sábado, 4 de junho de 2011

O claro enigma de Clarice

Clarice por Gabriela Brioschi
Há poucos minutos atrás assisti na televisão uma espécie de mesa-redonda que aconteceu na Flip do ano passado sobre Clarice Lispector. Participavam dela o jornalista e pesquisador José Castello (especialista em Clarice, uma vez que já a entrevistou em várias ocasiões), o também jornalista Claudiney Fonseca e o jovem escritor Benjamin Moser que lançou ano passado o livro Why this World que tenta apresentar Clarice para os leitores não-brasileiros. Why this World foi traduzido para o português, ganhando inclusive alguns trechos a mais. O nome do livro, aqui, é Clarice: Uma Biografia.
Primeiro, quem é Clarice Lispector? Clarice nasceu na Ucrânia numa aldeia muito pobre em 1920 e originalmente se chamava Haia. Dois anos depois a família consegue vir para o Brasil, chegando primeiro em Alagoa e depois indo para Pernambuco. A mãe de Clarice veio a falecer em 1930 e isto marcou toda a família. Anos depois, o pai conseguira transferir toda a família para o Rio de Janeiro e lá Clarice começa a cursar Direito, enquanto trabalha como professora e free-lancer de alguns jornais para pagar a faculdade. Em 1943 casa-se com um colega de faculdade, Maury Gurgel Valente, que se tornaria diplomata. Com a carreira do marido, Clarice teve de acompanhá-lo em viagem por muitos estados (inclusive ao Pará) e até fora do Brasil. Deu á luz aos seus filhos Paulo e Pedro na Europa. Em 1953 vem a se separar do marido e volta á morar no Brasil. Em 1966, ao dormir com um cigarro aceso, Clarice provoca um incêndio, o qual quase leva á sua morte. Esse acidente será o início da depressão da escritora, que passa a conviver com as dores do passado e do presente (as queimaduras). Dessa época até 1977, ano de seu falecimento, ela sobrevive basicamente de sua escrita, diferente dos anos anteriores, colaborando para jornais, suplementos, traduzindo livros e publicando os seus.
Em segundo lugar, como era a obra de Clarice? Muitos a enquadram na geração de escritores de 1945, onde o nacionalismo e a fúria iconoclasta dos primeiros modernistas tinha sido consolidada. A literatura se ocupa de temas maism íntimos e psicológicos. E a obra de Clarice é fortemente existencialista. Começa a escrever na década de 1940, sua estréia vem com Perto do Coração Selvagem. Se aprimora na arte do conto, embora seu livro mais conhecido seja um romance: A Hora da Estrela (1977). Outro romance conhecido também é A Paixão Segundo G.H. (1964). Clarice dizia que seu processo criativo era baseado na intuição, por isso sua narrativa parecia tão fragmentária. Fragmentária, mas pontual, sagaz. Tanto que o escritor Otto Lara Resende advertiu José Castello : "Clarice não é literatura, é bruxaria!"

