domingo, 5 de agosto de 2012

Parteiro de ideias: uma jornada II

PARTEIRO DE IDEIAS: UMA JORNADA
Por Rafael Janusky

DO HOMEM CACTO E DO HOMEM BLOCO DE CONCRETO
Eis que encontramos nosso protagonista de volta á sua humilde terra. E por quê? Oportunidades? Não havia lugar menos atraente para um doutor em História e especialista em Literatura Comparada que a pequena Santa Luzia, que nem faculdade tinha ainda. Ou melhor, tinha: os sebos e as mesas de bar eram a faculdade improvisada. Saudades? Sim, essa parece ser a explicação mais adequada.
Lourenzo Alvarez y Uria tinha acabado de beber a metrópole num só gole e como um xarope antigo, no começo foi amargo, mas depois sua cabeça melhorou. Ainda assim, faltava naquele ambiente cheio de possibilidades algo familiar. Sérgio Buarque de Holanda dizia que o brasileiro é o homem cordial, por excelência, porque é regido pelo coração, pelas emoções. E podemos perceber isso perfeitamente nas pequenas comunidades semeadas pelo interior. Nesses sertões, o homem pode ser duro, mas não é carente de afeições. "No interior, temos o homem-cacto. Áspero, porém ainda vivo. Se atingirmos seu âmago podemos nos alimentar com sua água. Mas nos grandes centros urbanos o homem se galvaniza. Se torna um bloco de concreto. Não estou com isso defendendo a destruição do modo de vida urbano - os revolucionários de plantão entenderão isso como um "queimem as cidades!" - mas que ela pode aprender muito com outros modos de vida (indígena, caipira, oriental, que seja)".
Alvarez y Uria não nega a sua veia sentimental. Á todos diz, não sou um monstro da razão. A saudade dos amigos, da mãe e da cidade demonstra muito bem isso.

DO ADMIRÁVEL MUNDO "NOVO"
Claro que ele não fez essa escolha simplesmente pautado pela emoção, mas também por outras expectativas. Manoel Gonçalves Urbano, sociólogo uspiano, tinha lhe falado do projeto da prefeitura de Santa Luzia de  expandir sua Faculdade de Serviço Social e se tornar um centro universitário. Na confecção da atual Universidade de Santa Luzia estavam presentes muitos homens interessados em erguer uma academia séria na cidade e outros preocupados com a falta de engenheiros e médicos nestas plagas. Uria se meteu nessa empreitada como curioso. Urbano lhe assegurou que uma unidade de Ciências Sociais seria criada.
Foi preciso cinco anos para que a USL fosse instituída. Nesse meio tempo, Urbano, Uria e o geógrafo Leonardo Alvim foram os embaixadores da instituição na capital paulista.
Faltando dois anos para o seu aparelhamento, Lourenzo volta á cidade que jurou nunca mais voltar vivo. E aqui retornamos a cena anterior: um pensador descendo do ônibus numa rodoviária cinza, enquanto a mãe distribui reclamações e bençãos. 
Das viagens relâmpago que fazia nos finais de semana para visitar a família percebeu o quanto foram enganadoras: a cidade era totalmente outra. Pólo industrial, dos dois lados da Dutra! Motéis e boates não deixavam a noite morrer - ao contrário daquela época quando a rodoviária era a única coisa viva na madrugada.
Mas não se deixe enganar, aquela ainda era a pacata Santa Luzia onde o maior acontecimento no domingo era o rojão que escapuliu e acertou um passante.

DAS ESCADAS DO ENSINO
Enfim, a Universidade de Santa Luzia tinha sido inaugurada. Eram os anos 90. Alemanha sem muro, Brasil sem cruzado. Não existia mais cacos da ditadura que pudessem incomodar os mais entusiastas, mas o ânimo  era quebrado pelo agouro dos desconfiados. "Essa universidade vai fechar em seis meses". "Só vai servir pra trazer mais gente pra essa cidade e não tem casa pra todo mundo!" "Só vem maconheiro pra cá agora!" 
Nos primeiros anos, crise: a tesouraria não estava devidamente organizada e muitos recursos sumiram. Assumiu como reitor o Dr. Olegário Braz Oliveira, um arauto da ética santa-luziense, respeitado até pelos mais despeitados. De voz firme - e pulso também - reorganizou a tesouraria e o corpo docente, já que muitos professores, com o primeiro escândalo, já tinha ido embora.

E o nosso herói? Ele está na sala de aula. O mistério é saber quem ele é agora: se é o professor de Literatura Brasileira, História do Brasil Contemporâneo ou Fundamentos da Antropologia.
O colega Leonardo Alvim o acompanha nas subidas e descidas de escadas, no revezamento das salas. Ambos se tornam grandes amigos. Alvim publicou uma crônica no jornal A Corneta relembrando aqueles tempos iniciais: "quando todos falavam em fim das utopias, éramos utópicos em crer que poderíamos ser bons professores com pouco esforço".


