quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Sexo, mentira e monstros

Em todas culturas espalhadas pelo globo sempre há uma figura presente: o herói. Os séculos passam e continuamos seguindo esses estranhos seres. Aquiles, Sundiata, Jurupari, Superman... Os nomes mudam, mas seus valores continuam.
O que é um herói? Geralmente, uma pessoa que se destaca por se dedicar a uma causa - na maioria das vezes defender seu povo - com tamanho afinco e bravura que chega em muitos casos a se sacrificar por ela.
Não é a toa que muitos heróis possuam, pelo menos nas narrativas, uma origem divina. É preciso explicar de onde vem essa inspiração, essa força, e ela é encontrada no sobrenatural.
Esse papo todo sobre estes personagens não é gratuito. É apenas a introdução do tema em pauta: Beowulf. Não o poema-épico anglo-saxão, mas o filme de Robert Zemeckis que o adaptou. É preciso saber que Beowulf é uma peça literária tradicionalíssima da cultura inglesa - embora a ação se passe na atual Dinamarca e Suécia.

O protagonista é um dos mais bravos guerreiros do povo geata (ancestrais dos suecos) que toma conhecimento do sofrimento por que passa um reino longínquo, afligido por uma criatura chamada Grendel. Numa batalha incrível, Beowulf mata o monstro, mas precisa enfrentar depois a sua mãe, sedenta por vingança. Anos depois encontramos nosso herói já entronado rei e com uma certa idade. Um novo desafio se impõe: eliminar um dragão que surgiu em seu reino.
Essa é a história de Beowulf, mas no filme A Lenda de Beowulf (2007) ela sofre algumas alterações, como é comum acontecer a qualquer produção do tipo. No entanto, há um diferencial. São alterações extremamente bem pensadas. O roteiro foi escrito pelo mago das HQs, Neil Gaiman, e Roger Avary. Os dois momentos do poema (a luta com Grendel e a batalha com o dragão), que parecem ser desconexos, são unidos de uma forma muito inteligente.
Aqui a história adquire uma carga erótica muito maior do que a real - basta dizer que a vilã (Angelina Jolie) passa boa parte do filme de topless. A Sra. Pitt não precisou tirar o sutiã para fazer tais cenas, já que o filme foi todo feito com uma tecnologia nova: a captura de movimentos. A mesma utilizada por Zemeckis antes em O Expresso Polar e depois em Os Fantasmas de Scrooge. Isso explica porque o corpulento e bonachão Ray Winstone no filme apareça todo sarado, quase irreconhecível. Talvez toda esse burburinho sobre a tecnologia tenha deixado as partes eróticas escapar aos olhos da censura que classifica este como um filme livre para todas as idades.

O sexo é só um ingrediente na trama de Beowulf. Na realidade, ele é, ao meu ver, a ponta do iceberg. O que estamos discutindo aqui é o próprio conceito de heroicidade e humanidade. O protagonista revela ser narcisista (toda vez repete seu nome, chega a ser até enjoativo) e, como posso dizer, um "refém da beleza". Não fosse essas duas características, Beowulf seria invulnerável. Se aproximaria muito mais da imagem que temos do herói em nossas cabeças. No entanto, o próprio personagem pede para que não o encarem como um ser perfeito, mas como uma pessoa com falhas - um ser humano.
Diante de um monstro que lhe promete a tão sonhada imortalidade, através da divulgação de seus feitos por gerações, e, claro, uma boa noite de sexo, Beowulf se rende. Mas com o tempo, descobre que tudo não passa de um embuste. A imortalidade, por mais que os homens a persigam, não existe. O sexo o afastou de quem realmente amava, de sua rainha (Robin Wright Penn). Beowulf, como o cara da música Ouro de Tolos de Raulzito, "devia estar contente", mas não consegue porque sente um vazio em si provocado pela culpa e pelo sucesso repentino.

