quinta-feira, 7 de julho de 2011

Per Áspera pro Brasilia

O título da postagem de hoje significa em bom latim: "Todo sacrifício pelo Brasil" e está inscrito no brasão da cidade de Taubaté. Hoje falaremos sobre o significado desse brasão.

Em primeiro lugar, temos que saber quem o fez e quando. Até onde sabemos, o brasão foi encomendado pelo industrial e historiador Félix Guisard Filho quando este era prefeito da cidade em 1926 ao pintor e desenhista (especialista em heráldica, arte de construir escudos e brasões) José Washt Rodrigues. Antes, Gastão Câmara Leal, quando fora prefeito na década de 1910, também tentara fazer um brasão para a cidade, mas não foi oficializado.

Afonso D'Escragnolle Taunay
Esse brasão, contudo, contou com a participação do amigo de Guisard Filho, o famoso historiador paulista Afonso Taunay, na época diretor do Museu Paulista (hoje, Museu do Ipiranga). Alguns símbolos foram aproveitados do brasão de Câmara Leal, como os ramos de café e as chagas de Cristo (no pequeno escudo na torre do meio, acima do escudo maior). Outros foram colocados justamente por Taunay, como a cordilheira simbolizando a Serra da Mantiqueira e as três coroas simbolizando as cidades fundadas por bandeirantes taubateanos em Minas, além da Mantiqueira.
Em 1931, Taunay pediu para inserir novos símbolos como a roda dentada com asas, símbolo da indústria e do progresso da cidade, unindo os ramos de café e arroz, setor da agricultura responsável por sustentar a cidade depois da crise do café, logo abaixo do escudo maior. O brasão foi finalmente oficializado em 1950 pelo prefeito José Luiz de Almeida Soares.
Vamos aos símbolos: o escudeto que falamos anteriormente, com as chagas de Cristo, simboliza o padroeiro da cidade - São Francisco das Chagas. O mural á que ele está pregado é um símbolo padrão, se refere á cidade de uma forma geral. O escudo maior e central possui a Serra da Mantiqueira, como dissemos, coroada pelos esforços dos bandeirantes, e abaixo dela o Rio Paraíba do Sul. Logo depois uma pequena aldeia que simboliza o núcleo indígena de onde a cidade tirou seu nome: Taba 'eté. O escudo central é ladeado por dois personagens considerados fundamentais na história da cidade: o bandeirante e o dragão da Independência. Atrás de cada um temos o ramo de um produto que sustentou a cidade: o café e o arroz, respectivamente. Abaixo do escudo temos a roda dentada os unindo, simbolizando o progresso vindo da indústria e do comércio. Um pouco acima, a faixa lembra do patriotismo local com o dizer "Per Áspera pro Brasilia".
Estátua de Jacques Félix na entrada da cidade: o bandeirante como herói cívico.
Agora vamos interpretar com mais afinco esses símbolos. A maioria deles se remete ao período colonial, isso porque nesse período segundo muitos historiadores da época (principalmente Guisard Filho) a futura cidade tinha dado sua maior contribuição ao Brasil através das bandeiras que partiram de lá. Nas duas primeiras décadas do século XX, as pesquisas históricas sobre o passado colonial em São Paulo se uniram ao espírito nativista que o estado vinha construindo desde os anos finais do Império. Esse regionalismo gostava de explicar o sucesso de São Paulo através da bravura de seus ancestrais, os bandeirantes. Os bandeirantes eram vistos como heróis por terem ajudado a integrar o Brasil com suas expedições e desenvolvido o futuro estado com o dinheiro de suas entradas, mas principalmente por demonstrarem sentimentos de patriotismo, de independência, de bravura, etc. Sentimentos esses que eram tidos como característica principal dos paulistas no decorrer da história, a paulistanidade.

Monumento ás Bandeiras de Victor Brecheret: um dos símbolos da "paulistanidade".
Esse regionalismo está vinculado á um projeto político: São Paulo tencionava chegar ao poder federal durante a República Velha. Apesar de conseguir fazer com que o governo atendesse aos seus interesses, São Paulo queria ser realmente representada no governo e não apenas ser atendida. Esse projeto político foi defendido inicialmente com a Proclamação da República, mas foi perdido com a Política dos governadores de Campos Sales que transformou a política em clientelismo, troca de favores. Na década de 1926 surge um partido de oposição ao velho PRP, o Partido Democrático, que retoma a proposta. Para não ficar de fora, o PRP também se arroga o título de representante da paulistanidade. Esse regionalismo culminará, dentre outros fatores, na Revolta Constitucionalista de 1932.

D. Pedro II em vestes reais.
Mas voltando aos símbolos, outro personagem se ressalta: o dragão da independência. Enquanto o bandeirante era um elemento ao qual todo paulista recorria na época, o dragão da independência é algo muito mais específico á Taubaté. Taubaté, durante as revoltas regenciais em 1840, se colocou como fiel ao governo imperial, conquistando com isso sua simpatia. A elite taubateana desde então possuía a ilusão de ser a base do governo imperial. Essa ilusão aumentou com o desenvolvimento dos cafezais, a principal força economica do Brasil no século XIX. Os títulos concedidos pelo imperador á fazendeiros parecia garantir isso. Mas a Abolição demonstrou o contrário. O que salvou a cidade depois do fim do Império foi a rizicultura, praticada principalmente pelo frades trapistas na Fazenda Maristela em Tremembé, e o comércio. A indústria veio a crescer, tomar porte, somente na década de 1920, quando o brasão foi feito. (Apesar de ter sido fundada em 1891, a CTI só ganhou força na década de 1920 com recursos vindos de firmas inglesas e do governo federal).
Curioso que no momento em que o Brasil tentava parecer moderno, tenha sido feito um brasão com um fundo monarquista, que até então era símbolo de atraso. A monarquia, contudo, para os taubateanos, simbolizava uma época dourada, um tempo em quen Taubaté se tornou um dos sustentáculos do Brasil, época que somente foi retomada anos depois pela indústria (a roda dentada com asas). Talvez por isso o brasão só tenha sido aprovado na década de 1950 quando o monarquismo parecia algo muito distante, um saudosismo. Interessante que Guisard Filho foi um dos principais arquitetos dessa visão da história taubateana como uma série de apogeus e decadências. Foi ele inclusive que associou a nova época dourada á indústria.
Coroando toda essa salada de símbolos regionalistas, encontramos a faixa que demonstra o patriotismo da cidade. Todos os esforços e resultados atingidos pelos taubateanos no decorrer da história seriam então pelo Brasil, seu sacrifício seria pelo Brasil. É uma forma de patriotismo associada ao nativismo. Algo que não era nada anormal na República Velha, onde os estados tinha autonomia graças ao federalismo e o Estado atuava como uma espécie de mediador de interesses. A ação dos bandeirantes foi para integrar o Brasil, a ação dos barões do café foi para sustentar o Brasil e a ação dos industriais é para renovar o Brasil.
Pronto, aí está: graças á um brasão conseguimos dissecar o discurso oficial taubateano.

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