O
VISITANTE
Naquele lamaçal no meio
de tantas mãos sujas e camisas esburacadas, a figura do padre Orlando Marreiro
era completamente surreal. Ali estava ele, com sua batina, ruça, mas ainda
assim mais limpa que os trajes de seus fiéis. Ameaçava chover, mas a nuvem se
revelou uma fanfarrona. A missa, exigência dos trabalhadores, ocorreu bem.
Anos depois padre
Orlando me revelou que ao visitar o canteiro de obras tinha sentido algo
estranho, uma vibração negativa. Estava certo que havia algo de ruim ali, só
não se arriscava dizer de que entidade maligna se tratava.
Vocês nem imaginam o
quanto um nome é importante. Em se tratando de magia ele faz toda diferença. O
simples ato de nomear algo opera uma transformação. Se chego aqui, nesse
terreno cheio de barro vermelho e maritacas, e do nada o batizo de Muquira estou
condensando tudo o que ele simboliza em algumas palavras. Não faço ideia do que
quer dizer Muquira, mas esta palavra me remete imediatamente a um mocambo bem
aprazível, com suas casinhas de madeira pintadas de branco e azul claro.
Nas palavras se
condensam a essência das coisas. Existem nomes que captam o âmago do que lhes é
atribuído, principalmente se estamos falando de misticismo. Tudo tem o seu
significado e uma pista para encontrá-lo está no nome.
O nome é controle. O
fato de você saber o nome de certa entidade já é um trunfo, pois assim sabe
como evoca-la. Se pode evocar, pode desconjurar também. Claro, isso já é mais
complicado, depende mais da sua força. A chave para controlar o caboco era
saber seu nome.
Desde que se tinha
notícia da chegada do referido ente, nada dele se revelar. Outros pais de santo
e médiuns daqui já tentaram falar com a coisa ou ao menos perguntar do exus e
preto velhos. Nada. Sempre evasivos.
Andirá podia ser um
tanto medroso, mas antes de tudo estava disposto a provar que era um babalorixá
de peso. Depois de muito pensar na beira da cama, ao lado de Mãe Juriti,
decidiu. Certa quarta-feira, largou as bênçãos e pedidos de proteção de lado.
Foi direto. Queria saber o nome do sujeito. Qualquer que fosse a entidade que
por ali aparecesse, perguntaria.
Os tambores começaram
cedo. O cheiro de oferenda no ar, não era do incenso nem das velas romanas, mas
da própria noite. Noite de lua nova. A cantoria vai engrossando. Andirá e as
senhoras vão dando voltas pelo pátio de sua casa, arrastando a sandália e o
pouco de areia branca jogado no chão.
A toada já estava na
sua décima repetição. Uma das senhoras começou a sair do compasso. Cobria o
rosto. Podia ser um orixá. Recompunha-se. Pôs se a sorrir. Pediu um doce. Era
um preto velho.
Andirá lhe presenteou
com um saco cheio de balas. Logo foi se apresentando como Pai Manuel das Onças.
Ria com uma facilidade impressionante. Sua voz parecia estar constantemente
entoando uma ladainha.
-Pai Preto, o sinhô é
daqui?
Estava maravilhado com
uma maria-mole que achou no meio do mar de balinhas mixurucas, respondeu depois
de alguns minutos negativamente.
-Mas estou por aqui uns
tempos, minino...
-Pai Preto, haverá de
saber, por acaso, o nome de vizinho nosso que vive lá no mato, no oco de um
jatobá?
Preto velho não estava
fazendo suspense, apenas admirava o silêncio. Por alguns instantes só se ouvia
o saquinho de papel das balas sendo desembrulhado. Pediu com as mãos a garrafa
de pinga do rapaz que estava perto da zabumba. Com uma piscadela, metade da
cachaça já tinha ido embora. Quando terminou, estalou a boca.
Enxugando os lábios,
cantarolou um bocado e aí sim entrou na conversa.
-Pra que ôces querem
saber nomi dele se já deram nomi pra ele?
-Nós, Pai Preto, precisamos
do nome dele de verdade.
-Hmm... Eu inté podia falá,
mas promessa é promessa, né, meu fio? Caboco que mora no tronco é homi
perigoso, mas justo. Ôces não tem o que temer.
-Mas, Pai Preto, ele
pode se zangar conosco pelo que estão fazendo com sua casa, mas nós não podemos
impedir...
-Deixa disso, minino!
