segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O descompasso

Costa e Silva, já presidente, ao lado de seu vice, Pedro Aleixo, e do Ministro da Justiça, Gama e Silva.
Em agosto de 1966 passava pelo estado do Amazonas o marechal Artur da Costa e Silva, candidato único á presidência da República. Foi saudado no dia 23 pelo então governador Arthur Cezar Ferreira Reis com um discurso no qual clamava-se por uma maior integração entre o Norte e o Sul, um desenvolvimento que não excluísse as chamadas áreas periféricas do Brasil.
"A Universidade brasileira, por exemplo é, realmente, a Universidade de que estamos precisando para as operações de desenvolvimento que importam na obtenção desse progresso. (...) Há seiva a utilizar. Há semente boa para a semeadura. Aproveite-a, Excelência. Plante as árvores. O momento é propício. A Revolução de 31 de Março, a que Vossa Excelência serviu desde a primeira hora, abriu perspectivas luminosas. Não deixe-as perdidas."
O regime que se instaurou no Brasil em 1964 tinha como bandeira acabar com a subversão e a corrupção, moralizar e desenvolver o país, no entanto, pouca coisa mudou. Se instalou no poder uma fração da elite brasileira francamente anticomunista com um grupo de militares com pretensões mais autoritárias (os chamados "linha-dura"). Com o tempo a "linha-dura" acabou ganhando poder, em boa parte graças ao marechal Costa e Silva que como meio de se promover, de se chegar á presidência soube manipular os desejos desse grupo radical.

Artur da Costa e Silva (1899-1969) era Ministro da Guerra durante o governo de Castello Branco, o primeiro marechal na presidência, aquele que ajudou a construir o regime, embora defendesse uma ditadura temporária, apenas para estabilizar o país segundo o discurso oficial. A ditadura foi sendo prolongada. Todos esperavam eleições presidenciais em 1965, mas em outubro desse mesmo ano Castello anuncia que não haverão eleições por enquanto. Na mesma época, um dos tantos Atos Institucionais do governo acaba com os demais partidos. Os políticos terão de se refugiar em dois partidos: Movimento Democrático Brasileiro, a oposição, e Aliança Renovadora Nacional, a situação.
Castello, que procurava passar uma imagem de homem de alto valor cultural, muito refinado - aliás, foi em uma das muitas reuniões no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro que conheceu o historiador amazonense Arthur Reis, se tornando seu amigo, amizade essa que culminaria na nomeação deste último como governador de sua terra natal - , na realidade, fez pouco para que a democracia voltasse. Por omissão, preferiu não punir os torturadores, denunciados na Missão Geisel (que tinha o propósito justamente de apurar denúncias de tortura por militares); chegou a se reunir com líderes da UNE, quebrando o protocolo da burocracia parlamentar, mas extinguiu a entidade em junho de 1964.
Marechal Castello Branco.
Em cima do muro, com um pé na democracia e outro na ditadura, titubeando entre o diálogo e a censura, Castello passou a ser reconhecido pelos próprios militares como um presidente fraco. Costa e Silva soube explorar essa sua fraqueza para se auto-promover, como se fosse um arauto dos militares que queriam aprofundar as perspectivas nada luminosas de 1964. Com fama de burro e bronco, Costa e Silva, no entanto, tinha pulso firme e entendia dos maquiavelismos da política (tanto que não é a toa que ele conseguiu com êxito sobressair-se mais que Castello Branco).
Lança sua candidatura pela ARENA. Como o MDB procurou se abster desse esboço de eleição, a vitória de Costa e Silva já era certa. Por isso, Reis em seu discurso lhe aconselha o que fazer com os rumos do Brasil. Como presente de aniversário, é declarado eleito em 3 de outubro de 1966, com 294 votos. Um fato curioso é que a eleição de Costa e Silva não inaugura só os anos de chumbo, já que a "linha-dura" agora tem total liberdade para fazer o que quiser, mas também é o marco da esquerda armada.
Aeroporto de Guararapes depois da explosão da bomba.

