterra começa com o primeiro lance da noite: extradição. Muito bem, muito bem, quem dá mais? Suécia cobre a oferta com prisão. Equador: Asilo! Quem dá mais, quem dá mais?...

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Há negociação sem diálogo?


Já fazem mais de três meses que as universidades federais estão em greve. Aliás, a atitude destes funcionários influenciou outras categorias a fazer o mesmo, caso, por exemplo dos caminhoneiros que tiveram suas reivindicações atendidas na mesma semana em que iniciaram a paralisação.
Por que a demora em se resolver esse impasse? Concordo com a análise de Hugo de Albuquerque de que a resposta está numa recusa e num egoísmo. Primeiro, a atitude do governo de Dilma de não se mostrar flexível á pressões e que tenta se justificar utilizando a desculpa da reserva econômica para uma crise mundial. Segundo, o corporativismo dos funcionários das universidades federais que apenas reivindicam uma melhora individual, de sua categoria, não estendendo seus pedidos á melhoria da educação como um todo. Reconheçamos que suas dificuldades são encontradas em quase todos os setores da educação pública, seja de ensino superior ou não, de universidades federais ou estaduais ou mesmo particulares. Então, se temos o mesmo problema, por que não nos reunirmos para chegarmos á uma solução?
E o povo parece ficar flutuando no meio desse embate, porque não entende a demorada recusa do governo e não se simpatiza com a pauta dos grevistas, já que o mundo acadêmico está mais distante de sua realidade.
Apoio a greve sim, mas por conta da proposta de melhoria qualitativa da educação que ela propõe. Mas não da forma limitada como muitos de seus líderes coloca a questão: uma melhoria qualitativa dentro e fora das universidades federais. Vamos estender essa preocupação com planos de carreira para os demais profissionais da educação. Já mencionei aqui em outra oportunidade a vitória dos professores mineiros ano passado justamente por contar com o apoio da população e propostas mais abrangentes.
Penso que mudar o status desse confronto, um verdadeiro diálogo de surdos, não passa por abandonar essa causa, mas por tentar minar os argumentos maniqueístas dos dois lados. Vamos lutar pela educação? Beleza, mas não nos apeguemos no puro ataque ao adversário. Cuidemos para que sejamos claros e conscientes do que propomos e de como atingiremos nosso propósito.

Recomendo a leitura do artigo muito bem escrito e pensado de Hugo de Albuquerque, com uma das análises mais lúcidas que já vi sobre esse movimento: Greve nas Federais: A (In)potência do não e o corporativismo.

O trabalhador das palavras


Quem vê pensa: escrever é muito fácil, pra quem domina essa arte. Na realidade, escrever é um ofício tortuoso. Não é alguém que domina essa arte que está falando, mas um simples observador.
O brasileiro é o povo da oralidade, por isso enxerga a escrita com um certo estranhamento. Como se fosse algo exótico e ao mesmo tempo louvável, sagrado. E os escritores seriam os sacerdotes dessa religião das palavras, dedicando sua vida integralmente á caneta e o papel.
Não é bem assim. Ninguém nasce escritor. Sim, existem pessoas que tem vocação, mas o segredo pra escrever bem não está em uma disposição genética ou espiritual  dos autores e sim na prática. Só se aprende a escrever, escrevendo.
Por isso Alejandro Jodorowsky, artista chileno multimídia, escreve tudo que lhe vêem á cabeça. Os surrealistas também faziam isso, chamavam-na de escrita automática. Não só escreviam o que lhe aconteciam, mas o que sonhavam. Jack Kerouac e Graham Greene, escritores tão diferentes entre si, também faziam coisas do tipo.
Sonhavam genialidades? Não, salvou uma ou outra loucura se mostrava grandiosa, mas o resto... Por que isso então? Trata-se de exercitar a escrita e a criatividade. Para se falar de algo é preciso antes saber do que se está falando. Um escritor trabalha muito antes de produzir um livro. O ritmo de transformação da imaginação em palavras pode diferir para muitos, mas há de se reconhecer que é um processo muito do trabalhoso.
Considero como gênio aquele que, esse sim, cria algo do nada. Aquela pessoa que não trabalha sua criatividade, pelo contrário, ela trabalha para ele, fornecendo insights e epifanias periodicamente. Sim, periodicamente. Até os gênios não são geniais 24 h por dia.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Sexo, mentira e monstros

Em todas culturas espalhadas pelo globo sempre há uma figura presente: o herói. Os séculos passam e continuamos seguindo esses estranhos seres. Aquiles, Sundiata, Jurupari, Superman... Os nomes mudam, mas seus valores continuam.
O que é um herói? Geralmente, uma pessoa que se destaca por se dedicar a uma causa - na maioria das vezes defender seu povo - com tamanho afinco e bravura que chega em muitos casos a se sacrificar por ela.
Não é a toa que muitos heróis possuam, pelo menos nas narrativas, uma origem divina. É preciso explicar de onde vem essa inspiração, essa força, e ela é encontrada no sobrenatural.
Esse papo todo sobre estes personagens não é gratuito. É apenas a introdução do tema em pauta: Beowulf. Não o poema-épico anglo-saxão, mas o filme de Robert Zemeckis que o adaptou. É preciso saber que Beowulf é uma peça literária tradicionalíssima da cultura inglesa - embora a ação se passe na atual Dinamarca e Suécia.

