terça-feira, 17 de maio de 2011

O Cavalheiro da Triste Figura e o Mundo Moderno

Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) é considerado por muitos, como o crítico norte-americano Harold Bloom, como o inaugurador do romance moderno. O objetivo desse post é demonstrar o por quê.

Estátua de Cervantes feita por J. Vancell em Madrid.
Cervantes nasceu em Alcalá, num dos muitos reinos catalãos, mas teve uma vida que não se concentrou neles. Envolvido em um duelo com um fidalgo, ainda em condições misteriosas, acaba por matá-lo e para não ser preso foge para a Itália onde entra em contato com a produção artística italiana.
É importante dizermos que nesse momento a Península Itálica está vivendo o Renascimento, movimento que se caracteriza pelo resgate da cultura greco-romana e sua adaptação para o momento em questão. Assim, a geografia de Ptolomeu foi utilizada para ajudar a entender o mundo das navegações. A técnica dos escultores gregos foi utilizada pelos pintores italianos para desenvolver a noção de perspectiva na pintura. São inúmeros os exemplos.
Muitos dizem que o Renascimento foi a primeira tentativa de uma classe que começava a adquirir poder econômico com o crescimento das cidades e do comércio (navegações): a burguesia. Os renascentistas eram homens dedicados a se afastar do passado medieval, por isso buscavam na Antiguidade Clássica um modelo diferente de cultura - um modelo antropocêntrico (em oposição ao modelo teocêntrico). Mesmo assim, o renascentista não havia se livrado de Deus, pelo contrário: estudos recentes demonstram que o Renascimento foi apenas a reconstrução e expansão do humanismo medieval, que se interessava e muito pela complexidade do homem, mas admitia a figura de Deus como seu complemento. Assim, muitos humanistas do Renascimento não estavam criticando Deus com suas idéias, mas apenas a instituição conhecida como Igreja Católica (muitos consideram que a separação radical entre humanismo e Deus se dá no Iluminismo).
Mas voltemos á Cervantes: ele também era religioso, como todo bom catalão. Em 1570, a Igreja Católica convocou vários reinos e seus súditos para ajudar a combater o Império Turco-Otomano no que ficou conhecido como Batalha de Lepanto e Cervantes foi um desses voluntários. Durante a sangrenta batalha, o escritor teve sua mão amassada e desde então passou a ser conhecido como o manco de Lepanto. Quando retorna á Itália é capturado pelos turco-otomanos e levado para uma de suas bases na Argélia, onde ficou preso por cinco anos, quando finalmente conseguiu comprar sua liberdade. Solto, decidiu voltar para a Espanha. Lá se casou e lançou em 1597 seu livro mais famoso: Dom Quixote de la Mancha. Pouco tempo depois, o banco em que pagava os impostos faliu e ele foi preso mais uma vez, dessa vez por não pagar uma dívida absurda. Sai da cadeia uma ano depois e volta a se dedicar á seus livros. Uma continuação de Dom Quixote teria sido lançada por um impostor o que faz Cervantes publicar a real continuação. Hoje os dois livros compõem um só.

Falemos do livro agora: a história começa no povoado de La Mancha, onde Cervantes passou a viver desde que voltou á Espanha. Lá vive um fidalgo que adora ler livros e trovas de cavalheiros e princesas. Esse fidalgo, Alonso Quexano vulgarmente conhecido como Dom Quixote, acaba por se deixar tomar completamente por esse ideal cavalheresco e passa a se apresentar como um cavalheiro que pretende conquistar um amor da juventude, a bela Dulcinéia de Toboso. Para apoiar-lhe em suas loucuras conta com a ajuda de um sitiante bonachão, Sancho Pança, que em sua mente se torna um nobre e fiel escudeiro. Na tentativa de reencontrar Dulcinéia, D. Quixote acaba esbarrando em uma série de situações embaraçosas, como confundir um ladrão com um injustiçado ou moinhos com gigantes e mesmo ser zombado por alguns nobres. Ao final do livro, Quixote está exausto da aventura e completamente desiludido. Volta á La Mancha onde recobra a consciência pouco antes de vir á falecer, reconhecendo a sua loucura e a loucura do mundo onde tudo está de pernas para o ar.