Em 25 de julho de 1966, durante a campanha presidencial, o marechal chegaria em Recife, mas por se atrasar um pouco na sua visita á outro estado preferiu ir de automóvel até Pernambuco. Contando que o futuro presidente do Brasil passasse pelo Aeroporto de Guararapes, um membro da Ação Popular colocou uma bomba dentro de uma valise em um roll do aeroporto. A bomba explodiu, matando duas pessoas e ferindo e aleijando quase uma centena de transeuntes. Até então esse era o primeiro atentado da esquerda brasileira.
Nos anos anteriores todas as demais tentativas dos grupos de esquerda de combater o regime não chegaram á tal nível, de promover um atentado onde inocentes pudessem ser mortos. É fato que parte da esquerda, distante do PCB que defendia uma linha de combate pacífico, já tinha escolhido trilhar o caminho das armas, como os guerrilheiros de Caparaó, entre Minas e São Paulo, e como a operação comandada pelo coronel Jefferson Cardim, no Rio Grande do Sul, podem demonstrar. Mas todas foram rapidamente desbaratadas pelo governo. A esquerda já estava armada, só não tinha ainda optado pela "guerrilha urbana" ou pelo "terrorismo".
O interessante é que a Ação Popular foi criada por rapazes vindos da Juventude Estudantil Católica e da Juventude Operária Católica, órgãos que nos anos 50 eram conservadores, mas um pouco liberais. O que fez eles deixarem a moderação e partir para um atentado desse porte? A resposta está no modo como a universidade era tratada pelo governo.
Flávio Suplicy de Lacerda.
Arthur Reis pede que o futuro presidente dê mais atenção ás universidades. O pedido de diálogo com as universidades é feito justamente pela falta do mesmo. Em parte, a culpa era do próprio governo. Castello Branco, o "militar culto e refinado", tinha como Ministro da Educação um obscuro reitor da Universidade Federal do Paraná que chamava estudantes de escorpiões e via o movimento estudantil como um bando de ladrões. Flávio Suplicy de Lacerda não se reunia com a UNE. Aliás, a UNE então estava sem sede própria, uma vez que na onda de manifestações de apoio ás causas "revolucionárias" um grupo de vândalos teria ateado fogo no antigo prédio da organização o incendiando por completo. O governo não teve nada a ver com o ocorrido, mas consentiu com o fato, na medida que não apurou quem estava por trás dos atos e não fez nada para encontrar uma nova sede para a organização (a desconfiança nascia da ligação que a UNE mantinha com o presidente deposto, Jango Goulart).
Autoritarismo na educação se unia ao oportunismo de alguns. É famoso o caso do reitor da antiga Universidade do Brasil, Eremildo Luiz Vianna, que ficou por anos a fio no cargo e com o golpe de 1964 demitiu 4 professores e 19 estudantes por suspeita de serem subversivos. O mesmo Eremildo Vianna foi investigado pelo governo e denunciado como fraudador das verbas da faculdade há anos, mas o processo foi arquivado por Suplicy de Lacerda. O reitor da USP, Antônio Luis Gama Silva, denunciou alguns de seus professores, dentre eles Florestan Fernandes para o Exército. Nos lugares dos professores e funcionários expurgados se colocavam amigos, gente de confiança e familiares. Ficava bem claro o tráfico de influência.

