quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Amazonas, Amazonas II

Enfim vamos analisar um pouco a já mencionada obra de Glauber Rocha para o Governo do Estado do Amazonas. O filme se inicia com imagens sobre a floresta, o rio. A narrativa em off fala sobre a conquista da selva pelo português e os mitos que a envolvem. Estes elementos nos reportam á visão idílica da história da região, aquela visão que coloca o homem, diante da natureza grandiosa, brutalizado pelo ambiente, quase como parte dela. O problema dessa visão, como já falamos aqui antes, é que ela imputa ao caboclo características passivas, isso quando não admite em outras oportunidades que a Amazônia é uma região "á margem da história".
A narrativa (recurso amplamente utilizado por Glauber na maioria de seus filmes) fala da colonização e dá um salto para o boom da borracha. O que une tais momentos? A ocupação da Amazônia. Bem, então o homem não é tão passivo assim, como podia-se inferir da fala anterior. Entramos, contudo, em outro ramo perigoso da história oficial local: a glorificação dos grandes feitos. Entre a colonização e a economia da borracha existe um imenso vácuo, ele é deixado de lado porque não há nada de digno (segundo o critério dos historiadores), nada de grande, de edificantes para ser relatado.
Continuando: a ocupação é feita, mas em grande parte por migrantes. Glauber visita uma comunidade agrícola, fundada por migrantes nordestinos (não se sabe ao certo o nome da comunidade: a placa, que aparece atrás dos entrevistados, está um pouco avariada, mas pode-se ler "Vinhas", embora pareça que exista mais alguma coisa escrita). Glauber entrevista o mais velho dos ribeirinhos. A selva mais uma vez chama mais atenção no enquadramento da câmera: quase não se pode ver o rosto dos dois homens sentados no tronco caído.
O ancião fala então da sua jornada: saiu de sua terra, veio para o Amazonas, passou por Manaus, trabalhou com muita gente, veio para esse canto de terra e planeja ter um terreno só seu. Antes que termine de contar seus anseios sobre o futuro, o senhor é interrompido por Glauber: "Corta!"
Casarões em ruínas em Manaus. Foto:  equipe AFINSOPHIA.

A câmera passeia pelo rio, encontrando barrancos com gado e outros com casebres. Chega ao porto de Manaus e passeia pela cidade. Prédios antigos relembram o fausto passageiro da borracha. Ruas apinhadas de gente e de quitandas, acompanhadas de taperas e alguns barracos denunciam a atual situação da cidade. 
Finalmente o documentário parece ter chegado no tempo-presente, após sair da colonização e do boom da borracha (viagem simbolizada pelas imagens da selva, da extração do látex, dos sobrados, do porto e das ruas). O narrador atesta o que as imagens demonstram: Manaus, depois de tanta riqueza e glória, se encontra abandonada e estagnada. "Á espera de um desenvolvimento que não faça dela apenas peça acessória". O Amazonas quer voltar aos tempos de glória, mas não quer ser enganada de novo, como aconteceu com a borracha. É explícito o discurso de valorização da Amazônia.
Trecho da Rodovia Manaus-Itacoatiara (AM -010) hoje.

Alguns minutos depois, sinais de que o Amazonas está no "rumo certo": a conclusão da estrada Manaus- Itacoatiara, os pastos de gado bovino, etc. (Não se fala muito na Zona Franca, embora ela tenha sido ressuscitada por Castello Branco em 1966. Talvez porque ainda havia muitas dúvidas sobre sua implementação foi melhor deixá-la de lado). Se as lendas e a borracha representam o passado, um passado glorioso e honrado, e o presente simboliza o contrário, o marasmo e o abandono, o futuro, por outro lado, se sinaliza cheio de esperanças. Esperanças trazidas pelo desenvolvimentismo, a ideologia resignificada pelos governos militares. Estradas, colônias agrícolas, fazendas de gado: de fato, tudo isso a ditadura militar implantou na Amazônia, como forma de desenvolvê-la e não perdê-la para o comunismo internacional.

Assim sendo, o documentário tem uma linha temporal que utiliza a visão tradicional e oficial da História do Amazonas e que, de quebra, também se encontra com o programa de governo da ditadura militar. As palavras ditas pelo narrador parecem terem sido escritas pelo governador de então, Arthur Cézar Ferreira Reis. O grande tema de Arthur Reis era a colonização amazônica e sua grande tese a de que o português na Amazônia operou uma das iniciativas mais heróicas e triunfais do mundo: ocupar e civilizar o inferno verde.
Glauber em entrevista á Joaquim Marinho, na época correspondente do Jornal do Commércio (se não me engano) teria dito que teve total liberdade de produção do filme. Em se tratando de um filme de propaganda para o governo estadual e dentro de um contexto de ditadura militar, essa liberdade é muito relativa. Acredito que Reis tenha, pelo menos, dado a linha principal do filme.
Arthur Reis

Outro ponto interessante é que nos anos 60 era muito comum no cinema nacional produções que falavam de temas populares, mas por um prisma um tanto prosaico. O crítico Jean-Claude Bernardet chamou essa característica de "modelo sociólogico": faz-se o filme em cima de uma tese, as entrevistas são usadas somente para comprovar essa tese, geralmente descrita (usando-se a narração em off) em tom austero e sisudo. No campo do documentário, o cinema não estava tão ousado como no mundo da ficção, renovada pelo sopro do Cinema Novo. Talvez, portanto, a falta de intimidade de Glauber com esse ramo e as limitações do "modelo sociólogico" também tenham contribuído para Amazonas, Amazonas ser esta produção um tanto carente de crítica.
Glauber era um cineasta comprometido em entender o subdesenvolvimento. Em todas suas entrevistas, em todos seus artigos, ele reafirmava isso. Havia também a questão de se encontrar um estilo brasileiro, mas ela se entrelaçava com a discussão sobre o subdesenvolvimento. O realizador baiano o entendia como produto de nossa colonização e de nossa condição como país capitalista (como pode se ver, entre suas leituras estavam desde marxistas até pensadores do ISEB). Então, um filme que glorifique a colonização e defenda o desenvolvimento capitalista é de longe a negação de tudo que pensava e que vinha fazendo. Não é segredo nenhum entender porque ele sempre renegou esta e sua obra posterior de sua filmografia.
Ivens Lima apresenta Glauber na sua palestra no GEC. Foto: Aurélio Michiles.
Este documentário possui muitas limitações, algumas duvidosas, mas continua sendo um banquete para os historiadores. Ali encontramos um discurso de uma época, de uma elite e de um governo. Encontramos também imagens sobre o Amazonas e Manaus que nos ajudam a materializar o contexto pelo qual ambos vinham passando. Enfim, é uma fonte esperando as perguntas certas serem feitas.

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