sexta-feira, 12 de outubro de 2012

QUILOMETRO 36 III


O VISITANTE
Naquele lamaçal no meio de tantas mãos sujas e camisas esburacadas, a figura do padre Orlando Marreiro era completamente surreal. Ali estava ele, com sua batina, ruça, mas ainda assim mais limpa que os trajes de seus fiéis. Ameaçava chover, mas a nuvem se revelou uma fanfarrona. A missa, exigência dos trabalhadores, ocorreu bem.
Anos depois padre Orlando me revelou que ao visitar o canteiro de obras tinha sentido algo estranho, uma vibração negativa. Estava certo que havia algo de ruim ali, só não se arriscava dizer de que entidade maligna se tratava.
Vocês nem imaginam o quanto um nome é importante. Em se tratando de magia ele faz toda diferença. O simples ato de nomear algo opera uma transformação. Se chego aqui, nesse terreno cheio de barro vermelho e maritacas, e do nada o batizo de Muquira estou condensando tudo o que ele simboliza em algumas palavras. Não faço ideia do que quer dizer Muquira, mas esta palavra me remete imediatamente a um mocambo bem aprazível, com suas casinhas de madeira pintadas de branco e azul claro.
Nas palavras se condensam a essência das coisas. Existem nomes que captam o âmago do que lhes é atribuído, principalmente se estamos falando de misticismo. Tudo tem o seu significado e uma pista para encontrá-lo está no nome.
O nome é controle. O fato de você saber o nome de certa entidade já é um trunfo, pois assim sabe como evoca-la. Se pode evocar, pode desconjurar também. Claro, isso já é mais complicado, depende mais da sua força. A chave para controlar o caboco era saber seu nome.
Desde que se tinha notícia da chegada do referido ente, nada dele se revelar. Outros pais de santo e médiuns daqui já tentaram falar com a coisa ou ao menos perguntar do exus e preto velhos. Nada. Sempre evasivos.
Andirá podia ser um tanto medroso, mas antes de tudo estava disposto a provar que era um babalorixá de peso. Depois de muito pensar na beira da cama, ao lado de Mãe Juriti, decidiu. Certa quarta-feira, largou as bênçãos e pedidos de proteção de lado. Foi direto. Queria saber o nome do sujeito. Qualquer que fosse a entidade que por ali aparecesse, perguntaria.
Os tambores começaram cedo. O cheiro de oferenda no ar, não era do incenso nem das velas romanas, mas da própria noite. Noite de lua nova. A cantoria vai engrossando. Andirá e as senhoras vão dando voltas pelo pátio de sua casa, arrastando a sandália e o pouco de areia branca jogado no chão.
A toada já estava na sua décima repetição. Uma das senhoras começou a sair do compasso. Cobria o rosto. Podia ser um orixá. Recompunha-se. Pôs se a sorrir. Pediu um doce. Era um preto velho.
Andirá lhe presenteou com um saco cheio de balas. Logo foi se apresentando como Pai Manuel das Onças. Ria com uma facilidade impressionante. Sua voz parecia estar constantemente entoando uma ladainha.
-Pai Preto, o sinhô é daqui?
Estava maravilhado com uma maria-mole que achou no meio do mar de balinhas mixurucas, respondeu depois de alguns minutos negativamente.
-Mas estou por aqui uns tempos, minino...
-Pai Preto, haverá de saber, por acaso, o nome de vizinho nosso que vive lá no mato, no oco de um jatobá?
Preto velho não estava fazendo suspense, apenas admirava o silêncio. Por alguns instantes só se ouvia o saquinho de papel das balas sendo desembrulhado. Pediu com as mãos a garrafa de pinga do rapaz que estava perto da zabumba. Com uma piscadela, metade da cachaça já tinha ido embora. Quando terminou, estalou a boca.
Enxugando os lábios, cantarolou um bocado e aí sim entrou na conversa.
-Pra que ôces querem saber nomi dele se já deram nomi pra ele?
-Nós, Pai Preto, precisamos do nome dele de verdade.
-Hmm... Eu inté podia falá, mas promessa é promessa, né, meu fio? Caboco que mora no tronco é homi perigoso, mas justo. Ôces não tem o que temer.
-Mas, Pai Preto, ele pode se zangar conosco pelo que estão fazendo com sua casa, mas nós não podemos impedir...