O protagonista é um dos mais bravos guerreiros do povo geata (ancestrais dos suecos) que toma conhecimento do sofrimento por que passa um reino longínquo, afligido por uma criatura chamada Grendel. Numa batalha incrível, Beowulf mata o monstro, mas precisa enfrentar depois a sua mãe, sedenta por vingança. Anos depois encontramos nosso herói já entronado rei e com uma certa idade. Um novo desafio se impõe: eliminar um dragão que surgiu em seu reino.
Essa é a história de Beowulf, mas no filme A Lenda de Beowulf (2007) ela sofre algumas alterações, como é comum acontecer a qualquer produção do tipo. No entanto, há um diferencial. São alterações extremamente bem pensadas. O roteiro foi escrito pelo mago das HQs, Neil Gaiman, e Roger Avary. Os dois momentos do poema (a luta com Grendel e a batalha com o dragão), que parecem ser desconexos, são unidos de uma forma muito inteligente.
Aqui a história adquire uma carga erótica muito maior do que a real - basta dizer que a vilã (Angelina Jolie) passa boa parte do filme de topless. A Sra. Pitt não precisou tirar o sutiã para fazer tais cenas, já que o filme foi todo feito com uma tecnologia nova: a captura de movimentos. A mesma utilizada por Zemeckis antes em O Expresso Polar e depois em Os Fantasmas de Scrooge. Isso explica porque o corpulento e bonachão Ray Winstone no filme apareça todo sarado, quase irreconhecível. Talvez toda esse burburinho sobre a tecnologia tenha deixado as partes eróticas escapar aos olhos da censura que classifica este como um filme livre para todas as idades.

O sexo é só um ingrediente na trama de Beowulf. Na realidade, ele é, ao meu ver, a ponta do iceberg. O que estamos discutindo aqui é o próprio conceito de heroicidade e humanidade. O protagonista revela ser narcisista (toda vez repete seu nome, chega a ser até enjoativo) e, como posso dizer, um "refém da beleza". Não fosse essas duas características, Beowulf seria invulnerável. Se aproximaria muito mais da imagem que temos do herói em nossas cabeças. No entanto, o próprio personagem pede para que não o encarem como um ser perfeito, mas como uma pessoa com falhas - um ser humano.
Diante de um monstro que lhe promete a tão sonhada imortalidade, através da divulgação de seus feitos por gerações, e, claro, uma boa noite de sexo, Beowulf se rende. Mas com o tempo, descobre que tudo não passa de um embuste. A imortalidade, por mais que os homens a persigam, não existe. O sexo o afastou de quem realmente amava, de sua rainha (Robin Wright Penn). Beowulf, como o cara da música Ouro de Tolos de Raulzito, "devia estar contente", mas não consegue porque sente um vazio em si provocado pela culpa e pelo sucesso repentino.

É significativo que tanto ele, como o rei anterior (Anthony Hophkins) e ao que parece o seu sucessor (o seu fiel escudeiro interpretado por Brendan Gleeson) tenham caído no mesmo erro. É quase como um ciclo, dando a entender que o homem pode se achar civilizado, racional e invencível, mas, no final das contas, ainda é movido por seus desejos e tentações tanto quanto gostaria que fosse.
A mentira surge aqui para tapar esse buraco deixado pelo vacilo. Um herói é também formado por mentiras, por abstrações. Assim como toda uma civilização também. A ideologia pode ser um cimento muito conveniente para que uma ordem social continue, assim como uma inverdade também pode ajudar a carreira de uma pessoa obstinada. Quase no fim de sua vida, Beowulf renuncia ás mentiras que ajudou a construir, mas seu ajudante se recusa a aceitar a decisão do amigo. Por quê? Talvez porque precisemos acreditar em algo. Precisemos de heróis ainda. O herói, como o mito, pode ser uma inverdade necessária para que continuemos caminhando.
Todos nós temos heróis. Alguns construídos pelo mundo que nos cerca, outros entronados por nós mesmos. São eles que nos alimentam, muitas vezes, com seu exemplo. Eles que nos inspiram. De todos, qual o herói mais próximo de nós? Uma dica: domingo passado foi o seu dia. Sim, os pais. É incrível como até nisso o filme se propõe a discutir. Qual a grande sacada? A inconsequência dos pais recai sobre os filhos - em certo momento, essa frase se torna uma maldição direcionada á Beowulf. A noite de amor com a beldade monstruosa em nove meses, penso eu (não sei como é a gestação dos monstros, então...), dá frutos que mais tarde se tornam dores de cabeça.