Mas voltemos á entrevista: Benjamin Moser estava esclarecendo como entrou em contato com Clarice. Depois de uma tentativa fracassada de ser fluente em chinês, Moser escolheu o idioma português para estudar e entre os escritores brasileiros encontrou justamente Clarice com seu A Hora da Estrela, a história de Macabéia - uma imigrante alagoana em São Paulo que é marginalizada no trabalho e no amor por sua condição de mulher e de nordestina. Castello, na mesa-redonda, lembra que geralmente a obra de Clarice parece ser um pouco misteriosa, por isso leva um certo tempo para tomarmos aquele choque, entender realmente sua intenção. Moser acredita que esse choque foi instantâneo nele, por conta de seu conhecimento inicial sobre o português (as diferentes regras gramaticais seriam o maior impedimenteo, segundo ele, para entendermos os contos em forma de aforismos da escritora).
No evento também me chamou a atenção uma observação de Moser referendada por Castello de que Clarice é como se fosse uma ilha dentro da literatura brasileira. Seus admiradores, chamados por Moser de "claricianos", são uma espécie de sociedade secreta, uma vez que Clarice sempre foi tida como enigmática. Moser ajudou a desvendar esse enigma com uma pesquisa muito aprofundada sobre a autora. Primeiro, entrando em contato com biográfos anteriores, depois conversando com parentes e amigos dela e em seguida visitando os lugares em que morou.
O que a biografia de Moser traz de novo? Além dessa pesquisa intercontinental, o jovem escritor norte-americano levantou duas abordagens novas sobre a vida da escritora: primeiro, a sua relação com a mãe e, em segundo, sua relação com o tempo em que viveu, principalmente contra a ditadura militar. Já era sabido do fato de Clarice se responsabilizar pela morte da mãe, mas o que não se sabia era que o que podia ser um simples sentimento de culpa era algo muito mais místico. A mãe de Clarice fora estuprada na Ucrânia durante os turbulentos anos da Guerra Civil Russa e contraiu sifílis. Nas aldeias geralmente se pensava que as doenças venéreas poderiam ser curadas com o nascimento de um bebê. Clarice nasceu e esperava-se que sua mãe se curasse com seu nascimento, mas não foi o que aconteceu. Com o falecimento da mãe, Clarice teria entrado em contato com seus diários e descoberto isso. Esse sentimento de culpa seria carregado por toda sua vida. Por isso, segundo Moser, Clarice se considerava não só uma "escritora falhada", mas uma pessoa que falhou em diversos outros aspectos.
Agora sobre a parte que nos toca: o contexto de Clarice. Moser lembra muito bem que Clarice vem para o Brasil num contexto de mudança com a Revolução de 1930 chegando. Sua carreira como escritora começa no Estado Novo. Clarice estava assistindo todas as transformações que vinham acontecendo com receio: enquanto na Europa se combatia o nazismo, no Brasil, Vargas e seus asseclas sinalizavam ora para o fascismo ora para os EUA. No período que vai de 1940 á 1950, Clarice sai do Brasil, segue o marido em suas missões diplomáticas. Quando retorna encontra um país dividido entre comunistas e direitistas. Apesar de existirem outros grupos, esses eram o que se sobressaíam na opinião pública. Em comum eles tinham o ideal de que para alcançarem seu objetivo tinham que tomar o poder, de qualquer forma. Essa polarização, provocada pela Guerra Fria, resultou no golpe de 1964. Interessante que Clarice tinha uma posição diferente, moderada, que não encontrava nem no comunismo (traumatizada pelas consequencias da Revolução Bolchevique em sua família) nem nas propostas da direita (por conta de seu conteúdo conservadoríssimo) como sua bandeira. Clarice protestou bastante contra o regime, junto com os seus grandes amigos Fernando Sabino, Marcos Scliar, Paulo Mendes Campos e Lúcio Cardoso.
José Castello
A contribuição de Moser é nos dar novos fatores para entender o existencialismo de Clarice, que chega a ser pessimista em algumas ocasiões, mas cheio de amor por outro lado. Antes, a obra de Clarice era entendida pela sua condição de imigrante, mulher e judia, agora ela também é entendida como filha, mãe e mulher de seu tempo.

Benjamin Moser segurando o livro de Hermano Vianna, O Mistério do Samba.
Alguns comentários sobre a mesa-redonda: ela foi extremamente reveladora e agradável. Todo mundo já ouviu falar de Clarice, mas são poucos os que a leram. Eu mesmo li muito pouco dela. Mas essa mesa-redonda e o livro de Moser são uma ótima introdução á sua obra. O personagem principal da fala deles era Clarice, mas o encontro foi conduzido como uma espécie de entrevista á Moser. Mas uma entrevista em forma de conversa, tal a descontração de todos ali. Castello, um especialista em Literatura brasileira, parecia apenas um colega do jovem pesquisador. Claudiney, embora não o conheça tanto quanto Castello, teve pequenas participações, mas interessantes. Moser, apesar de um pouco de dificuldade com o idioma, foi muito claro e simpático e creio que conseguiu fazer muitos presentes ali se interessarem por seu livro. Mais interessante ainda ver como pessoas tão diferentes, seja pela profissão, pela geração ou pela distância, conseguem se aproximarem, se tornarem tão íntimos, por causa da literatura. Talvez não seja literatura mesmo e sim bruxaria...

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