-Deixa disso, minino! Ele sabe, ele sabe. Caboco é mano velho. Tá desde antes do Encoberto* por aqui. Ôces tão com medo pruque é vizinho novo. Ôces não precebem que ele vai ajudar.
-Ajudar?
Preto velho fez uma careta, como se tivesse comido algo amargo. Em seguida alisou a cabeça.
-Ajudar do jeito dele. Medo, meu fio, é a língua que alguns homes entendi...
O estalo do chicote ressoava, mas só Preto velho ouvia.
O visitante agradeceu o lanche, se despediu abençoando cada um e dona Zuleide voltou a ser a ocupante daquele corpo. Andirá passou mais uma noite sem dormir, tentando digerir o que foi falado naquele quintal.
Seu Chico, quem diria, foi preso. Patarra andou cochichando no ouvido do prefeito e antes do dia terminar já haviam dois guardas parados na frente do bar do Waldinei a espera do pescador.
-Seu Chico, tá querendo esclarecer umas coisas com o senhor lá na Prefeitura.
Ele colocou o chapéu e o anel no dedo. Nem cara de raiva fez.
-Se é pra esclarecer, eu vou.
Quando chegaram na Prefeitura, o delegado Coriolano Camarão arrumou um barraco porque os policiais não tinham o algemado. Assim que foi pegar suas mãos, o velho esquivou.
-Eu vim aqui pra esclarecer um negócio!
Major Leão, pressentindo porrada a caminho, disse que a sabor das circunstâncias o melhor seria prender Chico porque haviam indícios de que ele estava armando balbúrdia em Muquira. Leia-se, assassinatos. Seu Chico se defendeu relatando seu eterno cotidiano de pescador. “Seu Chico, temos provas”. Não tinham porra nenhuma. Lembremos mais uma vez: esses eram os anos 70, boatos podiam prender alguém ou matar.
O prefeito pediu paciência do velho mocambeiro. Ficaria algemado só para acalmar os nervos do delegado de Quatro Pés, depois de dar algumas explicações seria solto. Coriolano não via a hora de interrogá-lo, mas á maneira antiga. Pediu permissão do Major Leão para usar seu cassetete e uma bateria de carro, mas preocupado com a imagem da Câmara relutou em dar carta branca ao delegado de queixo anormal.
Eu e Juninho Sabiá chegamos nesse momento. Já era noite e ninguém podia sair da cidade, por isso o delegado, seu Chico, o prefeito e nós passamos um longo tempo juntos tentando entender o que de fato tinha acontecido.
UMA DESPEDIDA DEBAIXO DOS LENÇÓIS
Ah, não nos esqueçamos do Dr. Osmar Menegullo. O bom rapaz que passava suas noites agora com Pequerrucha, uma das muitas meninas do Salão Shangri-lá. Sua esposa Maria Veridiana em São Paulo tricotava lendo suas cartas, entre um suspiro e outro. Não suspeitava nenhum pouco que aquela menina de olhos pequenos, boca carnuda, rosto anguloso e cabelos negros fazia o tipo de seu marido.
Pequerrucha, a conheci também. Não vou ser hipócrita. Eu, malandro que era (e ainda sou), não viveria em Jacamirim sem conhecer todos seus bares e puteiros. Salão Shangri-lá era o maior deles. Seu dono, Raimundo Pereira, se orgulhava de monopolizar o cacau e as putas de Jacamirim.
Para chegar lá, basta cruzar o rio em uma voadeira. Desde que os candangos chegaram aqui, balsas apinhadas de homens desesperados atravessavam essas águas toda noite.
A primeira vez em que fui lá, suas paredes ainda tinham o desenho de um pôr de sol amazônico com direito a garças e jacarés. Meio tosco, mas de encher os olhos. O chão era de azulejos xadrez. A cantoria ficava a cargo de dois sanfoneiros e um rapaz de bandolim que hoje tem quase dois metros de altura.
Assim que vi as meninas saquei tudo. Eram iludidas a irem para a cidade grande, mas acabavam chegando ali. A maioria era do interior. A exceção era uma gaúcha, a mais velha, que por sinal batizou aquela indiazinha de Pequerrucha. Maria Chaleira, a gaúcha, se orgulhava de ser cantora lírica antes de ter essa vida. Mas não renega seu atual emprego de maneira nenhuma. Apenas fazia questão de lembrar os safados que reclamavam do serviço que tinham dormido com a mulher que apertou a mão da soprano Bidu Sayão.
