segunda-feira, 8 de outubro de 2012

QUILÔMETRO 36 II

Aí está a segunda parte do conto, espero que gostem.


NINGUÉM SEGURA ESSE PAÍS
Muquira estava em polvorosa. Lembro bem: foi numa terça feira. Dei a notícia no boteco do Waldinei, na presença de Mestre Quinho, Chico, Sabiá e mais outro. O velho Mestre Quinho até tirou os óculos. Pensei que veria uma lágrima sair dali.
-Vão tirar a gente daqui não é?
-Eu não sei. Só sei que vão passar pela árvore.
Chico deu um sobressalto.
-Bando de quimbundo* safado! Não sabem de nada, esses filhos dumas putas...
Primeira vez em que ouvi um palavrão vindo do grande Chico. Mestre Quinho não disse nada, ficou pensando. Mais tarde consultou Pai Andirá para saber o que aconteceria se derrubassem a morada do caboco. “Eu sei de uma coisa: muita desgraça vem por aí!”
Aquela terça terminava com um por de sol violento. A noite foi povoada de pesadelos. Eu quase cai de minha rede duas vezes. Sonhava com aquele totem novamente. Depois de tanto tempo...
Noutro dia perguntei se poderia ver novamente a árvore, só para fixar bem a sua imagem. Não vi nem sombra de Mestre Quinho. Estava tentando entrar na prefeitura. Seu Chico me respondeu: “Estamos indo pra lá mesmo...”
A caravana cruzou o mato. Pai Andirá com seus colares entre os dedos, remexendo-os, na frente. Os outros homens carregavam bacias com cachaça, batata e frangos degolados. Eu próprio carreguei uma delas. Novamente as vozes. Fiquei com vergonha de perguntar se só eu as ouvia.
Colocamos as tigelas entre as raízes. O babalorixá começou a rezar. Disparou algumas palavras em jeje e tombou no chão. Antes que o levantássemos, acordou. “Pronto, agora vamos ver...”, finalizou.
Pensei que esse tinha sido meu último encontro com aquele obelisco de celulose.
Dois dias se passaram e alardeava-se no Diário do Tapajós a chegada dos engenheiros e dos tratores. Pai Andirá tinha assegurado que nada aconteceria ao povo do Muquira: á eles pelo menos o calundu não dirigiria sua fúria. Mestre Quinho protestava quase todo dia na prefeitura. A secretária só não lhe evitava porque não tinha para onde fugir. Engraçado que ele sempre saía com a mesma camisa azul, o que lhe valeu o apelido de Azulão pelos mexeriqueiros.
-Lá vem o Azulão reclamar!
O alto e grisalho marceneiro ficava ainda mais fulo da vida com as brincadeiras. Começava a discursar para o vento, uma vez que todos se afastavam quando percebiam a intenção do ancião do mocambo.
Os tratores ficaram instalados atrás da Rua do Comércio, protegidos pelos capatazes do Sr. Raimundo Pereira, fazendeiro de cacau e mantenedor de um bordel do outro lado do rio. A recepção aos engenheiros partiu de Alexandre Patarra. Mestre Quinho compareceu, assistindo a tudo de braços cruzados. No meio da oratória, um vendaval arrebatou a folha da mão de Patarra. Despenteou também o belo Dr. Osmar Menegullo, o engenheiro chefe no alto de seus vinte e poucos anos.
O secretário de educação se recompôs e completou o discurso no improviso com um habitual viva ao presidente e o progresso. “Ninguém segura esse país!” foi o ponto final.
OS TERRÍVEIS “PIAUÍ”
Os tratores já tinham arrancado da terra úmida um cem número de raízes. O chão de folhas secas estava pelado.  Acompanhava o avanço das máquinas dia a dia o Dr. Osmar Menegullo e os seus assistentes, Dr. Péricles Santos e Dr. Armindo Tavares. Dois homens de meia idade que invejavam o cargo e a fama de seu jovem superior.
O número de candangos era proporcional ao número de frequentadores da Taberna da Lua. Confusão não faltava. Era cidadão tentando provar que era mais homem que o outro na bala e coisa e tal. Eu sei que a polícia dali, pela primeira vez na vida, teve trabalho.
E os policiais já tinham uma tipologia do crime: os cearenses eram mais de beber, os paraibanos eram mais enxeridos com as meninas-dama e os piauienses, esses eram brabos.  Tinha um bando de irmãos, os Piauí, que tinham uma fama lendária. Cada um deles carregava nas costas pelo menos sete óbitos. Mas morte mesmo ali, enquanto a construção rolava, nenhuma.
Por enquanto.
Um dia alguém surge na frente do escritório improvisado do Dr. Osmar. Um negro troncudo, braço cheio de veias, chapéu escuro, costeletas grisalhas, olhar miúdo, mas forte.
-Preciso falar com o senhor, Dr. Osmar.
-Pois não?
Depois de se cumprimentarem, Osmar percebe a falta de um dedo na mão de seu visitante.
-Sou morador dessas bandas, venho lá do mocambo. Me chamo Francisco. Nós lá, somos gente simples, sabe? Por isso o prefeito não nos ouve. Eu vim falar com o senhor, fazer um pedido.
-Qual seria?
-Por favor, lhe peço por tudo que é mais sagrado: não mexa naquela árvore.
-Que árvore?
-É um jatobá que tem há uns passos daqui. Grande, seca, escura. Tá cheio de coisa em volta dela. É que, o senhor pode até estranhar, mas vive um bicho, um espírito dentro dela e não é bom mexer com essas coisas.
