terça-feira, 2 de outubro de 2012

O fetichismo da Internet

APRENDER A APRENDER
Celso Castro
O Bibliotecário, Giuseppe Arcimboldo.

Para escrever seus Ensaios, publicados a partir de 1580, o filósofo Michel de Montaigne utilizou quase todo o patrimônio literário greco-romano disponível: menos de trezentos livros. A familiaridade de Montaigne com esse acervo era tamanha que, comparando-se trechos citados nos Ensaios com os originais, podem-se perceber pequenas alterações que sugerem que ele conhecia vários desses livros de cor. Em 1748, Montesquieu publicou Do espírito das leis consultando sua biblioteca pessoal de 3.000 volumes. À média de um livro por semana, levaríamos 55 anos para ler esse total, que podemos tomar como o quase-limite daquilo humanamente possível de se ler ao longo de uma vida. Avançando um século e meio, nos deparamos com uma cena em que o sofisticado Jacinto de Tormes, personagem de Eça de Queirós em A cidade e as serras, fica paralisado diante de sua biblioteca de 70 mil livros. A simples tarefa de escolher um livro para se distrair antes de dormir torna-se sobre-humana perante tamanha oferta de informação.
Contemporâneo de Jacinto, o filósofo Georg Simmel chamou a atenção para essa desproporção crescente entre a cultura objetiva -  aquele acervo material e imaterial disponível no mundo - e a cultura subjetiva, entendida como a proporção desse acervo que, individualmente, podemos processar. Enquanto a primeira cresce sem parar, a capacidade de os indivíduos cultivarem a si mesmos através da interação com as coisas permanece constante. Nesse sentido, à medida em que o acervo à sua disposição aumenta, o indivíduo pode aproveitar uma parcela decrescente dessa riqueza.
Com a popularização da imprensa e, principalmente, com a enorme quantidade de informação disponível pela Internet, a fenda entre nossa capacidade de aprendizado e a quantidade de informações que podemos digerir aumentou exponencialmente, e continua a aumentar sem cessar. A desorientação daí decorrente leva facilmente a um fenômeno que chamo de "fetichismo da Internet": a falsa ideia de que a rede tem vida própria, independente. Mecanismos de busca na Internet tornam-se uma espécie de oráculo moderno: muitas vezes, acreditamos que todas as respostas estão à distância de um clique do mouse.
Não se trata de negar a enorme potencialidade desse acervo de informações à nossa disposição. O que cabe é perguntar como agir, nesse cenário em que podemos processar apenas uma fração decrescente daquilo que existe para ser apreendido. É preciso privilegiar, no processo de formação intelectual, a importância do espírito crítico e a necessidade constante de aprendizado. Aprender é um processo de alargar a percepção de nossa ignorância daquilo que não sabemos, mais do que um ato de se acumular conhecimento. O importante é "aprender a aprender" constantemente, estimulando a imaginação criadora. É esse processo que permite lançar pontes sobre a fenda crescente da cultura humana.

___________________________________________________
CELSO CASTRO É PESQUISADOR E DIRETOR DO CPDOC DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS.

In: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL. n. 03, Setembro de 2005, p. 98.

Nenhum comentário:

Postar um comentário