O roteiro demonstra isso de duas maneiras: primeiro com Grendel (Crispin Glover) e depois com o dragão. Grendel não é assustador, mas sim bizarro. Em muitas cenas lembra até um menino perturbado e nada mais. E creio que ele seja realmente. Afinal, é duro você ter uma super-audição, viver numa terra onde todo final de semana fazem barulhentos festins no salão de Hidromel e, além disso tudo, ser criado por uma mãe-monstra solteira e rancorosa. Grendel se vinga do pai ausente - aqui vai o spoiler: o rei vivido por Hophkins é o pai de Grendel - matando seus súditos, acabando com a festa. O rei não consegue eliminá-lo, por isso a tarefa caberá á alguém de fora.
O matador de monstros, por sua vez, também se vê as voltas com seu filho, anos depois - outro spoiler: nessa versão, o dragão seria filho de Beowulf. O rapaz também é extremamente inconformado com a vida do pai e não é surpresa que seu alvo seja as pessoas que ele mais goste: a rainha e sua jovem amante. No final, Beowulf descobre que seu filho é igual á ele. Não só fisicamente, mas na força, no narcisismo, enfim.
Então, quem é realmente o monstro? O filho confuso ou o pai negligente? Ou então a mãe manipuladora? Mamãe monstra pode demonstrar muito apego com seus filhos, mas não pensa duas vezes em dormir com o assassino de um deles para que ganhe outro primogênito. No caso, ambos foram culpados pela má criação de seu filho.

Isso, mais uma vez reforçando que essa é a minha interpretação, demonstra o quão complicada é a relação familiar. Ela também pode ser baseada em mentiras, erros e problemas sexuais. Nosso "heróis" pessoais também são seres humanos. Podem nos decepcionar ás vezes, mas de uma forma ou de outra (seja pelo amor ou pelo ódio) nos estimulam. 
Um último ponto que gostaria de abordar é a forma como o cristianismo é tratado no filme. O personagem de John Malkovich, um fanfarrão e fofoqueiro, a todo momento aconselha que se procure ajuda na religião que está chegando naquelas paragens: o cristianismo. Anos depois, ele se torna o sacerdote local. Ao contrário do que prega a religião, ele continua tratando seu escravo terrivelmente mau, o que nos leva novamente á tal história dos vícios, desejos e mentiras.
Há também, implícito, um discurso de que a nova religiosidade teria matado a imaginação, a fantasia. E nisso aqui eu vejo o dedo de Gaiman, um conhecedor da cultura européia pagã. É mais uma alfinetada que uma crítica ás religiões ocidentais, o que já é batido. Isso porque até a própria sociedade geata retratada no filme é criticada: ora, não estamos falando de heróis e reinos que se constroem em cima de vícios e desejos jogados para debaixo do tapete? O que parece é que para os roteiristas, toda religião, toda sociedade e toda família são erigidas em cima desse tripé: vícios, desejos e mentiras.
Recomendo o filme não só pela reflexão, mas também pela ação. Essa produção funciona tanto como uma história de ação como de drama. E quanto á fotografia e a trilha sonora, estão muito boas, cada uma complementando esse ótimo roteiro. Enfim, assistam.

domingo, 12 de agosto de 2012

Já comentou algo hoje?


Um blog se alimenta de comentários. Li isso em algum lugar. Na realidade é mais fácil um blog sobreviver com acessos - se você usa aquele recurso do Ad Sense e coisa e tal. Mas comentários?
O blog pode muito bem continuar por teimosia do seu proprietário. Mas a verdade é que alguns comentários ajudam a construir futuros post, por incitar novas questões ou aconselhar novos temas. Além disso há algo mais...
O que um blogueiro quer não é apenas que leiam suas postagens, mas que digam algo sobre elas. Que aconselhe, que critique, que elogie, etc. Numa plataforma como essa é preciso saber que não estamos escrevendo para nós mesmos.
Há artistas que se realizam mais com os aplausos que com a bilheteria do show. Guardada as devidas proporções, é o que acontece com os blogs. Muitos blogueiros vivem á espera desse diálogo com o leitor. Diálogo esse que é muito mais rápido e pontual que de um livro publicado.
Constatei que o acontece muito é isso: os blogs são muito acessados e pouco comentados. Talvez a falta de tempo expliquei um pouco disso. Mas como explicar as pessoas que passam mais de 2h nas redes sociais e que não tem coragem de gastar 2 min lendo um post ou escrevendo um comentário?
Em conversa com o Prof. Tarcísio Serpa Normando chegamos a conclusão de que as redes sociais funcionam porque há a liberdade total, enquanto no blog existem regras. O blog é a biblioteca, o Facebook é a mesa de bar. A grande sacada aqui é a interatividade. A interatividade e a conectividade: você pode dizer qualquer coisa, compartilhar qualquer coisa com o seu amigo, pois sabe que está conectado com ele.
Como o blogueiro pode competir com isso? Não pode. Não há como superar as redes sociais porque elas fazem muito bem o que se propõem a fazer, resta a nós fazermos o mesmo.
Um blog, pelo menos ao meu ver, é um espaço de informação e opinião - e porque não de entretenimento? Ora, são recursos que as redes sociais também oferecem, mas não de forma duradoura. Afinal, seu foco é a interação. O nosso é outro. Podemos muito bem agir de forma complementar: fornecendo conteúdo para se discutido ou acessado nas redes sociais.
Acho muito louvável a atitude de muitos grupos e pessoas que tem promovido essa divulgação da blogosfera, como é o caso, por exemplo da comunidade Blogs Brasil. É um meio de criarmos um público e, melhor ainda, um público participativo.

sábado, 11 de agosto de 2012

Tempo é relativo e desperdiçar é feio!