É significativo que tanto ele, como o rei anterior (Anthony Hophkins) e ao que parece o seu sucessor (o seu fiel escudeiro interpretado por Brendan Gleeson) tenham caído no mesmo erro. É quase como um ciclo, dando a entender que o homem pode se achar civilizado, racional e invencível, mas, no final das contas, ainda é movido por seus desejos e tentações tanto quanto gostaria que fosse.
A mentira surge aqui para tapar esse buraco deixado pelo vacilo. Um herói é também formado por mentiras, por abstrações. Assim como toda uma civilização também. A ideologia pode ser um cimento muito conveniente para que uma ordem social continue, assim como uma inverdade também pode ajudar a carreira de uma pessoa obstinada. Quase no fim de sua vida, Beowulf renuncia ás mentiras que ajudou a construir, mas seu ajudante se recusa a aceitar a decisão do amigo. Por quê? Talvez porque precisemos acreditar em algo. Precisemos de heróis ainda. O herói, como o mito, pode ser uma inverdade necessária para que continuemos caminhando.
Todos nós temos heróis. Alguns construídos pelo mundo que nos cerca, outros entronados por nós mesmos. São eles que nos alimentam, muitas vezes, com seu exemplo. Eles que nos inspiram. De todos, qual o herói mais próximo de nós? Uma dica: domingo passado foi o seu dia. Sim, os pais. É incrível como até nisso o filme se propõe a discutir. Qual a grande sacada? A inconsequência dos pais recai sobre os filhos - em certo momento, essa frase se torna uma maldição direcionada á Beowulf. A noite de amor com a beldade monstruosa em nove meses, penso eu (não sei como é a gestação dos monstros, então...), dá frutos que mais tarde se tornam dores de cabeça.

O roteiro demonstra isso de duas maneiras: primeiro com Grendel (Crispin Glover) e depois com o dragão. Grendel não é assustador, mas sim bizarro. Em muitas cenas lembra até um menino perturbado e nada mais. E creio que ele seja realmente. Afinal, é duro você ter uma super-audição, viver numa terra onde todo final de semana fazem barulhentos festins no salão de Hidromel e, além disso tudo, ser criado por uma mãe-monstra solteira e rancorosa. Grendel se vinga do pai ausente - aqui vai o spoiler: o rei vivido por Hophkins é o pai de Grendel - matando seus súditos, acabando com a festa. O rei não consegue eliminá-lo, por isso a tarefa caberá á alguém de fora.
O matador de monstros, por sua vez, também se vê as voltas com seu filho, anos depois - outro spoiler: nessa versão, o dragão seria filho de Beowulf. O rapaz também é extremamente inconformado com a vida do pai e não é surpresa que seu alvo seja as pessoas que ele mais goste: a rainha e sua jovem amante. No final, Beowulf descobre que seu filho é igual á ele. Não só fisicamente, mas na força, no narcisismo, enfim.
Então, quem é realmente o monstro? O filho confuso ou o pai negligente? Ou então a mãe manipuladora? Mamãe monstra pode demonstrar muito apego com seus filhos, mas não pensa duas vezes em dormir com o assassino de um deles para que ganhe outro primogênito. No caso, ambos foram culpados pela má criação de seu filho.

Isso, mais uma vez reforçando que essa é a minha interpretação, demonstra o quão complicada é a relação familiar. Ela também pode ser baseada em mentiras, erros e problemas sexuais. Nosso "heróis" pessoais também são seres humanos. Podem nos decepcionar ás vezes, mas de uma forma ou de outra (seja pelo amor ou pelo ódio) nos estimulam. 
Um último ponto que gostaria de abordar é a forma como o cristianismo é tratado no filme. O personagem de John Malkovich, um fanfarrão e fofoqueiro, a todo momento aconselha que se procure ajuda na religião que está chegando naquelas paragens: o cristianismo. Anos depois, ele se torna o sacerdote local. Ao contrário do que prega a religião, ele continua tratando seu escravo terrivelmente mau, o que nos leva novamente á tal história dos vícios, desejos e mentiras.
Há também, implícito, um discurso de que a nova religiosidade teria matado a imaginação, a fantasia. E nisso aqui eu vejo o dedo de Gaiman, um conhecedor da cultura européia pagã. É mais uma alfinetada que uma crítica ás religiões ocidentais, o que já é batido. Isso porque até a própria sociedade geata retratada no filme é criticada: ora, não estamos falando de heróis e reinos que se constroem em cima de vícios e desejos jogados para debaixo do tapete? O que parece é que para os roteiristas, toda religião, toda sociedade e toda família são erigidas em cima desse tripé: vícios, desejos e mentiras.
Recomendo o filme não só pela reflexão, mas também pela ação. Essa produção funciona tanto como uma história de ação como de drama. E quanto á fotografia e a trilha sonora, estão muito boas, cada uma complementando esse ótimo roteiro. Enfim, assistam.

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