Ele sabe, ele sabe. Caboco é mano velho. Tá desde antes do Encoberto* por aqui.
Ôces tão com medo pruque é vizinho novo. Ôces não precebem que ele vai ajudar.
-Ajudar?
Preto velho fez uma
careta, como se tivesse comido algo amargo. Em seguida alisou a cabeça.
-Ajudar do jeito dele.
Medo, meu fio, é a língua que alguns homes entendi...
O estalo do chicote
ressoava, mas só Preto velho ouvia.
O visitante agradeceu o
lanche, se despediu abençoando cada um e dona Zuleide voltou a ser a ocupante
daquele corpo. Andirá passou mais uma noite sem dormir, tentando digerir o que
foi falado naquele quintal.
Seu Chico, quem diria,
foi preso. Patarra andou cochichando no ouvido do prefeito e antes do dia
terminar já haviam dois guardas parados na frente do bar do Waldinei a espera
do pescador.
-Seu Chico, tá querendo
esclarecer umas coisas com o senhor lá na Prefeitura.
Ele colocou o chapéu e
o anel no dedo. Nem cara de raiva fez.
-Se é pra esclarecer,
eu vou.
Quando chegaram na Prefeitura,
o delegado Coriolano Camarão arrumou um barraco porque os policiais não tinham
o algemado. Assim que foi pegar suas mãos, o velho esquivou.
-Eu vim aqui pra
esclarecer um negócio!
Major Leão,
pressentindo porrada a caminho, disse que a sabor das circunstâncias o melhor
seria prender Chico porque haviam indícios de que ele estava armando balbúrdia
em Muquira. Leia-se, assassinatos. Seu Chico se defendeu relatando seu eterno
cotidiano de pescador. “Seu Chico, temos provas”. Não tinham porra nenhuma.
Lembremos mais uma vez: esses eram os anos 70, boatos podiam prender alguém ou
matar.
O prefeito pediu
paciência do velho mocambeiro. Ficaria algemado só para acalmar os nervos do
delegado de Quatro Pés, depois de dar algumas explicações seria solto.
Coriolano não via a hora de interrogá-lo, mas á maneira antiga. Pediu permissão
do Major Leão para usar seu cassetete e uma bateria de carro, mas preocupado
com a imagem da Câmara relutou em dar carta branca ao delegado de queixo
anormal.
Eu e Juninho Sabiá
chegamos nesse momento. Já era noite e ninguém podia sair da cidade, por isso o
delegado, seu Chico, o prefeito e nós passamos um longo tempo juntos tentando
entender o que de fato tinha acontecido.
UMA
DESPEDIDA DEBAIXO DOS LENÇÓIS
Ah, não nos esqueçamos
do Dr. Osmar Menegullo. O bom rapaz que passava suas noites agora com Pequerrucha,
uma das muitas meninas do Salão Shangri-lá. Sua esposa Maria Veridiana em São
Paulo tricotava lendo suas cartas, entre um suspiro e outro. Não suspeitava
nenhum pouco que aquela menina de olhos pequenos, boca carnuda, rosto anguloso
e cabelos negros fazia o tipo de seu marido.
Pequerrucha, a conheci
também. Não vou ser hipócrita. Eu, malandro que era (e ainda sou), não viveria
em Jacamirim sem conhecer todos seus bares e puteiros. Salão Shangri-lá era o
maior deles. Seu dono, Raimundo Pereira, se orgulhava de monopolizar o cacau e
as putas de Jacamirim.
Para chegar lá, basta
cruzar o rio em uma voadeira. Desde que os candangos chegaram aqui, balsas
apinhadas de homens desesperados atravessavam essas águas toda noite.
A primeira vez em que
fui lá, suas paredes ainda tinham o desenho de um pôr de sol amazônico com
direito a garças e jacarés. Meio tosco, mas de encher os olhos. O chão era de
azulejos xadrez. A cantoria ficava a cargo de dois sanfoneiros e um rapaz de
bandolim que hoje tem quase dois metros de altura.
Assim que vi as meninas
saquei tudo. Eram iludidas a irem para a cidade grande, mas acabavam chegando
ali. A maioria era do interior. A exceção era uma gaúcha, a mais velha, que por
sinal batizou aquela indiazinha de Pequerrucha. Maria Chaleira, a gaúcha, se
orgulhava de ser cantora lírica antes de ter essa vida. Mas não renega seu
atual emprego de maneira nenhuma. Apenas fazia questão de lembrar os safados
que reclamavam do serviço que tinham dormido com a mulher que apertou a mão da
soprano Bidu Sayão.