Já era meio-dia. Metade da garrafa estava vazia e no prato só tinha sobrado pequenos montes de arroz e farofa. O ventilador assoprava para fora do prato os grãos desgarrados. A senhora da mesa ao lado pagou o garoto e se levantou. Vai aproveitar e pedir a conta também. Mas pensa na cerveja. 
-Graaande seu Laurindo!
-Fala mestre!
Agora não tem mais como escapar: Beto e Cabelo chegaram. Já chegaram perguntando do jogo de ontem.
Esperam a interpretação mágica de seu guru.
-Rapaz, aquilo foi... uma merda.
Cabelo lamenta, mas não deixa a bola cair. Botafogo vai contratar sangue novo. E sangue bão!
O garoto está na frente da mesa esperando os dois penetras fazerem o pedido. Bife e tambaqui.
-E fala com Dona Zuleide que não tem melhor prato feito nessa redondeza...
Bem, de volta ao papo. E qual era mesmo o assunto? Botafogo. Vai contratar o Ganso.
-Ganso? Quem disse?
-Você disse!
-Não! Disse que iam contratar gente de fora do Rio...
-E de fora da granja, completa o velho.
Ninguém entendeu a piada, mas riram mesmo assim. Cabelo vai perguntando de Laurindo sobre cada rodada do Brasileirão e Beto... dobra o papelzinho do banco em uma tira fina. O velho vai respondendo, cada vez mais aumenta o tom da voz. A cerveja já está no finalzinho.
Dois rapazes ao lado cismaram com as tatuagens de Cabelo. Bando de playboy, pensava.
Os pratos chegam. Com aquela fumacinha quentinha saindo ainda. Dá até mais gosto de comer.
E o garoto também trouxe as cervejas. Aquelas do fundo da geladeira.
Beto puxou uma história de um primo seu que caiu num golpe aí. Prometeram 60% de lucro pra ele.
-Você me desculpe, mas o cara que entra num negócio só porque prometem 60% é burro!
-É, ele é doido...
-Não. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Quer saber se o cara é maluco? Manda ele comer merda ou rasgar dinheiro pra tu ver...
-Não, ele não é doido de tanto assim...
-Rapaz, te aquieta! Seu Laurindo sabe do que tá falando!
E Cabelo enche o copo do velho. Logo agora que ele tava se preparando para sair; já tinha terminado a garrafa e já estava quase se levantando. Bem, o jeito é continuar. Desperdiçar, nunca!
Agora, silêncio. Os caras comendo, o velho bebendo. Dona Zuleide aparece para dar uma olhada na rua e fica escorada na porta.
-Dooona Zuleide!
Beto faz reverências. Laurindo bate uma continência. A senhora, enxugando a mão no avental, vem cumprimentar o trio. Pergunta se já arrumaram emprego - a resposta é a de sempre - e se estão gostando da comida - já essa resposta é diferente. Laurindo diz que se eles conseguirem emprego vão estragar a tradição de família.
Beto limpava o bigode, como um gato. Mas coçava o suvaco como um chimpanzé. Bem, o copo já está vazio e o relógio só falta dar um tapa no velho para que levante da mesa. Eis que Cabelo ergue a garrafa e repete novamente seu ato solidário. Apesar das negativas de Laurindo.
-Não, não! Rapaz, eu tenho que ir embora...
-Que isso, Seu Laurindo! Agora já coloquei. O senhor vai fazer essa desfeita? Desperdiçar é pecado, em!
Como o velho é um boêmio muito do casto, volta á mesa. As horas se passam e os três amigos continuam reunidos. Não fosse o desperdício nunca colocariam o papo em dia.

São tantas emoções...


Semifinal de vôlei masculino (ontem): jogaço!
Final de vôlei feminino (hoje): jogão!
Final de futebol masculino (hoje): massacre.

As meninas do vôlei mostraram o que é levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. E a rapaziada do jogo de ontem, nem se fala. Se tivesse um marcapasso ele já teria quebrado. Agora, nossa seleção canarinho... tá cheia dos errinhos, mas fazer o que, errar é o Mano...

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Santos pecados!

