terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O Cabaré de Madame Clio

Que ironia! Em frente ao sisudo e sem graça Departamento de Efemérides e Evolução Histórica se encontra a mais colorida e alegre casa de shows da cidade. De fachada modesta, tirando o afresco na entrada (presente de Eliseu Visconti), o Cabaré de Madame Clio em tudo contrasta com o prédio de portas cinzentas. Enquanto em um só entram engravatados ou heróis embalsamados, aqui todo mundo é bem vido, desde o astronauta até o peixeiro.
No enorme prédio, cubículos onde se produz efemérides em larga escala ou qualquer outro assunto burocrático. No sobrado relativamente pequeno, o térreo é dedicado aos shows e ás esbórnias, enquanto o primeiro andar se encontram os quartos de suas artistas. Na verdade, cabaré não define muito bem o estabelecimento: ele tem de tudo um pouco. Serve-se bebidas, acontecem shows musicais e saraus, joga-se dominó e carteado. Enfim, é bem eclético. Claro que a maioria vem pelas coristas, mas o time dos apreciadores de uma boa conversa também se fazem presentes.
Difícil dizer quando ele foi criado. Dá a impressão, pelo menos para mim, que sempre existiu. Suas paredes parecem serem anteriores ao tempo e ainda assim sempre vivas. Estranha sensação. Tomei conhecimento de sua existência assim que entrei na faculdade, há cinco anos trás. Numa noite ingrata eu e meus amigos fomos chorar nossas mágoas no mais distante boteco que achássemos. Encontramos o Cabaré de Madame Clio e a noite se mostrou não tão ingrata assim. Desde então sou um assíduo frequentador.
Sou fã das meninas e vez ou outra tieto algum ídolo que eventualmente dá as caras por lá. Mas o que mais me cativa é o clima do ambiente. Como eu disse é algo totalmente transcendental. Tem cheiro de várias épocas. A luz da casa parece tornar tudo mágico. Enfim, talvez esteja divagando demais.
Ah, esqueci de falar da dona! Desculpem a gafe. Bem, Madame Clio é uma balzaquiana (pelo menos é o que aparenta ser) e está muito longe de ser uma cafetina cruel ou uma matrona cozinheira. Está mais para uma senhora da alta classe: em tudo é elegante, nos gestos e na fala, e o melhor, não tem nariz arrebitado. Tão humilde e carinhosa que muitos já a chamam de Dinda. Agora, sua nacionalidade gera polêmica: já peguei Delgado de Carvalho e Toynbee num arranca-rabo. Um pra provar que ela é grega e outro que é francesa.
A coisa esquentou mesmo quando Febvre entrou na briga e comparou ela com a Marianne da Revolução Francesa. Aí foi patriota voando pra tudo quanto é lado tentando defender o seu quinhão de orgulho.
Ela é a dona da casa. Não sei quando ela teve a brilhante ideia de montar esse cabaré, mas sei que tino para essas coisas ela tem e de sobra. Tudo passa pelo seu crivo. Em tudo dá um pitaco. E desses pitacos saem os momentos grandiosos da casa. Quando eu ainda era novato aqui, ela iniciou uma série de shows temáticos por noite: Antiguidade, Povos Indígenas, Califados, etc. E a empreitada continua até hoje. Ontem a peça apresentada se chamava "Essa pós-modernidade travessa!". Foi um teatro de revista muito... tropicalista.
A presença de Madame é o que dá o tom ao recinto. Sua regra de ouro é "ouvir, discutir, mas preservar o respeito". Quem entra querendo detonar alguém é logo jogado para fora pelos clientes fiéis ao regimento interno da casa. É esse respeito que faz com que pessoas tão díspares como um pintor surrealista e um soldado espartano dividam a mesma mesa. Respeito é a primeira regra, hospitalidade a segunda. Todos são bem vindos, como tinha avisado acima. E em terceiro lugar, a diversão. Segundo ela própria me garantiu uma vez, a intenção do seu cabaré é justamente esse, lembrar o lado lúdico da vida. O lado que os vizinhos em frente á sua casa se esqueceram de cultivar.
Eu gostaria de contar os muitos causos que ouvi lá, sem falar das cenas que presenciei, mas vou deixar para outra oportunidade quando tiver mais tempo. Até lá, fica aqui a dica: se quiserem se divertir e pensar, já sabem onde é o lugar!


NOTAS:
-Clio: A musa da História e da Criatividade, segundo a mitologia grega. Celebra as realizações dos homens.
-Eliseu Visconti (1866-1944): pintor italiano que se naturalizou brasileiro e produziu grandes quadros além de logomarcas para produtos comerciais no estilo Art Nouveau.
-Delgado de Carvalho (1884-1990): diplomata e historiador francês radicado no Brasil, famoso por sua passagem por instituições de ensino de prestígio na então capital federal e por sua contribuição ao IHGB.
-Arnold Toynbee (1889-1975): historiador britânico conhecido por sua proposta de que uma lei rege á dinâmica das civilizações no decorrer da história em seu livro A Study of History.
-Lucien Febvre (1878-1956): historiador francês e um dos fundadores da Escola dos Annales.
-Marianne: mulher com um barrete frígio que passou a ser o símbolo maior da República Francesa. 

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