Do Salão Shangri-lá,
apenas solicitei os serviços de três ou quatro empregadas. Maria era uma delas.
As outras duas eram Pimentinha e La Hespanhola, lindas morenas que mais tarde
descobriria que eram primas. As demais eram menores de idade e o escrúpulo,
moeda rara nessas bandas, me impedia, até certo ponto me enojava, sequer de
flertar com elas.
“O professor prefere a
experiência, né?”, dizia o dono da casa toda vez que me via. Vivia me
empurrando alguma “novinha”, mas eu resistia. Por fim, cansou de fazer isso.
Voltando a Pequerrucha,
era uma garota – 17 anos no máximo – cheia de curvas e com um olhar ora
melancólico ora altivo. Já foi disputada a bala entre dois peões. Felizmente,
nenhum deles ganhou, já que os jagunços de Raimundo deram cabo dos dois antes
que arrumassem mais quebra-pau em seu bordel.
Em algumas semanas, Dr.
Osmar, amado pelas irmãs da Paróquia, já era cliente com cadeira cativa naquele
antro de pecado. Convidado, aliás, pelo próprio dono. Penso que Raimundo, homem
de falsa humildade, queria que o jovem engenheiro ficasse em suas mãos, por
isso patrocinava suas aventuras sexuais ali, onde suas empregadas poderiam
espioná-lo.
Seja como for, ele já
tinha sua “novilha” fixa (expressão do próprio). Pequerucha ora perguntava se
seria capaz de fugir com ela, ora afirmava que iria esquecê-la com o fim das
obras. No seu íntimo rezava para que a construção demorasse. Pois bem, houve
uma noite em que seu amante encantado lhe revelou a meio caminho do sono que no
outro dia derrubaria a dita árvore. A menina arregalou os olhos, ficou muda.
Lhe deu um beijo, como se fosse uma despedida.
UM
TRONCO MORTO PODE SER BEM TEIMOSO
Duas coisas muito
importantes aconteceram em 17 de setembro de 1973. Primeiro, Chico Tapera,
independente dos nossos protestos, foi levado por Coriolano Camarão para a
delegacia de Quatro Pés. A segunda, a derrubada da famigerada casa do caboco.
Os tratores estavam a
postos. Alguns peões tinham saído da linha de frente e ficaram a olhar tudo de
longe. Não fossem os berros dos capatazes teriam sumido. Capinaram o entorno. O
susto da manhã foram duas cobras corais imensas. Um trabalhador pegou uma delas
e passou entre os dedos: “faz a gente tocar viola melhor”, explicou.
Osmar observava tudo de
sua tenda improvisada ali perto. Quando viu as escavadeiras avançando suas pás
no tronco oco, desviou o olhar. Terminou seu cálculo, mas um eis que aparece
Armindo Tavares, rouco, chamando-o.
A árvore não tinha
caído, mesmo com duas escavadeiras empurrando-a. Osmar pediu que repetissem o
feito. Nada. O tronco balançava, mas continuava fincado na terra. Os presentes
e as velas tinham sido pisoteados e amassados pelas rodas dos veículos. Eram
nada mais que uma pasta de parafina e líquidos podres.
Armindo pedia machados,
facões, motosserras. Poucos valentes obedeceram. Um deles se benzeu umas sete
vezes antes de tacar a peixeira nas raízes. Na terceira facada, caiu duro. Saía
sangue do seu ouvido. Os demais pararam.
-Morreu?
-Não, isso tudo é
psicológico.
-Patrão, tá escorrendo
sangue ali, olha!
-Levem ele pra tenda,
usem os primeiros socorros. Já!
Osmar tinha deixado o
lápis cair no barro. Estava boquiaberto. Armindo tentava não perder a
compostura. Ainda ditava ordens, mas os corajosos com facões e motosserras
tinham pensado duas vezes.
-Corte esse tronco!
-Corta você!
Estava perdendo a
moral. Três ou quatro correram, o capataz segurou. Um homem destinado a provar
que não tinha medo optou por enfrentar a árvore. Os dentes da motosserra já
tinham aberto uma ferida no tronco. Mas a máquina parou. Quando examinava-a,
repentinamente voltou a funcionar. Descontrolada arrancou-lhe a mão.
Desesperado, o homem
urrava de dor. Um círculo de homens ao seu redor agora tentava estancar o
sangramento com trapos de suas calças. Carregaram-no para longe dali. Armindo,
saindo do choque, voltou a dor ordens.
