sábado, 19 de maio de 2012

Requiém para Rosseau

Na entrada do Cabaré um homem muito bem trajado disparava frases jocosas sobre outro que se encontrava do outro lado da rua. Não atinei da primeira vez, mas depois percebi que se tratava de Voltaire, o grande guia espiritual dos iluministas. O outro sujeito não reconheci.
Se aproximou de mim Madame Clio. "Que triste espetáculo, não acha?" Eu concordei, mas tive que confessar que não fazia ideia do que se tratava. "Pois você não sabe? Ali estão dois adversários de peso: Voltaire e Rosseau". Rosseau? O grande nome do Iluminismo? O criador do conceito de bom selvagem e de contrato social? Não pude acreditar, ele estava tão acabado.
Ora, pensei que ambos tinham uma boa relação. "Longe disso!" Voltaire sempre foi ácido com todos. Que o diga o Antigo Regime francês que recebeu dele todo tipo de críticas - de obscurantista á assassino. Se interessava por tudo. Não é a toa que se envolveu na empreitada dos enciclopedistas, a primeira tentativa de sistematizar todo o conhecimento até então em livros. Era um bom escritor, mas era melhor ainda como panfletário. 
Rosseau para muitos é um enigma ainda: não se considerava iluministas, mas cristão e admirava mais á música que as letras. Isso não impediu que fosse um bom escritor também. O que o fez atrair o ódio dos enciclopedistas foi o seu escrito Discurso sobre as Ciências e as Artes (1749). Nele dizia que tudo o que o homem criou e produziu até agora, seja na ciência ou na arte, só o piorou. "Imagine, isso foi um soco no estômago dos enciclopedistas!"
Para Voltaire a razão levaria o homem ao Progresso (isso, com P maiúsculo mesmo!). Para Rosseau seria a ética, mas não qualquer ética. A regra de conduta agora tinha que ser inspirada no primeiro momento da Humanidade, porque o homem no princípio era bom, mas foi corrompido pela sociedade. Voltaire diria que isso seria pedir para voltarmos a andarmos em quatro patas, mas Rosseau na realidade não queria voltar ao passado.
Em Do Contrato Social (1769), o filósofo defende que devemos ser pautados por um acordo entre todos que na realidade queria dizer mais ou menos o seguinte: eu respeito o seu espaço, a sua liberdade, se você respeitar o meu. É a famosa regra de ouro: não faça com o próximo o que não quer que faça contigo. Nos primeiros tempos da História, o homem era livre e dono de si próprio, mas hoje isso se torna mais difícil. Só por meio do contrato social, segundo Rosseau, podemos ser livres e donos de nós mesmos.
Bem, as ideias dele demoraram a ser bem recebidas. A Igreja achou muito ousada essa sua tese do contrato social, uma vez que substitui a boa e velha moral cristã (onde já está estabelecido o que é certo e o que é errado) pelo respeito mútuo. O Antigo Regime não gostou de ser chamado de corrompedor do espírito humano, bem como os iluministas não gostaram de que se criticasse o conhecimento e a razão. Moral da história: mal visto por todos, Rosseau amargou em depressão. Passou os últimos anos de sua vida distribuindo panfletos tentando acabar com essa imagem que deixaram dele.
Perguntei por que ele nunca entra no cabaré e Madame Clio disse que há dois motivos: primeiro, considera essa um ambiente muito mundano para se discutir certos assuntos, segundo, pela presença de Voltaire. O ressentimento entre ambos ainda é enorme, gigantesco. Perguntei depois por que ela, sendo a dona do cabaré e prezada pelos iluministas, não tentou esclarecê-los sobre os reais valores de Rosseau. "Eu já tentei, mas parece que eles estão cegos com tanta razão".
Até então pensava que os iluministas eram intelectuais "cabeça aberta", mas pude perceber que eles também tinham seus defeitos e a sua fé inabalável na ciência, o que fazia com que eles desmerecessem todos aqueles que não a defendesse, é um deles. Pensei em Rosseau: as Luzes para ele se transformaram em trevas. Que triste espetáculo...

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