terça-feira, 19 de abril de 2011

A Lei da selva

Ferreira de Castro registrou, com efeito, a epopéia do homem dentro da selva levado pelo destino, guiado pela ambição, espoliado pelos patrões e pelos mosquitos, enterrado no seio da floresta, na exuberância de cuja clorofila reside o maior laboratório da vida primitiva no planeta.
Djalma Batista, Letras da Amazônia, 1938.
 
Falei aqui do filme A Selva (2005), mas foi apenas um rápido resumo diante da profundidade do filme. Hoje vou tentar explorar os caminhos abertos pela história.
Ferreira Castro (1894-1974)
Primeiramente, A Selva se baseia num romance escrito pelo português Ferreira de Castro e publicado em 1930. Ferreira de Castro veio para o Amazonas com doze anos de idade e trabalhou no Seringal Paraíso, como o protagonista do romance, Alberto. Levou anos para poder acumular considerável riqueza e prestígio e, enfim, retornar á Portugal, onde ainda hoje é reconhecido como um de seus maiores escritores. O ideal seria lermos o livro antes e depois assistirmos ao filme, para termos uma idéia do que se perdeu com a adaptação para as telinhas (ou o que foi acrescentado), mas infelizmente o livro de Ferreira de Castro é raríssimo em terras tupiniquins.

A rara edição brasileira de A Selva.
O que podemos dizer é que Ferreira de Castro se vincula ao realismo ou naturalismo, movimento literário difundido na época, cujo maior representante no Brasil foi Aluíso de Azevedo com seu Cortiço. O realismo permitiu que Ferreira de Castro expressasse a vida árdua no Seringal Paraíso (posteriormente transformado em Museu, graças ao filme) sem ter que amenizar alguns aspectos em nome do pudor dos leitores.

Leonel Vieira, diretor português, viu nessa obra antológica um ótimo thriller e apostou na sua adaptação. Teve a sorte de poder filmar no Seringal Paraíso - que apesar do tempo, se conservava bem ainda. A produção contou com a presença de atores brasileiros (Maitê Proença, Chico Díaz, Claudio Marzo, João Acaiabe, dentre outros), portugueses (Diogo Morgado) e espanhóis (Karra Elejade). Pelo que me lembro ela foi pouco divulgada, pelo menos no Sudeste (onde eu vivia quando o filme foi lançado em 2005), por isso não sei dizer como foi a recepção em terras barés.

Atual Museu do Seringal, em cena do filme.
O filme se inicia com uma imagem icônica dos tempos do boom da borracha: um seringueiro, no meio da floresta, retirando o látex da árvore. Esse homem, no entanto, percebe que existe algo por perto. São os índios. Então corre em direção ao barracão onde estão seus companheiros de trabalho, mas não consegue. É decapitado antes. Seu amigo Firmino reclama ao coronel Juca Tristão das condições de trabalho, pede segurança contra os índios, mas o coronel nega mesmo a presença dos índios (na realidade, ele só não quer fornecer armas aos seringueiros com medo de que se rebelem contra ele). Diante das reclamações, o coronel Tristão argumenta que isso é natural, afinal estão na selva.
O filme está mais do que bem apresentado através dessas cenas iniciais: a fala do coronel Tristão demonstra que o que prevalece nesse lugar é a lei da selva. Mesmo se tratando de homens, aqui eles são tratados como bichos. A bestialidade está por toda parte, como verificará Alberto, seja nos índios, nos impulsos sexuais de um colega seringueiro, na violência dos capatazes, em tudo. O jovem português reconhece, com poucos dias de chegada, que realmente esse era outro mundo. Aqui, ou o homem morre ou vira objeto, como o negro Tiago que se torna uma espécie de brinquedo para o coronel Tristão.

Firmino (Chico Díaz) e Alberto (Diogo Morgado).
Mas com o tempo ele se adapta: os seringueiros, que antes via como alienígenas, agora são seus amigos e os impulsos sexuais que repudiava agora tomam seu corpo. Ele passa a ser guiado pelos desejos, mas pela bela e educada dona Yayá, mulher do contador do coronel. Penso eu que esse amor proibido representa apenas mais uma prova de que esse é outro mundo, um mundo onde tudo que é proibido e reprovado pode ser feito.

Dona Yayá (Maitê Proença)
Alberto, contudo, não se adapta totalmente á selva, ele ainda pode exercer sua "civilidade" dentro do casarão do coronel Tristão, onde vai morar depois de ser "promovido" à ajudante do contador e balconista da loja de viveres. Nas canções que toca ao piano, talvez, seja resgatado desse mundo assustador e se remeta á sua terra natal. As ações do capataz Velasco também são por ele repudiadas. Não sei se isso seria outro traço de "civilidade" de Alberto ou apenas uma indignação natural. Ora, Firmino, representando os seringueiros, também é assim. Essa indignação pode ser vista como uma reação natural á brutalidade: ora, os seringueiros estavam encurralados por um lado pelos índios e pelo outro pelos capatazes.
Contudo, esse mundo-limite parece ter sempre existido, dando provas de que continuaria a existir. A situação muda coma notícia que o coronel Tristão traz de uma visita á Manaus: a borracha está entrando em crise. A fuga dos seringueiros parece ser um sintoma de que a ordem construída na selva está caindo. Se ela era o sintoma, então o golpe fatal virá pelas mãos do negro Tiago. Até então manipulado, humilhado, o negro (possivelmente um ex-escravo do coronel Tristão) demonstra que ainda é um homem e destrói tudo o que representava essa ordem ao incendiar a casa do coronel.
O final, ao meu ver, foi muito vago. O que teria acontecido após o desenlace nas ruínas do casarão (que lembrou, inclusive, um faroeste como Três Homens em Conflito) é rapidamente resumido na viagem de volta de Alberto para sua terra. Todos os outros personagens que sobreviveram, no dizer do protagonista, ficaram para trás, como a selva. A selva, contudo, nunca saiu de seu coração. A lição de desumanidade e humanidade que Alberto teve ali (e Ferreira de Castro também) seria uma dessas experiências que define uma vida. E não só uma vida, como um tempo.
A Selva, pode ser entendido então, como uma espécie de denúncia da Belle Epoque amazônica. Enquanto a historiografia tradicional defende uma época de progresso na região e as literatura local tentava imitar o parnasianismo europeu, Ferreira de Castro com seu livro atacou ambas demonstrando que esse mundo de "civilização" e "progresso" era construído em cima de muita irracionalidade e sangue.

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