As escavadeiras
tentaram mais uma vez e nada. O jovem engenheiro se viu, em poucos segundos, no
olho do furacão. Tudo aconteceu ao seu redor. Dois homens tombaram e a árvore
não. Um vento sem igual atravessou o canteiro de obras. Alguns galhos voavam.
-Osmar, temos que
derrubar esse troço!
-Calma, calma, calma...
estou pensando.
No cérebro do rapaz
algo se materializava no meio de tanto assombro e caos. Cordas... Precisaríamos
de corda, anunciou.
-Dessa vez usaremos
três escavadeiras, não é possível que ela não caía...
Em cada veículo, uma
ponta da corda. Faltava amarrar as outras pontas no tronco. Quem queria fazer
agora? Os capatazes tinham se afastado. Beto, o mais próximo e franzino,
recebeu a ordem. Duvidaram de sua macheza. Claro que era macho, mas por um
momento desconfiar de sua virilidade parecia ser um bom preço a se pagar por
sua vida. Armindo foi com ele amarrar a corda.
-Você amarra essa.
-Eu?
Osmar se surpreendeu
com a ordem, mas estava tão assustado que parecia um menino obediente. Se
apoiou numa das raízes. Pode averiguar que elas estavam tortas, amassadas, mas
ainda rijas. Quando terminou o nó observou bem o corte feito pela motosserra.
Dele saía algo. Algo líquido e escuro.
Voltaram ao chão.
Armindo pediu para ligarem as máquinas, mas os operadores já tinham descido. O
jeito foi eles mesmos fazerem o serviço. Beto teimava que não poderia fazê-lo,
que tinham de liberá-lo porque não sabia mexer em escavadeira. O grisalho
engenheiro revelou os simples movimentos, não havia mais desculpa.
Ao seu comando, todos
deram partida. O ronco do motor era tudo que importava. Ao vendaval tentavam
impor indiferença, menos Beto. Cada escavadeira para um lado. Foram quatro
minutos de tensão. As cordas arrebentaram uma por uma.
A casa do calundu
sequer balançou.
Estava a essa altura na
cidade vizinha, junto com Juninho e Mestre Quinho, tentando conseguir com o
delegado turrão uns minutos com Chico. Sabia de sua total inocência, assim como
sabia que seria espancado por Coriolano quando estivessem ás sós. Nosso
objetivo inicial era impedir que o interrogatório começasse.
Na porta da delegacia
ficamos. Eu disse que seria o advogado do velho negro, mas não houve respostas.
O sargento barrigudo que tomava conta da porta não nos deixava entrar. Mestre
Quinho, homem pacífico de tudo, já estava a um passo de iniciar um
quebra-quebra.
Finalmente o infeliz
apareceu. Suando como um porco, o delegado chegou pedindo para que calássemos
nossas bocas se não iríamos pro xadrez também. Juninho pulou na sua frente.
Gritava: isso é uma injustiça, isso é uma injustiça!
Três tiros. O cano
fumegante de Coriolano calou a todos nós.
-Eu quero ordem nessa
porra!
Uma turma de crianças
apareceu. Estranho, porque em caso de tiro eles são os primeiros a correr. Mas
o fato é que eles chegaram correndo e quando deram por si o circo já estava
feito. Pronto para voltarem, foram indagado pelos delegado qual o motivo de
estarem tão afoitos. O mais magrinho, recuperando o fôlego, disse: a árvore.
E no seu tom meio fanho
ficamos inteirados da incrível batalha entre as escavadeiras e o tronco
maldito. Ficamos sem reação. Entreolhares, se foi o que fizemos, foi muito. O
próprio Coriolano engoliu seco a notícia.
-Não é possível, isso!
Deixem de papo e sumam daqui!
Enxotou e voltou para
sua caverna, sua delegacia. Nós continuamos ali, cada um com seu silêncio, com
seu pensamento. Dormimos na porta da “chefatura de polícia”. Esperávamos poder
falar com nosso amigo. E não sei se queríamos voltar depois daquela bizarra
notícia.
(CONTINUA...)
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*Encoberto: como o rei português D. Sebastião é conhecido em muitas partes do Brasil. No Tambor de Mina acredita-se que o rei não tenha desaparecido no Marrocos durante a batalha com os mouros em 1578, mas entrado em um portal que o levou anos depois para o Maranhão, onde faleceu.
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