O rapaz ouviu tudo. Os boatos do prefeito só foram confirmados por Chico: são macumbeiros contra o progresso. Disse que veria o que faria, que tentaria desviar a estrada da árvore. Mas entre o projeto e o mocambo não era difícil adivinhar quem ele obedeceria.
Naquele dia tive um sonho. Assim que acordei anoitei no meu caderno amarelo (das minha divagações próprias) aquela história surreal: Tudo estava embaçado, tudo cinza. Respirava ofegante, mas de uma forma estranha. Sabia que estava no mato, porque ouvia o som das folhas sendo pisadas. Sem ver e ouvir direito, corria. Sentia as folhas, os galhos roçarem em meu rosto. Não doía. Era então uma força selvagem. Disparei. Manchas brancas lá. Aproximei mais furtivamente. Sombras, aqui e ali. Avancei sobre as duas e o resto ficou no terreno dos sonhos esquecidos pela manhã.
O mocambo amanheceu com o cantar manhoso do galo de Dona Veridiana. Quando estava preparado para devorar o pão com tucumã de Dona Zuleide, minha anfitriã na comunidade, acompanhado daquele cafezinho forte o guarda me aparece. Pálido e sem fôlego.
-Vocês... notaram... alguma coisa estr... estranha, por aqui?
-Não, por que?
-Nada...
Dona Zuleide se impôs:
-Ah não, entrou na minha casa e não quer dividir a fofoca, eu expulso.
-Mataram... umas pessoas... os Piauí.
-Meu Deus! Veja só!
As notícias começaram a chegar, de todos os tipos e tamanhos. Com o tempo chegamos a um consenso: dois peões, depois de beberem, voltando para a sua tenda, foram emboscado pelos irmãos. Agora, onde estavam os Piauí? Numa hora dessas no Piauí de novo, arriscava Mestre Quinho.
O mais bizarro era o estado dos corpos. “Ticados”, no dizer do povo daqui. Ou seja, cortados em vários pedaços como um legítimo churrasquinho grego. E isso não foi obra de faca, mas de enxada, pelo tamanho dos cortes.
Pai Andirá chegou na reunião com um olhar dramático. Com aquela cara de que sabe de algo que os outros nem imaginam, tremendo o beiço (como era dramático!).  Mestre Quinho perguntava do afilhado se isso era um sinal do calundu. Isso não é um sinal, é um acerto de contas, revelou como se recitasse Macbeth.
*
O toque de recolher tinha atingido até a Taberna do Laerte. Não era algo imposto pelo prefeito, assustado, mas coisa da própria população, temerosa que os malfeitores voltassem e fizessem mais uma vítima.
Nesse momento as atenções recaíam sobre dois colegas de trabalho que tinham sido jurados de morte pelos irmãos. Um deles, um homem chamado Severino, andava armado com todo tipo de coisa, de facão a pistola. Sempre atento, sempre arisco.
As obras prosseguiam. Dr. Osmar aparecia agora só esporadicamente no caminho lamacento aberto no mato. A poucos metros do temido jatobá estava o próximo picão, demarcando a área que seria “limpada” em breve. Eis que surge no meio das obras um homem gritando.
Imundo, colérico, aquela figura carrega algo na mão. Uma cabeça!
-Eu consegui! Eu ganhei!
Olhando mais a fundo o homem misterioso revela-se ser Severino. Controlado pelos peões, põem-se a chorar.
-Pensei que ia morrer...
A cabeça. Um corajoso a pegou. Bateu o olho, reconheceu. Piauí, o caçula. É ele, carcomido, mas é.
Uma multidão esperava a polícia trazer o novo sortudo morador da prisão de Quatro Pés, cidade vizinha. O delegado encheu de porrada o homem. Queria ouvir algo com sentido da boca do sujeito, mas nada. Só dizia que se perdeu, que os Piauí apareceram, que os três irmãos viraram cem, um deles virou onça, outro sucuri. Desesperado e encurralado, avançou com seu facão. Só conseguiu atingir um deles. Depois saiu em disparada.
Essa história já é manjada. Alucinação de quem não entrega presente ao calundu. Resultado: perde-se o caminho, perde-se a razão. Mas a cabeça do delinquente era bem real.
Buscas foram feitas na mata do Muquira. Chico Tapera á frente. Eu, como sempre curioso e enxerido, estava no meio. Um cheiro podre atacou nossas narinas. As moscas denunciaram a posição dos defuntos. Todos os irmãos Piauí, até o degolado. Mortos há dias, deduzindo pelo estado de suas ossadas.  Sem rastro de bala ou de faca. Não trouxeram presente também, deu nisso, concluía seu Chico longe dos policiais.
Bem, nesse momento ainda se apegava á meu racionalismo. Cheguei a imaginar até um encontro a la Era uma Vez no Oeste entre os irmãos maléficos e o jurado de morte. Mas não haviam balas. A posição do mais velho me intrigava: ajoelhado.
A suposição de Mestre Quinho era bem interessante: o espírito matou os dois primeiros candangos por terem tocado na árvore quando estavam bêbados. Sabendo das mortes e que seriam incriminados por elas, os irmãos fugiram. Passaram pelo jatobá sem saber das oferendas. Ficaram amalucados e morreram, depois chegou a vez de Severino, que cruzou o caminho do espírito sem saber, e pagou com a perda da sanidade.
Muito interessante, mas refutei por não acreditar em espíritos. Alexandre Patarra também. Culpava os candangos por terem feito da nossa amada cidade o cenário de um faroeste sangrento. Na janela da prefeitura, Major Leão observava a cidade, recitando em segredo o Salmo 91.

