domingo, 24 de abril de 2011

Uma história sobre duas "surrealistas"

A Caravela, Salvador Dali.
O surrealismo é um movimento artístico que surgiu na França na década de 1920. Como um espécie de reação ao racionalismo que, segundo muitos, tinha provocado a Primeira Guerra Mundial, os surrealistas se amparavam na psicanálise (principalmente de Freud) e elegiam como o principal objeto de sua arte o inconsciente, essa parte de nossa mente que guarda impulsos, instintos e lógicas desconexas.

André Breton
O Manifesto Surrealista de 1924 é considerado a sua certidão de nascimento. Assinado pelo poeta André Breton que nele declara o seu amor pela imaginação ("Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares".) e a sua aposta sem receio nela ("Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação".)
O surrealismo, como boa parte das vanguardas artísticas que surgiram no começo do século passado, contestava o conceito de arte: a arte não é só aquilo que vêem das mãos de um virtuose na academia, existem artistas anônimos também. Assim, eles se concentram em aspectos mais primitivos, em algo dedicado á conceitos e não mais representações de imagens, por exemplo.
Breton, por exemplo, tentava libertar seu inconsciente através da escrita automática. O que viesse na cabeça ele escrevia. Salvador Dali escrevia seus sonhos para depois torná-los pinturas. Os surrealistas procuravam libertar a imaginação, valorizavam o inconsciente, mas não se desligavam tanto assim da realidade. Muitas de suas obras iam contra aquilo que chamamos de "a moral e os bons costumes", com suas imagens carregadas de sensualidade e de dessacralização (talvez o melhor exemplo seja Simão do Deserto, filme de Luís Buñuel).

Tróstky, Rivera e Breton em 1937.
Quando Breton visitou o pintor muralista Diego Rivera no México e encontrou na sua casa o líder bolchevique Leon Tróstky resolveu fazer uma espécie de manifesto, demonstrando que o movimento surrealista tinha um comprometimento com a liberdade e com a revolução. Trostky representava a dissidência do stalinismo, do regime totalitário que a União Soviética havia se tornado.
Na mesma visita, o poeta francês conheceu a cultura mexicana e a mulher de Rivera, Frida Kahlo. É sobre ela e uma outra pintora, dita surrealista, que falaremos aqui hoje.

Frida Kahlo
Frida Kahlo era uma mulher marcada por muita dor e angústia. Primeiro, aos seis anos contraiu poliomelite o que fez uma de suas pernas enrijecer demais. Com dezoito anos, e já tendo aulas de pintura, sofre um acidente: o trem em que viajava se choca com um bonde e as ferragens penetram em sua perna e em sua genitália. Ela dizia que com os anos, a dor retornava diversas e diversas vezes, principalmente por não poder mais ter filhos.

Frida e Rivera
Mas ela também foi uma mulher dedicada ao amor. Frida conheceu o pintor muralista nas reuniões do Partido Comunista Mexicano, na década de 1920, e se apaixona. Mesmo ele sendo mais velho, Rivera foi o amor de sua vida. Ambos tiveram uma relação tempestuosa: Kahlo era bissexual e tinha casos com outras mulheres, o que era aceitado por Rivera, e este tinha caso com outras mulheres, uma delas a irmã de Frida, o que causou, aliás, a sua separação.
Em 1940, ambos retornam, mas os casos extraconjugais e as brigas de ambos continuam. Frida falece em 1954 de pneumonia, mas o caráter de sua morte ainda é controverso: alguns apostam em suícidio e outros em assassinato por parte de uma das amantes de Rivera.
A vida de Frida é essencial para entendermos sua obra, pois sua obra é sua vida, literalmente. Os desenhos feitos por Frida retratam seus sentimentos sobre determinados períodos de sua vida. Suas pinturas são quase um diário íntimo. Por isso ela recusou o título de surrealista: "Nunca pintei sonhos. Pintava a minha própria realidade".
Nós podemos ver isso nos quadros a seguir:

Sem Esperança
Sem Esperança, por exemplo, representa o momento de depressão em que a pintora vivia com as constantes dores do acidente que sofreu. Mesmo sentimento pode ser percebido no filho que não pode ter por causa de seu acidente:
Hospital Henry Ford.
Aí vemos o filho que não veio, a bacia fraturada, o hímen perdido e uma flor murcha: nada poderia ser mais objetivo, nada poderia traduzir melhor o que ela sentia.
Nesse quadro, chamado Auto-Retrato em Tijuana com Diego em meus Pensamentos, Frida aparece vestida com trajes brancos simbolizando a pureza e com um pequeno arranjo de flores sobre a cabeça - ambos são elementos típicos da cultura e do folclore mexicano, do qual ela se aproveitava constantemente. E vemos o seu grande amor em sua testa, representando esse homem que não saía da sua cabeça.
A obra de Frida é fácil de ser decifrada e é interessante por nos dar um vislumbre da vida de uma pessoa, dessa artista, através da arte.