Do Salão Shangri-lá, apenas solicitei os serviços de três ou quatro empregadas. Maria era uma delas. As outras duas eram Pimentinha e La Hespanhola, lindas morenas que mais tarde descobriria que eram primas. As demais eram menores de idade e o escrúpulo, moeda rara nessas bandas, me impedia, até certo ponto me enojava, sequer de flertar com elas.
“O professor prefere a experiência, né?”, dizia o dono da casa toda vez que me via. Vivia me empurrando alguma “novinha”, mas eu resistia. Por fim, cansou de fazer isso.
Voltando a Pequerrucha, era uma garota – 17 anos no máximo – cheia de curvas e com um olhar ora melancólico ora altivo. Já foi disputada a bala entre dois peões. Felizmente, nenhum deles ganhou, já que os jagunços de Raimundo deram cabo dos dois antes que arrumassem mais quebra-pau em seu bordel.
Em algumas semanas, Dr. Osmar, amado pelas irmãs da Paróquia, já era cliente com cadeira cativa naquele antro de pecado. Convidado, aliás, pelo próprio dono. Penso que Raimundo, homem de falsa humildade, queria que o jovem engenheiro ficasse em suas mãos, por isso patrocinava suas aventuras sexuais ali, onde suas empregadas poderiam espioná-lo.
Seja como for, ele já tinha sua “novilha” fixa (expressão do próprio). Pequerucha ora perguntava se seria capaz de fugir com ela, ora afirmava que iria esquecê-la com o fim das obras. No seu íntimo rezava para que a construção demorasse. Pois bem, houve uma noite em que seu amante encantado lhe revelou a meio caminho do sono que no outro dia derrubaria a dita árvore. A menina arregalou os olhos, ficou muda. Lhe deu um beijo, como se fosse uma despedida.
UM TRONCO MORTO PODE SER BEM TEIMOSO
Duas coisas muito importantes aconteceram em 17 de setembro de 1973. Primeiro, Chico Tapera, independente dos nossos protestos, foi levado por Coriolano Camarão para a delegacia de Quatro Pés. A segunda, a derrubada da famigerada casa do caboco.
Os tratores estavam a postos. Alguns peões tinham saído da linha de frente e ficaram a olhar tudo de longe. Não fossem os berros dos capatazes teriam sumido. Capinaram o entorno. O susto da manhã foram duas cobras corais imensas. Um trabalhador pegou uma delas e passou entre os dedos: “faz a gente tocar viola melhor”, explicou.
Osmar observava tudo de sua tenda improvisada ali perto. Quando viu as escavadeiras avançando suas pás no tronco oco, desviou o olhar. Terminou seu cálculo, mas um eis que aparece Armindo Tavares, rouco, chamando-o.
A árvore não tinha caído, mesmo com duas escavadeiras empurrando-a. Osmar pediu que repetissem o feito. Nada. O tronco balançava, mas continuava fincado na terra. Os presentes e as velas tinham sido pisoteados e amassados pelas rodas dos veículos. Eram nada mais que uma pasta de parafina e líquidos podres.
Armindo pedia machados, facões, motosserras. Poucos valentes obedeceram. Um deles se benzeu umas sete vezes antes de tacar a peixeira nas raízes. Na terceira facada, caiu duro. Saía sangue do seu ouvido. Os demais pararam.
-Morreu?
-Não, isso tudo é psicológico.
-Patrão, tá escorrendo sangue ali, olha!
-Levem ele pra tenda, usem os primeiros socorros. Já!
Osmar tinha deixado o lápis cair no barro. Estava boquiaberto. Armindo tentava não perder a compostura. Ainda ditava ordens, mas os corajosos com facões e motosserras tinham pensado duas vezes.
-Corte esse tronco!
-Corta você!
Estava perdendo a moral. Três ou quatro correram, o capataz segurou. Um homem destinado a provar que não tinha medo optou por enfrentar a árvore. Os dentes da motosserra já tinham aberto uma ferida no tronco. Mas a máquina parou. Quando examinava-a, repentinamente voltou a funcionar. Descontrolada arrancou-lhe a mão.
Desesperado, o homem urrava de dor. Um círculo de homens ao seu redor agora tentava estancar o sangramento com trapos de suas calças. Carregaram-no para longe dali. Armindo, saindo do choque, voltou a dor ordens.