Cena do musical O Homem de La Mancha (1972): Peter O'Tole como D. Quixote e James Coco como Sancho Pança.
O que Cervantes está querendo criticar é esse ideal cavalheresco ao fazer troça de Quixote. Percebemos no livro que os tempos mudaram, o cavalheiro não tem mais vez nessa sociedade. O mundo está incerto e ainda se acredita em bons cavalheiros. Ser um cavalheiro andante nesses tempos, para Cervantes, era ser louco como Quixote. Essa é a mensagem. Talvez a origem dela esteja na sua desilusão para com a Batalha de Lepanto, onde lutou voluntariamente, imbuído justamente desse ideal cavalheresco, para inutilizar uma mão e ver as conquistas da Liga Santa (reinos europeus unidos pela Igreja contra os turco-otomanos) iniciarem novas guerras entre os membros da liga por conta da ganância. Talvez Cervantes tenha percebido que ser cavalheiro fosse um conto da carochinha, um meio de manipular pessoas ingênuas. Isso provaria o desconcerto do mundo, tema aliás de outro literato que possuiu uma vida cheia de reviravoltas: Camões.
A crítica de Cervantes vêem em direção á esse ideal, fruto da mentalidade medieval, e os novos tempos em que ele vivia, os tempos modernos.


Gilberto Kujawski de Mello

Getúlio Vargas

Orson Welles
 Interessante como o livro pode ser utilizado para muitas questões. Getúlio Vargas, por exemplo, adorava o livro, pois enxergava nele a oposição entre o sonhador cavalheiro e o prático escudeiro e receitava á seus filhos que tentassem ser um pouco dos dois. Seu conselho era enquanto pai e enquanto político. Para ele, D. Quixote era um manual para se fazer política como O Príncipe, sendo que sua mensagem era um pouco diferente: o bom político é aquele que equilibra a ideologia (sonho de acabar com a injustiça) com o pragmatismo (a arte de improvisar com o que se tem). O crítico Gilberto Kujawski de Mello propõe como diretriz para se viver no mundo incerto da pós-modernidade em que entramos exatamente essa moderação entre o fidalgo sonhador e o escudeiro realista, assim evitaríamos o fundamentalismo e o niilismo. O cineasta Orson Welles se apaixonou por D. Quixote, pois via nele a metáfora da condição do artista: aquele homem que enxerga o mundo de uma maneira diferente e que por tentar fazer o impossível é taxado como louco. Aliás, Welles tentou fazer uma adaptação de D. Quixote que não foi muito bem recebida pela indústria cinematográfica. Ele deve ter se identificado com o fidalgo espanhol, lutando contra moinhos de vento na tentativa de cumprir o que acreditava ser sua missão: fazer esse filme.

Harold Bloom
O crítico Harold Bloom coloca Cervantes lado a lado com Shakespeare, tendendo mais ao primeiro que o segundo. Para Bloom os dois tem estilos diferentes, mas eles propõem a se falar do homem por meio da arte, seja no teatro ou na literatura. O Cavalheiro da Triste Figura é um sonhador, procurando um amor platônico que não existe e defendendo uma missão realmente impossível. Nós com certeza percebemos a loucura dele, mas, Bloom coloca essa pergunta, será que nós percebemos realmente o que somos? Ora, podemos ser tolos ou loucos sem nos considerarmos como tal. O romance, assim, questiona nossa própria consciência: afinal, somos tolos ou apenas pensamos que não?
Outro aspecto importante é que Cervantes, apesar de sua vida cheia de revezes, faz dessa tragédia e desse questionamento uma comédia muito inspiradora. É uma tema polêmico tratado com humor. É uma combinação que vai surgindo com o Renascimento e que tomará força com a Modernidade. Em comparação com Shakespeare, Bloom destaca a valorização da amizade através da relação entre o fidalgo e seu escudeiro, ao contrário dos personagens do bardo inglês que são geralmente sozinhos e cheios de angústia.

Resumindo, Dom Quixote é tomado como o primeiro romance moderno por sua abordagem cômica e humanista e por sua crítica aos ideais antigos e contemporâneos á Cervantes. Apesar desses aspectos datarem essa obra, ela ainda assim é universal, pois trata de alguns temas que são inerentes ao ser humano como a questão da utopia ou mesmo do sentimento de desconcerto do mundo. De qualquer forma, as reações que o livro provoca varia de pessoa para pessoa, por isso recomendamos, mesmo que isso parece "clichê" demais, que leia-o e tire suas próprias conclusões.

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