Tenho assistido a série OS BÓRGIAS no canal a cabo TNT e aqui estão algumas observações minhas:

Bórgias: quem são? Para os mais desinformados esse é o nome de uma família italiana de origem espanhola que na Itália da virada do século XV mandou e desmandou no Vaticano na figura do Papa Alexandre IV ou Rodrigo Bórgia para os mais íntimos.
E a série? Bem, ela é uma produção canadense-húngara e irlandesa. A maioria dos seus atores, no entanto, são britânicos - a começar pelo mais que talentoso Jeremy Irons. Iniciou em 2011 e sua terceira temporada já foi confirmada.

Os Bórgias devem tudo aos Tudors. Claro, essa afirmação não tem nenhuma lógica histórica: são contextos diferentes, personagens diferentes. Mas é que me refiro ao mundo das séries. Neil Jordan, seu criador, também produziu a série histórica sobre a família real inglesa. Os Tudors (2007-2010) foi um sucesso. Jordan, ao que parece, gosta de famílias polêmicas.
Eu já tinha ouvido falar dos Bórgias, mas como filme. Aconteceu o seguinte: a ideia inicial era mesmo ser um filme, mas Jordan convenceu os produtores de que uma série seria mais adequada para se compreender melhor os personagens. Com a audiência de seu seriado anterior, ele ganhou um argumento á mais.
Interessante - a história se tornou uma série, mas não perdeu seu status de superprodução cinematográfica. A prova disso é a própria presença do arisco Jeremy Irons, que nunca foi muito afeito á TV.

Sabe por que Irons concordou em se aventurar na telinha dessa vez? Porque ele amou o personagem. Seu papel é o de ninguém menos que de Rodrigo Bórgia. Isso mesmo, o chefão. Rodrigo é um homem extremamente caprichoso e manipulador, mas que nem por isso é menos humano. Suas crises de consciência em relação ao casamento da filha e sua predileção pelo filho do meio provam isso. Enfim, só o sujeito sendo muito bom para retratá-lo sem transformá-lo num santinho ou num super-vilão e Jeremy Irons é esse cara. Apesar de não ser nada parecido com o Alexandre IV (como mostra a iconografia), Irons tá fazendo bonito.
A série basicamente gira em torno de Rodrigo Bórgia. Parece que ele e o seu rival, cardeal Della Rovere (Colm Feore), estão jogando xadrez eternamente e nesse tabuleiro até seus filhos (sim, ele tinha filhos) são peças. Cesar Bórgia (François Arnaud) é nomeado cardeal - detalhe: ele tem 18 anos, e no mínimo nem chegou a ser coroinha - , mas o que ama mesmo é a política e a guerra. Lucrécia Bórgia (Holliday Grainger) é uma mulher linda, mas ingênua. Quer dizer, ingênua até conhecer o fardo de um mau casamento e as tentações de um namoro proibido. Já Giovanni (David Oakes) é o mais mimado de todos. Foi escolhido para ser o braço armado do pai.

Rodrigo vai selando alianças, eliminando oponentes e ditando destinos. Esse mestre das marionetes é o personagem principal, mas Neil Jordan não queria que seus filhos e até sua amante, Giulia Farnese (Lotte Verbeek), fossem ofuscados. Mas é inevitável.
Uma coisa que demorei a perceber é a complexidade dos temas envolvidos: estamos falando de corrupção, de sexo, de crimes, mas principalmente de família. Por incrível que pareça, Rodrigo parece ser um bom pai. No entanto, sua sanha por mais poder transforma os filhos em joguetes e eles tentam lutar contra isso. César quer largar o sacerdócio e pouco a pouco se transforma no guerreiro e líder que almejava ser. Já Lucrécia espera ser feliz e não ter de se ver com mais casamentos encomendados. Giovanni também reluta em alguns momentos, mas acha a ideia de ser um duque bem atraente. Ou seja, antes de ser uma quadrilha instalada no Vaticano, os Bórgias são também uma família. Há filhos renegando os planos dos pais, há assuntos inacabados, segredos, etc.

Essa humanização é outro diferencial da série. Nos últimos séculos a fama dos Bórgias tem sido de devassos, assassinos e corruptos. A série não nega isso, mas procura mostrar um outro lado. Ainda que goste dessa humanização dos personagens, sinto que ainda falta entrarem no clima do Renascimento.
Na reconstituição dos cenários e trajes está de parabéns, mas ainda não consegui identificar um sentimento de euforia, de altos e baixos (segundo Jacob Burckhardt, historiador mais famoso desse período) que caracteriza o período. Enfim, talvez esteja criando uma perspectiva muito grande sobre essa história...

Por privilegiar o pai a série se concentra nos conchavos políticos e intrigas palacianas. No final das contas, estamos falando de um mafioso de batina. Acho que esse é um acerto e um erro dos roteiristas: de um lado, o maquiavelismo seduz o espectador para o jogo político, pelo outro, só isso torna a história um pouco maçante. Não é nem a escolha do tema, mas o modo como apresentam a corrupção. É meio lento, pouco cadenciado. O primeiro episódio gigantesco é assim: a proposta é fascinante, mas tratada com pouca dinâmica. Se fosse um filme, por conta do pouco tempo, seria mais movimentado? Fica a pergunta.