Raquel Forner
Agora, falemos da outra pintora - parece um desrespeito aliás essa frase: "outra pintora". Como se o talento de Frida apagasse o talento da argentina Raquel Forner (1902-1988). Mas Frida ainda é uma das maiores artistas da América Latina pelos motivos que expus aqui acima. Raquel Forner é pouco conhecida do público brasileiro (o Brasil continua ensimesmado, como se não fosse parte da América Latina, e com essa ignorância perdemos muito), mas é uma das maiores pintoras argentina, tanto no campo do surrealismo como do expressionismo.
Aliás, Raquel, formada na Academia Nacional de Belas Artes de Buenos Aires e casada com o escultor Alfredo Bigatti, também recusava o título de surrealista e dizia ser mais simpática ao expressionismo. Embora tenha explorado um pouco o surrealismo, produzindo telas primitivas e oníricas, Raquel se dedicou basicamente á uma arte cheia de um simbolismo acessível, uma arte que traduzia e expressava sentimentos e opiniões através de signos conhecidos.

A Torre de Babel
Em A Torre de Babel, por exemplo, vemos alguns rostos femininos chorando ou sendo escondidos com uma lona por pequenos homens que parecem talhar essa pedra bruta onde eles se localizam. Ora, essa é uma alegoria sobre a condição feminina numa sociedade profundamente machista. Ali, a mulher é construída, talhada, pelo homem e com isso sofre e é marginalizada.
O Segredo
Já na tela acima, uma mulher aparece sendo consolada por uma figura misteriosa. Essa figura misteriosa, coberta com os pedaços de tecido pendurados, é o segredo. Alguns dizem que esse segredo simboliza adultério, mas pode ser algo mais simples, qualquer tipo de segredo íntimo ao qual nos amparamos.
Uma das minhas telas preferidas de Raquel é justamente essa abaixo, pois ela consegue resumir um, no dizer de Drummond, um tempo partido, de homens partidos.
A Caída.
Raquel era comunista e vivia numa sociedade muito simpática ao fascimo, afinal a Argentina na década de 1930 era marcada por golpes militares e uma onda conservadora e autoritária na sociedade civil. Por isso a obra de Forner tem muito de trágico, ela é uma voz contra o mundo obscuro, machista e conservador em que vivia. A Caída, por sua vez, reflete o clima de acirramento da política, com o começo da Segunda Guerra Mundial. Forner vê um mundo em ruínas, do qual surgem duas mãos (não sei se em sinal de socorro ou de resignação) com feridas sangrando (seriam chagas, estigmas?), um céu de bombardeio, um homem enforcado, uma mulher chorando e, em primeiro plano, ao lado de um tronco morto, a figura da morte. Esse não é o melhor dos mundos, mas era o que ela vivia naquela época.

Esse texto não é um ensaio crítico artístico - você pode perceber isso nos muitos campos que eu deixei de explorar nos quadros, os demais signos aparentes - , mas apenas uma introdução á arte na América Latina. Começamos falando do surrealismo, mas acabamos falando de duas pintoras que não se consideravam surrealistas: ambas possuem uma obra muito existencial, que denuncia a condição e a vida dessas duas mulheres - seja através da pintura "mexicanizada" ou pelo expressionismo. Por que foram enquadradas como surrealistas então? Porque os papas do surrealismo consideravam a arte na América Latina surrealista. Isso é um grande equívoco: a arte latino-americana não é absurda como queriam eles, mas rica e diferente. Claro, a cultura mexicana, contemplada por Breton, era um material rico para o surrealismo com sua visão mágica do mundo e seu culto á morte, mas ela não era surrealista. Para os mexicanos, não há nada mais natural. Essas definições foram, portanto, fruto de uma certa incompreensão da cultura latino-americana, uma gota de etnocentrismo.
A grande lição que espero trazer com esse texto é que a arte latino-americana é rica, plural e provocadora. Podemos perceber sua riqueza através das duas artistas que falamos aqui, mas existem muitas e muitos mais dos quais gostaríamos de falar aqui, mas, por conta do espaço e do tempo, deixaremos para outra ocasião.

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