RASTROS
Você pode imaginar como o clima ficou pesado na cidade depois da prisão de Severino e a descoberta dos restos dos Piauí. Os trabalhadores da estrada estavam tensos. Ouviam falar nas ruas que o culpado de tudo era uma visagem que vivia em um tronco. Era o bastante para pensarem duas vezes antes de irem descansar á sombra de qualquer árvore na hora do almoço.
As primeiras fugas começaram a preocupar o grisalho Dr. Armindo Tavares. A empreiteira, já preocupada, recrutava trabalhadores locais. Mas poucos se dispunham a enfrentar o terreno do calundu maldito.
Em Muquira se respirava medo, embora Pai Andirá garantisse que nada aconteceria com a comunidade. Até que ponto algo é 100% seguro? Uma vez em Nhamundá preparado para matar um jacaré amarrado e segurado pelos seus parceiros um homem morreu. O jacaré não precisou fazer nada. Ele foi levantar o machado, perdeu o equilíbrio e caiu do barranco. Quando parou de rolar, já tinha quebrado a perna. Morreu a caminho do hospital.
As obras foram interrompidas por um tempo. Uma rápida folga poderia afastar essa besteira de espírito do mato da cabeça dos peões. Osmar ainda acreditava ferrenhamente que o responsável pelas mortes era o negro velho que veio lhe falar. As mortes foram o meio que ele encontrou para barrar o andamento das construções. Não podia provar, infelizmente, mas já tinha apresentado a sua hipótese ao prefeito e ao secretário de educação.
Foi o bastante para que o esquálido secretário se tornasse Sherlock Patarra. Pegou seu fusca Wolkswagen 66, o carro mais possante da cidade até a chegada do Toyota amarelo de Menegullo, e foi para Quatro Pés. Da conversa com o delegado não pode aproveitar muita coisa. Severino continuava aluado. Conseguiu dois minutos com o prisioneiro para perguntar quem tinha o contratado para matar os candangos. Ao invés de “Chico Tapera” ouviu “Nosso Senhor Jesus Cristo”. No final do dia a sensação de ter gastado gasolina e tempo á toa veio.
Mestre Quinho evitava falar no acontecido, ao contrário de Dona Zuleide que para cada vez que mencionava o caboco se benzia três vezes. Eu apenas anotava a reação das pessoas em meu bloco de notas. Para mim isso tudo ainda era uma pesquisa etnográfica. Revirando as folhas do caderno amarelo encontrei coisas esquisitas. Era a minha letra só que muito mais inclinada e corrida, como se todas as aulas de caligrafia do jardim de infância tivessem sido em vão.
Era meu sonho, tinha anotado ele. Talvez após acordar suando em bicas tenha vindo á minha mente o desejo de registrar essa loucura para que futuramente um psicanalista a decifre. O fato era que não me lembrava de tê-lo escrito. Aos poucos algumas imagens e sensações foram emergindo e formando um quebra cabeça de peças soltas: aquele emaranhado de escuridão, sombras se movendo, as folhas e o barro sob o meu pé, o vento batendo no rosto como um chicote, gritos. Quebrei a cabeça a tarde inteira. Na falta de solução fui ao bar do Waldinei procurar respostas num copo de cachaça e num papo com os amigos. A embriaguez pode ser um bom método investigativo também...

(CONTINUA...)
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*Quimbundo: palavra de origem africana, forma pejorativa de se referir á alguém.

Um comentário:

  1. Francisco Ricardo Lima Caetano15 de março de 2014 às 05:49

    ta ficando bem bacana, a tensão aumentou bastante nesses capítulos, na espectativa de como sera os próximos.

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