No mais é uma série de boa qualidade. Um bom roteiro, grandes atuações (Irons, Grainger e Arnaud nos fazem afeiçoar por seus personagens realmente), ótimos cenários e um tema atraente.

Resmungos: O centro

Odeio o centro da cidade. O diabo é que quase tudo tá no centro da cidade. E esse é outro motivo porque odeio urbanistas (o primeiro é que eles andam com uma mania de fazer obras futuristas, modernosas, que acabam se tornando uns puta elefantes brancos).
No centro, calçada é um luxo. Os camelôs pegam 98% delas e você se vira nos outros 2% para passar por elas. Quando tem calçada é inevitável, tem um bendito poste que toma metade dela. E quando não tem poste, tem gente. E não tem coisa mais irritante que gente - Pense bem em quem mais te dar dor de cabeça (se um cachorro ou o seu cunhado folgado) e veja se não concorda comigo!
Acontece que as pessoas no centro parecem que estão andando num shopping: olham para tudo quanto é lado menos pra sua frente. Sem contar aquelas que se desligam completamente do mundo. A dona que pára no meio da rua pra conversar com a atendente da loja na calçada, aos berros, como se só as duas estivessem ali. Ou então o cara que vê os acostamentos todos ocupados e mesmo assim decide estacionar, só que no meio da pista, faz um segundo acostamento. E aí a rua, que já é pequena, afunila mais ainda. E aí, como se não bastasse, a ruazinha engarrafa fácil e quando você vai ver está catastroficamente atrasado pro trabalho por culpa desse maldito preguiçoso do inferno!
Junte-se a esse quadro um calor desgraçado, uma barulheira astronômica e um monte de motoristas de ônibus loucos e você tem uma obra prima! 
Não, motoristas de ônibus... já falei de ônibus por aqui, mas os motoristas merecem um capítulo especial. Dirigir ônibus em Manaus não é fácil. O trânsito é coisa de doido, por isso eles se adaptam pra sobreviver. Já vi motoristas espumar - sair aquela baba de raiva da boca, sabe? - só porque um motoqueiro cogitou fechar ele. E tem aqueles que não tiraram a carteira, foi o brevê: voam mais que a TAM. Eu tenho umas dez milhas aéreas acumuladas nesses buzões. E o melhor é que o cara tá fazendo curva, acelerando e o ônibus só rangendo, trincando... Já to vendo a hora em que o ônibus vai chegar no terminal só com a frente e vão ter de catar o resto dele pelas paradas.
E quando dá 17h ou 18h? O inferno que não fica? Não só no centro, mas quase na cidade toda. É gente vindo e gente voltando, na mesma hora. Resultado: engarrafamento. Manaus tá querendo competir com São Paulo em engarrafamento de cem quilômetros rasos. Será que vamos pra olimpíadas desse jeito? Não, as olimpíadas que vão até a gente. Olimpíadas e copa. Imagine que beleza vai ser. Camelôs, gente empacando na rua, motorista voando, gente lesando no caminho, aquela orquestra de buzinas, um engarrafamento de primeiro mundo num puta calor e o alemão só tirando foto. Até o caos agora é atração turística, é o que faltava...

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

A carga do dia enverga os olhos


Queria continuar o papo, ver o resto do filme, jogar pela internet,
mas as horas se prolongam
e as cortinas oculares se fecham.
É o fim do show
ou o começo do espetáculo?

Se for pesadelo, tem como devolver meu dinheiro?

#Jogo do Bicho


Os olhos dengosos. Olhando para a porta. Á espera de seu dono. Mas nada dele chegar. Eis que ouve passos. É ele! Já se anima. Pula do sofá, vai para porta. Só ouve a última virada da chave. Seu amado aparece. Ela o recepciona calorosamente, mas ele...
-Deixa disso, Neide! Vai logo colocar meu jantar!
E ela foi, obedientemente. Toby, deitado na porta da cozinha, só assistia a toda a cena. Assisti e lamenta. Ele pode ser o melhor amigo do homem, mas capacho, nem pensar...

BELEZA TERRENA - Landis Vinicius Petersen


 Surge como uma materialização
A expressão de uma odisseia
Saída dos versos dos poetas
A rima da plateia
A exuberância personificada
Sinônimo do inefável
Dos Encantados uma lenda
Com um abraço confortável
A Feluriana de Kvothe
A alegria dos mortais
A conquista espiritual
Além dos desejos carnais!

É hoje!

Aêê garoto! Até que enfim fomos profissionalizados! Só não me agrada muito o nome da Vanessa Graziotin como relatora. Será uma hábil estratégia para conseguir os votos dos historiadores do Amazonas? Não sei. O que importa no momento é que a novela da regulamentação chegou ao fim. Agora o próximo passo é realmente consolidar essa profissão. Como? Perspectivas de trabalho, código de ética, canais de expressão, etc. O caminho não termina aqui.