As escavadeiras tentaram mais uma vez e nada. O jovem engenheiro se viu, em poucos segundos, no olho do furacão. Tudo aconteceu ao seu redor. Dois homens tombaram e a árvore não. Um vento sem igual atravessou o canteiro de obras. Alguns galhos voavam.
-Osmar, temos que derrubar esse troço!
-Calma, calma, calma... estou pensando.
No cérebro do rapaz algo se materializava no meio de tanto assombro e caos. Cordas... Precisaríamos de corda, anunciou.
-Dessa vez usaremos três escavadeiras, não é possível que ela não caía...
Em cada veículo, uma ponta da corda. Faltava amarrar as outras pontas no tronco. Quem queria fazer agora? Os capatazes tinham se afastado. Beto, o mais próximo e franzino, recebeu a ordem. Duvidaram de sua macheza. Claro que era macho, mas por um momento desconfiar de sua virilidade parecia ser um bom preço a se pagar por sua vida. Armindo foi com ele amarrar a corda.
-Você amarra essa.
-Eu?
Osmar se surpreendeu com a ordem, mas estava tão assustado que parecia um menino obediente. Se apoiou numa das raízes. Pode averiguar que elas estavam tortas, amassadas, mas ainda rijas. Quando terminou o nó observou bem o corte feito pela motosserra. Dele saía algo. Algo líquido e escuro.
Voltaram ao chão. Armindo pediu para ligarem as máquinas, mas os operadores já tinham descido. O jeito foi eles mesmos fazerem o serviço. Beto teimava que não poderia fazê-lo, que tinham de liberá-lo porque não sabia mexer em escavadeira. O grisalho engenheiro revelou os simples movimentos, não havia mais desculpa.
Ao seu comando, todos deram partida. O ronco do motor era tudo que importava. Ao vendaval tentavam impor indiferença, menos Beto. Cada escavadeira para um lado. Foram quatro minutos de tensão. As cordas arrebentaram uma por uma.
A casa do calundu sequer balançou.
Estava a essa altura na cidade vizinha, junto com Juninho e Mestre Quinho, tentando conseguir com o delegado turrão uns minutos com Chico. Sabia de sua total inocência, assim como sabia que seria espancado por Coriolano quando estivessem ás sós. Nosso objetivo inicial era impedir que o interrogatório começasse.
Na porta da delegacia ficamos. Eu disse que seria o advogado do velho negro, mas não houve respostas. O sargento barrigudo que tomava conta da porta não nos deixava entrar. Mestre Quinho, homem pacífico de tudo, já estava a um passo de iniciar um quebra-quebra.
Finalmente o infeliz apareceu. Suando como um porco, o delegado chegou pedindo para que calássemos nossas bocas se não iríamos pro xadrez também. Juninho pulou na sua frente. Gritava: isso é uma injustiça, isso é uma injustiça!
Três tiros. O cano fumegante de Coriolano calou a todos nós.
-Eu quero ordem nessa porra!
Uma turma de crianças apareceu. Estranho, porque em caso de tiro eles são os primeiros a correr. Mas o fato é que eles chegaram correndo e quando deram por si o circo já estava feito. Pronto para voltarem, foram indagado pelos delegado qual o motivo de estarem tão afoitos. O mais magrinho, recuperando o fôlego, disse: a árvore.
E no seu tom meio fanho ficamos inteirados da incrível batalha entre as escavadeiras e o tronco maldito. Ficamos sem reação. Entreolhares, se foi o que fizemos, foi muito. O próprio Coriolano engoliu seco a notícia.
-Não é possível, isso! Deixem de papo e sumam daqui!
Enxotou e voltou para sua caverna, sua delegacia. Nós continuamos ali, cada um com seu silêncio, com seu pensamento. Dormimos na porta da “chefatura de polícia”. Esperávamos poder falar com nosso amigo. E não sei se queríamos voltar depois daquela bizarra notícia.

 (CONTINUA...)
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*Encoberto: como o rei português D. Sebastião é conhecido em muitas partes do Brasil. No Tambor de Mina acredita-se que o rei não tenha desaparecido no Marrocos durante a batalha com os mouros em 1578, mas entrado em um portal que o levou anos depois para o Maranhão, onde faleceu. 

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