terça-feira, 30 de julho de 2013

As pessoas na sala de estar

Não creio que suicídio seja a melhor solução, dizia o homem-sem-qualidades para o homem-passional. A luz dos carros lá fora ricocheteava pela janela em seus rostos. Os olhos resolutos mirando a cabeça angustiada do homem-passional. Não devia ter convidado-o para beber, pensava, mas pelo menos deram umas boas risadas antes.
Quanta inveja do homem-passional. Depressão nunca passou de um sonho para o homem-sem-qualidades. Dor de cotovelo, viver na fossa, arder de raiva, rir até chorar: pequenos e distantes prazeres.
Argumentos. O homem-sem-qualidades era bom em argumentos. Não faça isso, dizia, você tem uma vida toda pela frente. Encontrará outras musas, você verá, sem falar de aventuras. Morto, o que fará?
O homem-passional largou a arma. Seu colega admirava-se pelo seu grande poder de convencimento. Mas a admiração se transformou em triste constatação. O revólver no chão parecia atraente ao homem-sem-qualidades, mas então se lembrou de suas próprias palavras. Morto, o que fará? Não podia dar fim a sua vida, uma vez que ela não existia.
Ao lado, homem-passional chorava intensamente. Estava chegando a um momento de pura redenção, quando o homem-sem-qualidades o interrompeu. Depois do estampido, ambos estavam iguais: dois seres sem vida na sala de estar.

Olho mágico

Imaginemos, apenas imaginemos, que existam espalhados pelo universo uma série de estações de observação, tal qual nossos telescópios. Imaginemos ainda que o ponto central de observação se encontre em posse de alguma criatura, a serviço de algo parecido com um governo ou mesmo por razões particulares - talvez curiosidade apenas. Imaginemos que nessa infinita solidão esse observador se interesse não mais por simples fenômenos, mas pelas trajetórias dos muitos seres que suas lentes possam captar. Imaginemos que por acaso a Terra esteja no raio de observação de suas lentes e lá ele acompanhe as pequenas vinte e quatro horas de vida de uma mosca ou então os cinquenta anos de vida de um quitandeiro. Imaginemos que efeito surtiria tal mania em nosso voyeur das estrelas. Alguém que tenha uma visão do todo se encantará realmente com a generalidade, com a perenidade, ou com a singularidade, com o acaso? Mas, não esquente a cabeça, é só imaginação.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Ainda há vida na velha praça...

Movimento Vem Pra Rua Manaus chega á Av. Djalma Batista em 20 de junho de 2013.