Quem quiser ver o parecer completo do senado está bem aqui.

domingo, 5 de agosto de 2012

Parteiro de ideias: uma jornada II

PARTEIRO DE IDEIAS: UMA JORNADA
Por Rafael Janusky

DO HOMEM CACTO E DO HOMEM BLOCO DE CONCRETO
Eis que encontramos nosso protagonista de volta á sua humilde terra. E por quê? Oportunidades? Não havia lugar menos atraente para um doutor em História e especialista em Literatura Comparada que a pequena Santa Luzia, que nem faculdade tinha ainda. Ou melhor, tinha: os sebos e as mesas de bar eram a faculdade improvisada. Saudades? Sim, essa parece ser a explicação mais adequada.
Lourenzo Alvarez y Uria tinha acabado de beber a metrópole num só gole e como um xarope antigo, no começo foi amargo, mas depois sua cabeça melhorou. Ainda assim, faltava naquele ambiente cheio de possibilidades algo familiar. Sérgio Buarque de Holanda dizia que o brasileiro é o homem cordial, por excelência, porque é regido pelo coração, pelas emoções. E podemos perceber isso perfeitamente nas pequenas comunidades semeadas pelo interior. Nesses sertões, o homem pode ser duro, mas não é carente de afeições. "No interior, temos o homem-cacto. Áspero, porém ainda vivo. Se atingirmos seu âmago podemos nos alimentar com sua água. Mas nos grandes centros urbanos o homem se galvaniza. Se torna um bloco de concreto. Não estou com isso defendendo a destruição do modo de vida urbano - os revolucionários de plantão entenderão isso como um "queimem as cidades!" - mas que ela pode aprender muito com outros modos de vida (indígena, caipira, oriental, que seja)".
Alvarez y Uria não nega a sua veia sentimental. Á todos diz, não sou um monstro da razão. A saudade dos amigos, da mãe e da cidade demonstra muito bem isso.

DO ADMIRÁVEL MUNDO "NOVO"
Claro que ele não fez essa escolha simplesmente pautado pela emoção, mas também por outras expectativas. Manoel Gonçalves Urbano, sociólogo uspiano, tinha lhe falado do projeto da prefeitura de Santa Luzia de  expandir sua Faculdade de Serviço Social e se tornar um centro universitário. Na confecção da atual Universidade de Santa Luzia estavam presentes muitos homens interessados em erguer uma academia séria na cidade e outros preocupados com a falta de engenheiros e médicos nestas plagas. Uria se meteu nessa empreitada como curioso. Urbano lhe assegurou que uma unidade de Ciências Sociais seria criada.
Foi preciso cinco anos para que a USL fosse instituída. Nesse meio tempo, Urbano, Uria e o geógrafo Leonardo Alvim foram os embaixadores da instituição na capital paulista.
Faltando dois anos para o seu aparelhamento, Lourenzo volta á cidade que jurou nunca mais voltar vivo. E aqui retornamos a cena anterior: um pensador descendo do ônibus numa rodoviária cinza, enquanto a mãe distribui reclamações e bençãos. 
Das viagens relâmpago que fazia nos finais de semana para visitar a família percebeu o quanto foram enganadoras: a cidade era totalmente outra. Pólo industrial, dos dois lados da Dutra! Motéis e boates não deixavam a noite morrer - ao contrário daquela época quando a rodoviária era a única coisa viva na madrugada.
Mas não se deixe enganar, aquela ainda era a pacata Santa Luzia onde o maior acontecimento no domingo era o rojão que escapuliu e acertou um passante.

DAS ESCADAS DO ENSINO
Enfim, a Universidade de Santa Luzia tinha sido inaugurada. Eram os anos 90. Alemanha sem muro, Brasil sem cruzado. Não existia mais cacos da ditadura que pudessem incomodar os mais entusiastas, mas o ânimo  era quebrado pelo agouro dos desconfiados. "Essa universidade vai fechar em seis meses". "Só vai servir pra trazer mais gente pra essa cidade e não tem casa pra todo mundo!" "Só vem maconheiro pra cá agora!" 
Nos primeiros anos, crise: a tesouraria não estava devidamente organizada e muitos recursos sumiram. Assumiu como reitor o Dr. Olegário Braz Oliveira, um arauto da ética santa-luziense, respeitado até pelos mais despeitados. De voz firme - e pulso também - reorganizou a tesouraria e o corpo docente, já que muitos professores, com o primeiro escândalo, já tinha ido embora.

E o nosso herói? Ele está na sala de aula. O mistério é saber quem ele é agora: se é o professor de Literatura Brasileira, História do Brasil Contemporâneo ou Fundamentos da Antropologia.
O colega Leonardo Alvim o acompanha nas subidas e descidas de escadas, no revezamento das salas. Ambos se tornam grandes amigos. Alvim publicou uma crônica no jornal A Corneta relembrando aqueles tempos iniciais: "quando todos falavam em fim das utopias, éramos utópicos em crer que poderíamos ser bons professores com pouco esforço".