DAS RAINHAS
Amigos de trabalho podem se tornar mais que isso. Lourenzo saia muito com o pessoal de História. As conversas nos bares geralmente eram muito bem humoradas, embora vez ou outra alguém mais radical interrompia a cervejada para fazer um manifesto político. Ivonete Galvão era uma tímida, porém charmosa professora de História da Arte que detestava esses momentos.
Numa bela noite, diante do arroubo revolucionário de um professor ela e seu colega Uria saíram do Madame Butterfly (nome de um restaurante perto da unidade de Ciências Sociais - o dono era um ex-alfaiate que amava ópera) e passaram a noite percebendo que tinham mais em comum além do desgosto por panfletários inócuos.
Apelidada de "pantera de óculos" por seu colega, Ivonete teimava em reconhecer o seu relacionamento com o "professor maluco beleza". Por uma questão de ética profissional, mas a timidez também contava. Nesse período de namoro subterrâneo, viajaram para Campos do Jordão e Ubatuba com amigos. E na última oportunidade tomaram uma decisão.
O matrimônio foi em julho de 1994. A lua de mel foi em Caracas. Ivonete pode provar uma cachapa, uma espécie de panqueca venezuelana que Lourenzo estava acostumado a comer desde os quatro anos de idade. Um ano depois nascia Sofia. A alegria também veio acompanhada de preocupação: nessa época o casal quase se divorciou. O problema era o velho hábito do nosso protagonista: o álcool.
O amor á filha venceu o amor á boemia. Hoje é raro vê-lo bebendo. Ainda frequenta bares e botecos, por acreditar que ali o conhecimento flui ás vezes melhor que em sala de aula. No entanto, não molha a boca e nem perde a hora. Apesar dos protestos da moçada.
Sofia, hoje já tem 18 anos, e é orgulho maior dos pais. Lançou um livro de poemas e participou de um curta veiculado na internet sobre o passado.

DE UM MESTRE DE MUITAS "VIAGENS"
Nesses 15 anos de magistério, Lourenzo foi homenageado sete vezes, tanto por alunos de Geografia como de História ou Serviço Social. E está sendo homenageado de novo agora, enquanto você lê esse opúsculo, porque mesmo na condição de seu ex-aluno não poderia deixar de fazê-lo, mesmo que seja por meio desse humilde relato de sua trajetória.
É difícil acreditar que Uria tenha sido um mau professor algum dia. Sempre comunicativo, sem ser muito didático. Erudito, sem ser presunçoso. Racional, sem ser impessoal. Como disse no início, é um homem de contradições. Melhor, um homem que consegue esse extraordinário feito de andar na corda bamba do equilíbrio.
No entanto, numa coisa nosso amado mestre não é moderado: a criatividade. E ainda bem! Pode estar fazendo o que estiver, mas quando sente aquela sensação subindo pela espinha e atingindo o hipotálamo o mundo pára para ouvi-lo. É um enxurrada de frases que só vamos descobrir seu real sentido tempos depois quando a vemos materializadas, dessa vez organizadamente, em artigos ou em cartazes.
Em suas aulas, nos cutucávamos quando sua face se paralisava e dizíamos: "Aperte os cintos: lá vem outra 'viagem'". Era mais que um caos criativo, era um parto coletivo de ideias. Ás vezes seus diálogos consigo mesmo lembravam um monólogo digno do Teatro do Absurdo. José Celso Martinez está perdendo um grande talento.

O mais inacreditável é que ele as produzia tão fácil que entusiasmava a todos. O reitor de Letras, percebendo essa sua estranha capacidade, o sugeriu a criação de uma Oficina de Escrita. Eram reuniões semanais onde se discutia tudo: arte, política, sexo, religião, etc. E ainda havia os seus adendos: os debates na mesa-redonda do Bar do Alex. Mas nesse caos todo havia um objetivo: aprimorar a expressão dos alunos. Não só escrever, mas escrever bem. Não só pintar, mas pintar bem. Eu fui um desses alunos. Hoje não sei se escrevo bem realmente, mas vejo que estou no caminho certo. E tudo graças á essa cabeça pensante incansável.
Acredito que Alvarez y Uria consegui cumprir o seu objetivo maior: criar vida inteligente na província. A Universidade de Santa Luzia é o que é hoje, uma instituição de valor, por conta de sua ação na batalha pela sua oficialização e pelo seu incentivo á discussão. Lourenzo é uma figura inconveniente e fascinante, porque alfineta a todos, até a si mesmo, mas de formas impressionantes.
Sua participação em fanzines e coletivos de artes atestam a qualidade multimídia desse pensador e a safra de escritores, historiadores, sociólogos e geógrafos críticos que surgem por estas bandas são a prova viva de que seu legado está mais do que bem assegurado.

(Retirado do livro O Caçador de Falácias: Lourenzo Alvarez y Uria e seu pensamento, organizado por Leonardo Alvim e publicado pela Editora USL em março de 2012).

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