"O gigante acordou". Se tem falado muito nisso. Não que eu desaprove esse momento porque estamos passando. Por muito tempo se falou da apatia do brasileiro. A onda de protestos que se iniciou em São Paulo por conta do Movimento do Passe Livre é saudável á democracia, mas, claro, desde que não se desvirtue em autoritarismo (o medo de 9 em cada 10 analistas dos movimentos).
Acredito que estamos ainda longe de um ponto de chegada, se é que ele existe. As reivindicações são ora pontuais (como abaixar o preço da passagem de ônibus), ora amplas demais (como acabar com a corrupção), mas são reivindicações, ora! Já vejo gente questionando qual a melhor tática: ir derrubando um problema de cada vez ou exigir soluções cada vez mais abrangentes. Só fato disso estar sendo discutido na rua já é louvável.
Na pauta de reclamações sobressai-se problemas diretamente ligados ao cotidiano dos cidadãos, como a saúde e o transporte público. Eder Sader, ao analisar os movimentos sociais dos anos 70 e 80, encontra processo semelhante o qual chamou de "politização do cotidiano". O cotidiano de uma cidade como Manaus, onde o planejamento e infra-estrutura são quase como água e óleo, é um barril de pólvora. Inúmeras foram as vezes em que Manaus se revoltou contra isso. Podemos ir até os tempos finais de Belle Époque onde protestos contra o monopólio dos serviços urbanos pelos ingleses geravam quebra-quebra também, ou podemos ir até os anos 80 e 90, quando manifestações de professores e de cidadãos de bairros sem saneamento básico ou que não eram atendidos pelo transporte público pipocavam pela cidade.
Existiram manifestações antes e existirão manifestações depois do Movimento Passe Livre em Manaus. O que salta aos olhos como novo é a conjuntura nacional favorável á elas e a condição peculiar de Manaus como uma das cidades sede da Copa de 2014 que já vem sendo remodelada (ou desfigurada) de forma cruel.
Eu saúdo a iniciativa de um grupo de militantes, ligados á diversos partidos e diversas ideologias, mas unidos pela mesma preocupação com essa cidade. Esse grupo uniu-se com mais força desde que um dia a Praça Nossa Senhora de Nazaré apareceu em obras. Logo ficou-se sabendo que se tratava de obras para melhorar o transporte ali na Av. Recife, criando uma baia para ônibus. Tudo bem. Mas e nos cantos da praça fora da avenida principal? Estava claro que a redução da praça partia de uma pressão já antiga de moradores de condomínios próximos de aumentar o número de vagas de carros estacionados nas ruas do entorno.
Esse grupo organizou várias ocupações da praça. Uma delas ocorreu na quinta passada. Tratava-se de vivenciar a praça fazendo um pequeno sarau ali. Foi uma experiência muito agradável. Rever a praça como um ambiente de socialização, um local de prazer e não mais um adereço, foi algo incrível. O grupo, que já se constitui como um grupo devidamente constituído possuindo inclusive um nome próprio (Direitos Urbanos), continua sua luta e nela revigora-se a praça. O mais interessante é ver como muitas pessoas que não tem ideia do que se está reivindicando param, sentam, observam, participam. É perfeitamente compreensível o porquê: ninguém quer uma cidade desumanizada e a praça respirando é exemplo maior da Manaus que queremos preservar.
Acho que mais importante que o gigante que acordou foram a praça e rua terem acordado.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Parafina

Fogo. Não consigo tirar meus olhos dele. Da dança hipnótica das chamas.

Não, não sou nenhum maníaco incendiário.

Quando criança brincava de fazer sombras na parede do meu quarto. Usava uma vela. Em certo momento parava para admirar a chama. Quando me dava conta a vela já estava acabando. Como isso podia acontecer? O fogo comia a vela, dizia minha mãe.

Você. Veja bem você. Por muito tempo só enxergava você. Não precisa buscar tantos motivos assim. Eram as conversas, eram as piadas, eram as surpresas, era tudo. Quando acordei, o resto da nossa vela não tinha sobrevivido á fome do fogo.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Passagens I


Subi no comboio noturno, cansado do mundo. Sentei no primeiro acento vago que apareceu, um coberto pela luz anêmica dos postes. Relembrava o dia – as partes ruins, claro – e o conselho do meu pai: trabalho mata.
Mas algo estranho saía da escuridão. Vinha em forma de ruídos mínimos que se uniram formando uma melancólica canção. Era do meu vizinho de cadeira. Veja só, existe indícios de vida ao lado!
Era triste, bem triste. Qualquer história estava por trás dessa música e não é das mais banais. Vejo pés cansados, sorrisos sinceros, mãos calejadas e algo mais. Mas que povo não passou por isso tudo?
-Qual o nome dessa música?
A resposta veio esburacada de longas pausas.
-A canção de nós.
Só quando saímos do túnel e a luz invadiu nosso decrépito veículo que percebi que não era uma canção de nós, mas deles. Era um cara-de-cavalo, justo o tipo de mutante que mais odeio. Dei a conversa por encerrada.
-Você tem sua canção?
Será que música de boate conta? De qualquer maneira, dá inveja desse pobre diabo. Uma canção tão boa, dá pra sentir a poeira dos anos nela, naquela boca suja. E eu não sei nada próximo disso.
-Quando eu não ter certeza, cantar. Se não sei quem ser eu, cantar. Mundo fica claro.

Minha canção? Pô, cara, eu não queria entrar em outra crise existencial hoje...

Perdoem a ausência

Esses dias todos em que não estive aqui
foram um intervalo de tempo singular,
como aquele momento entre o sonhar e o acordar.

Não estava aqui, não estava lá.
Não estava nem aí.

Agora? Não sei. Talvez eu tenha voltado.
Talvez eu tenha acordado.
Não sei.