sábado, 9 de fevereiro de 2013

HISTÓRIAS NÃO PERECÍVEIS II


Por Cainã Ito e Vinicius Alves do Amaral

Enquanto o fim do mundo se anunciava na geladeira, uma voz se levantou da gaveta de legumes: “Quietos, seus maricas!”. Era o Coronel Berinjela. Balançando sua coroa de quatro pontas, que acreditava ser a prova de sua patente, Berinjela seguia dando ordens:

-Todos aos seus postos! Molhos, para a porta! Panelas, segunda prateleira! 
Na gaveta, as cebolas engoliam o choro sob o olhar atento do vegetal comandante. Em alguns minutos a agonia se dissipou: alguém abriu a geladeira e retirou do congelador os blocos de gelo. Após isso, a refrigeração foi ligada de novo. Todos suspiraram aliviados, menos o profeta feito de trigo e mofo.
-Nunca vi um bando de alimentos tão nojento e deprimente! Será que a coragem já passou da validade aqui? Claro, isso não serve pra você, lata de atum. Qual o nosso lema?
-Digestão e dignidade, repetiam enfadonhos.
-Então o que vamos fazer?
-Ser digeridos com dignidade.
-Eu não ouvi!
-Ser digeridos com dignidade, comandante!
O Pimenta não poupava o bom coronel de observações ácidas. Quem era ele para mandar em todos os alimentos? Mas Berinjela tentava apenas colocar ordem na casa. Quando se vive assim, podendo ser devorado a qualquer hora, desespero é o que não falta.
A calmaria se manteve por pouco tempo, ouviam-se vozes de pivetes. Sim, isso mesmo, crianças para o desespero das pobres guloseimas. As gelatinas amoleceram, pois sabiam que suas ingestões estavam próximas. Foi então que começaram a lançar suas ultimas palavras
- Morango, eu nunca te amei tanto como amei a framboesa
O limão de tão azedo acabou por revelar
- Sim, eu sou diet.
O abacaxi esbanjou um sorriso maroto. As mãos afoitas invadiram a prateleira. Minutos depois uma delas devolvia uma fôrma, pasmem, com meia gelatina de uva ainda presente. O tutti-frutti apenas ria maleficamente:
-tutti, tutti, tutti, rá, rá, rá...

Ah, estou mutilada, gritava o sabor de uva aos prantos. Justo quanto ela estava se recuperando novas mãos surgiram.
Nem tão novas assim: pela fisionomia já podiam ser reconhecidas como pertencentes aos esfomeados parentes do interior dos donos da casa. A gelatina mutilada foi a primeira vítima.
Em seguida, o pote de feijão se foi. Na parte da noite, foi a hora das panelas. A garrafa d’água ouviu os donos falarem que seria feito algo especial no almoço. Próximo do meio-dia, o queijo,ralou-se, o molho de tomate pobre fim virou molho de salsicha , e a carne sem do foi abatida e moída. Por fim, o Coronel Berinjela foi retirado de seu quartel-general.
-Lembrem-se: digeridos com dignidade!
Nunca mais foi visto. Possivelmente, a visita foi presenteada com uma lasanha de berinjela no almoço. Foi impossível não segurar as lágrimas, embora ninguém chorasse histericamente. O bom coronel não queria ver cena na hora de sua partida. Na gaveta, o Chuchu tentava consolar seus colegas: “Pelo menos ele foi para o forno...”.

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