Avenida Eduardo Ribeiro, Cristiano Gonçalves, 1960. |
Manaus na historiografia nacional surge do nada com o boom da borracha e depois desaparece com sua queda, reaparecendo mais tarde, somente no final da década de 1970 com a instalação da Zona Franca. Entre o fim da Belle Epoque e o começo da Manaus industrial há um intervalo de esquecimento e inércia, segundo a historiografia local. Manaus, aquela cidade que se inchou com a economia gumífera, simplesmente teria parado no tempo. A imagem que temos é a de Manaus enquanto uma espécie de cidade-fantasma.
Uma visão do bairro de Educandos, arquivo pessoal. |
Muitos pesquisadores que viveram aquele tempo tentam mostrar que Manaus não estava tão estagnada assim. A vida podia ser precária, com serviços urbanos deficientes, mas a cidade continuou respirando, só que de uma maneira diferente. O professor Arcângelo da Silva Ferreira consegue demonstrar isso em seu artigo "Bumbá ou a reinvenção do cotidiano da cidade".
A proposta do artigo é encontrar num conto do escritor manauara Carlos Gomes (membro do Clube da Madrugada, movimento literário que ajudou a sacudir um pouco o ambiente cultural de Manaus a partir da década de 1950) chamado Bumbá pistas para encontrar o cotidiano da cidade de Manaus nestes anos de "esquecimento".
Qualquer tipo de análise de uma obra de arte deve ter duas gerações: o texto (as técnicas, o propósito, ou seja, todos os elementos presentes na própria obra) e o contexto (as condições em que foi criada a obra, o momento porque passava o autor quando "pariu" sua obra). Gomes foi, por boa parte da vida, funcionário público, principalmente na Assembléia Legislativa. Possuía uma orientação marxista que se faz presente no conteúdo social de sua obra.
Bumba-meu-boi, Altamir Martins. |
O conto em questão tem como protagonista um "preto velho maranhense" chamado Severino. Ou seria o boi que preparou, que ganhou o apelido de Estrela pela mancha em sua cabeça, o principal personagem? Difícil saber. O boi feito por Severino se torna febre no bairro, um bairro pobre onde a energia elétrica era "visita bissexta". Mas quando chegava junho, o bairro inteiro se encontrava ali, no arraial do boi Estrela. Ali o comércio, por meio da mulher de Severino, prospera e até mesmo os meninos e meninas vivem seu momento mais mágico por conta do boi - a descoberta da sexualidade nos locais menos vistos.
Estrela era o boi preferido desse bairro, chegava a ser admirado por grandes figuras da cidade, mas existiam outros. O seu maior rival era o Boi Malhado. Em certa ocasião, para provocar o adversário, Severino entra com seu boi no território inimigo e então a festa vira quebra-pau. Estrela, na luta, se desmancha. Seu criador, tentando apartar a briga, também acaba falecendo.
Ora, existem muitas pistas preciosas nesse pequeno conto: a origem africana e maranhense da festa do Boi Bumbá personificada na pessoa do criador de Estrela; a presença marcante dos imigrantes, afinal, se o bairro todo aderiu á festa pode ser que eles fossem maranhenses também, já possuindo simpatia pelo folguedo; os serviços urbanos precários aparecem na descrição nada animadora do bairro, onde a eletricidade era ave rara; a resignificação do folguedo popular, ao ser admirado por grupos mais abastados da cidade e a espacialização da cidade, afinal cada bairro tinha o seu boi e havia uma linha invisível que demarcava as fronteiras de seu território.
Essas são apenas algumas pistas, mas talvez a mais importante seja essa: o protagonismo da festa. O que vemos são pessoas orbitando ao redor do Boi Estrela - o comércio, o namoro, as brigas, o trabalho. A festa se enraizava no coração dos moradores ao ponto de se tornar motivo de batalhas, como vimos. Numa cidade abandonada pela economia internacional, o viver urbano deixava de ser pautado nos valores europeus e burgueses para se concentrar no folclore e nas festas populares. Embora esse seja um viver mais tímido, comparado ao anterior, é um viver e deve ser visto. Aliás, é até muito interessante como o povo conseguia resignificar o espaço da cidade, criado para se transformar em uma Paris nos Trópicos, criando novas práticas culturas, reinventado o cotidiano. Quando a energia elétrica chega ao bairro, a estrela vermelha de papel que ficava no alto do curral do boi passa a ser iluminada por lâmpadas: a modernidade chega e ajuda a tradição.
O conto de Carlos Gomes está presente no seu livro Mundo Mundo Vasto Mundo, lançado em 1966. A data é emblemática: o mundo estava dividido pela Guerra Fria e o Amazonas assistia ao avanço do trabalhismo na figura dos políticos Plínio Ramos Coelho e Gilberto Mestrinho. No entanto, nessa mesma época o Brasil se encontrava no regime militar, sendo que muitos desses políticos trabalhistas foram cassados. Já se esboçava um projeto para transformar a Amazônia um local economicamente ativo: a Zona Franca de Manaus. O conto de Gomes, então, pode ser encarado como um retrato (não verídico, mas próximo disso) da cidade e, ao mesmo tempo, como um manifesto contra esse projeto econômico imposto á região, como fora o anterior imposto pelas firmas estrangeiras. A Zona Franca poderia trazer mais desgraça ao Amazonas, como trouxe o aviamento, além de apagar da cidade essa vivência folclórica, como os urbanistas da Belle Epoque tentaram fazer com a cultura tapuia em busca de uma cidade "civilizada".
"Argumentamos que as transforamções urbanísticas na qual Manaus está experimentando fez Carlos Gomes representar através de seus contos, outra Manaus" (p. 153, Ferreira, 2010). Uma Manaus que não é mais movimentada pela borracha, pelo ritmo da produção e escoamento. Uma Manaus agitada por um ritmo diferente: o das festas folclóricas, dentre outras atividades.
Referências:
FERREIRA, Arcângelo da Silva. Bumbá ou a Reinvenção do Cotidiano da Cidade. In: Clio Uninorte: História em Perspectiva. Ano 1, n. 1. Manaus: Uninorte/Laureate, 2010.
muito interessante....
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