DAS RAINHAS
Amigos de trabalho podem se tornar mais que isso. Lourenzo saia muito com o pessoal de História. As conversas nos bares geralmente eram muito bem humoradas, embora vez ou outra alguém mais radical interrompia a cervejada para fazer um manifesto político. Ivonete Galvão era uma tímida, porém charmosa professora de História da Arte que detestava esses momentos.
Numa bela noite, diante do arroubo revolucionário de um professor ela e seu colega Uria saíram do Madame Butterfly (nome de um restaurante perto da unidade de Ciências Sociais - o dono era um ex-alfaiate que amava ópera) e passaram a noite percebendo que tinham mais em comum além do desgosto por panfletários inócuos.
Apelidada de "pantera de óculos" por seu colega, Ivonete teimava em reconhecer o seu relacionamento com o "professor maluco beleza". Por uma questão de ética profissional, mas a timidez também contava. Nesse período de namoro subterrâneo, viajaram para Campos do Jordão e Ubatuba com amigos. E na última oportunidade tomaram uma decisão.
O matrimônio foi em julho de 1994. A lua de mel foi em Caracas. Ivonete pode provar uma cachapa, uma espécie de panqueca venezuelana que Lourenzo estava acostumado a comer desde os quatro anos de idade. Um ano depois nascia Sofia. A alegria também veio acompanhada de preocupação: nessa época o casal quase se divorciou. O problema era o velho hábito do nosso protagonista: o álcool.
O amor á filha venceu o amor á boemia. Hoje é raro vê-lo bebendo. Ainda frequenta bares e botecos, por acreditar que ali o conhecimento flui ás vezes melhor que em sala de aula. No entanto, não molha a boca e nem perde a hora. Apesar dos protestos da moçada.
Sofia, hoje já tem 18 anos, e é orgulho maior dos pais. Lançou um livro de poemas e participou de um curta veiculado na internet sobre o passado.

DE UM MESTRE DE MUITAS "VIAGENS"
Nesses 15 anos de magistério, Lourenzo foi homenageado sete vezes, tanto por alunos de Geografia como de História ou Serviço Social. E está sendo homenageado de novo agora, enquanto você lê esse opúsculo, porque mesmo na condição de seu ex-aluno não poderia deixar de fazê-lo, mesmo que seja por meio desse humilde relato de sua trajetória.
É difícil acreditar que Uria tenha sido um mau professor algum dia. Sempre comunicativo, sem ser muito didático. Erudito, sem ser presunçoso. Racional, sem ser impessoal. Como disse no início, é um homem de contradições. Melhor, um homem que consegue esse extraordinário feito de andar na corda bamba do equilíbrio.
No entanto, numa coisa nosso amado mestre não é moderado: a criatividade. E ainda bem! Pode estar fazendo o que estiver, mas quando sente aquela sensação subindo pela espinha e atingindo o hipotálamo o mundo pára para ouvi-lo. É um enxurrada de frases que só vamos descobrir seu real sentido tempos depois quando a vemos materializadas, dessa vez organizadamente, em artigos ou em cartazes.
Em suas aulas, nos cutucávamos quando sua face se paralisava e dizíamos: "Aperte os cintos: lá vem outra 'viagem'". Era mais que um caos criativo, era um parto coletivo de ideias. Ás vezes seus diálogos consigo mesmo lembravam um monólogo digno do Teatro do Absurdo. José Celso Martinez está perdendo um grande talento.

O mais inacreditável é que ele as produzia tão fácil que entusiasmava a todos. O reitor de Letras, percebendo essa sua estranha capacidade, o sugeriu a criação de uma Oficina de Escrita. Eram reuniões semanais onde se discutia tudo: arte, política, sexo, religião, etc. E ainda havia os seus adendos: os debates na mesa-redonda do Bar do Alex. Mas nesse caos todo havia um objetivo: aprimorar a expressão dos alunos. Não só escrever, mas escrever bem. Não só pintar, mas pintar bem. Eu fui um desses alunos. Hoje não sei se escrevo bem realmente, mas vejo que estou no caminho certo. E tudo graças á essa cabeça pensante incansável.
Acredito que Alvarez y Uria consegui cumprir o seu objetivo maior: criar vida inteligente na província. A Universidade de Santa Luzia é o que é hoje, uma instituição de valor, por conta de sua ação na batalha pela sua oficialização e pelo seu incentivo á discussão. Lourenzo é uma figura inconveniente e fascinante, porque alfineta a todos, até a si mesmo, mas de formas impressionantes.
Sua participação em fanzines e coletivos de artes atestam a qualidade multimídia desse pensador e a safra de escritores, historiadores, sociólogos e geógrafos críticos que surgem por estas bandas são a prova viva de que seu legado está mais do que bem assegurado.

(Retirado do livro O Caçador de Falácias: Lourenzo Alvarez y Uria e seu pensamento, organizado por Leonardo Alvim e publicado pela Editora USL em março de 2012).