Também havia o contexto cultural. O mundo estava vivendo um momento onde conservadorismo e inovações estavam em choque, na chamada Era de Aquarius. Muitas certezas, construídas nas décadas anteriores, estavam sendo abaladas por uma juventude inquieta. 1968 é tido como o marco. Em Paris, estudantes universitários cansados do governo reacionário do presidente De Gaulle foram á rua protestar, enquanto nos EUA jovens que gostavam de música tinham seu contato com o movimento hippie no Festival de Música de Woodstoock. No Brasil, a experiência do Cinema Novo e dos Centros Populares de Cultura já davam a pista do que estava por vir. Isso tudo ajudou a criar uma estética da agitação, no dizer dos críticos da época; onde se unia a busca por um estilo novo com a cultura popular e um engajamento político.
Cada vez mais governo e universidade vão se distanciando, graças ao modo como o primeiro reagia ao segundo. Em 1964 temos a extinção da UNE, as principais faculdades passam a ser vigiadas por policiais, manifestações estudantis são reprimidas com pancadaria, líderes estudantis são presos. Essa radicalização do governo gera outra radicalização, a da esquerda, porque coloca estudantes insatisfeitos com o governo (o que não dizer que sejam todos comunistas) na mesma cela de comunistas históricos, militares contrários ao golpe e brizolistas. A Ação Popular contava com muitos jovens estudantes católicos como Herbert de Souza, o Betinho, mas também com sargentos e suboficiais, pessoas que entendiam de táticas militares. O que os unia era essa convicção de que a democracia não chegaria pelo diálogo com um governo que não queria diálogo.
O corpo de Edson Luis Souto sendo velado, com a bandeira do Calabouço.
Costa e Silva não ouviu os conselhos de Arthur Reis, pelo contrário, agravou o problema: em 1967 extingue as entidades estudantis estaduais, aprofunda a clandestinidade estudantil, além disso a "linha-dura" coloca mais peso nas repressões ás manifestações estudantis - numa manifestação em frente á embaixada americana, 28 estudantes são mortos, sem falar dos 300 alunos da UFRJ presos em outro protesto. O clímax desse desencontro pode ser considerado a morte do estudante paraense Edson Luís Souto em 1968, num restaurante para estudantes pobres no Rio de Janeiro conhecido como Calabouço. O motivo da confusão foi um protesto contra o aumento do preço da comida do Calabouço. Na batida policial, um tiro acerta Edson e o outro estudante Benedito Dutra. Os estudantes velam o corpo dos dois, tidos por eles como os primeiros mártires do movimento estudantil da época.
No final de junho uma grande manifestação é feita na Cinelândia, a Passeata dos Cem Mil, reunindo artistas, estudantes e até políticos, todos contrários aos métodos de repressão do regime. Aos poucos a classe média começou a perceber que a "linha-dura" estava dando um rumo estranho ao país, saindo de uma ditadura temporária para uma possível ditadura eterna. A última sinalização desse desejo se deu quando o AI-5 foi promulgado em dezembro de 1968. O pretexto foi um discurso polêmico do deputado Márcio Moreira Alves, pedindo que as mulheres boicotem seus namorados (se por acaso eles pertencerem ás Forças Armadas) e zombando do Dia do Soldado, uma vez que a Câmara dos Deputados não deixou que ele fosse punido. Tal ato demonstrava infiltração da subversão dentro do próprio governo, deveria ser feita uma limpeza, criando um governo mais coerente, sem objeções ao grande projeto de desenvolvimento e moralização que o regime vinha construindo.

Não é a toa que a universidade foi se tornando aos poucos a oposição velada ao governo. Apesar de com os constantes expurgos entrarem em seus quadros muitos oportunistas, ainda existia muitos descontentes com os rumos da política nacional, principalmente no ramo das Ciências Sociais (Filosofia, História, Pedagogia, Sociologia, Antropologia, etc). Aí está a origem da costumeira imagem do sociólogo ou historiador como o marxista de carteirinha, o contestador por excelência do status quo. Enquanto isso, se investia mais nas Ciências Exatas, principalmente na Engenharia, como forma de ajudar a dinamizar o mercado de trabalho e dispor de profissionais para construir a infra-estrutura que se desejava erguer, o Brasil Grande das obras faraônicas.
Como começamos esse artigo em Manaus é justo que falemos um pouco dos reflexos desse momento na capital do Amazonas. Bem, no atual estágio da minha pesquisa posso apresentar só algumas considerações: a primeira é de que os expurgos universitários também chegaram no Amazonas. O caso mais emblemático, com toda certeza, é do padre Luiz Ruas que além de ser pároco, poeta e cronista (vinculado ao Clube da Madrugada) também era professor da Faculdade de Filosofia do Amazonas. Preso em 1964, na onda de prisões de elementos considerados subversivos, Ruas foi liberado meses depois do golpe, mas guardou por toda sua vida essa péssima experiência. Continuou lecionando, mas com uma menor carga horária, em comparação a que desfrutava antes.

Mesmo detendo o pioneirismo por sediar a primeira universidade do Brasil, fundada em 1919 por Eulálio Chaves dentre outros, após a crise da borracha na década de 1920 a Universidade do Amazonas se esfacelou em uma série de pequenas faculdades, sendo a Faculdade de Direito uma das mais forte e prestigiada delas. Dela saiam os bacharéis, o título que a elite tradicional esperava que seu filho tivesse para ter acesso aos mais honrados empregos disponíveis. Mas havia também a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, onde o prestígio era menor, mas a agitação menor. Nos primeiros dos anos 60, a agitação não tinha um cunho tão político, embora tenham se envolvido com a campanha dos Centros Populares de Cultura (promovendo uma Semana Cultural em Manaus com músicas e peças de teatro de fora do estado). É importante ressaltar o seu vínculo com o movimento Clube da Madrugada, que desejava desprovincionalizar Manaus, retirá-la de seu marasmo cultural. Um dos membros do Clube era o jovem estudante marxista Francisco Vasconcelos, que foi presidente da União dos Estudantes do Amazonas no começo dos anos 60.
Francisco Vasconcelos hoje mora em Brasília.

A partir de 1965, já na gestão de Manoel Alexandre, a UEA patrocina a formação de um grupo de teatro chamado Decisão (inspirando-se no show Opinião de Nara Leão, João do Valle e Zé Kéti) que ensaia produções teatrais ousadas. Mais tarde passaria a se chamar Teatro Universitário do Amazonas e teria seu fim com a baixa audiência de peças tanto do teatro político de Brecht como do teatro do absurdo de Ionesco e, claro, pela pesada vigilância do governo, que chegou a impedir a encenação da peça Zona Franca, Meu Amor de Márcio Souza, em 1968. A crítica ao governo já é notória.
Em 1968, a Zona Franca estava começando a ser instalada em Manaus e o AI-5 tinha destruído os programas de rádio Dimensões do Clube da Madrugada e Voz do Secundarista da União dos Estudantes Secundaristas do Amazonas, todos da Rádio Rio-Mar. O estudante de Direito Internacional Nestor Nascimento estava no Rio de Janeiro, onde presenciou a morte de Edson Souto. A partir daí e das torturas que viria a sofrer a seguir se engajaria na luta contra a ditadura, levando esse engajamento até Manaus. O PCB de Manaus ainda não sabia qual caminho tomar, embora a diretriz do Partidão pra todo país fosse a via pacífica. As manifestações eram pequenas e quando reprimidas, variando com o bom humor dos policiais, temia-se que os estudantes presos fossem levados para a prisão da Ilha de São Vicente, onde ficava o quartel do Grupamento de Elementos de Fronteira.
O peso dos anos de chumbo, portanto, também recaiu sobre Manaus. E as faculdades sentiram isso. Os estudantes de Manaus, os que desejavam ficar por aqui, enfrentavam dois problemas: encontrar mercado de trabalho numa cidade ainda provinciana e se livrar da forte repressão do governo militar. Ao primeiro, a Zona Franca parecia ser uma boa promessa de esperança. Ao segundo, contudo, a solução estava longe de vir ainda, justamente pela desarticulação dos movimentos de esquerda e estudantil na época. Talvez a fragmentação das faculdades tenha ajudado nisso. Talvez o fraco patrulhamento das faculdades e as poucas prisões não tenham criado, como aconteceu no resto do país, aquele vínculo que criou a esquerda armada, o contato entre os demais descontentes do regime. Não sei. Ainda é cedo para falar isso, melhor, para provar.

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