sexta-feira, 19 de agosto de 2011

José Cândido de Carvalho

Realejo, Djanira.
Vou colocar aqui alguns dos pequenos e engraçados contos do escritor carioca José Cândido de Carvalho (1914-1989), um dos meus favoritos.




Adeus tardes fagueiras à sombra das laranjeiras
de Casemiro de Abreu


Alcimaco Azambuja, dono de muito boi e muito voto em Pirapora, tendo de resolver umas coisas e loisas com o governo, rebocou Zizinho Pinto para terras e mares do Rio de Janeiro. E, na porta do Palácio do Catete, que naqueles dias comandava a vida do Brasil, falou para o compadre Zizinho:

— Vou ver uns papéis que estão entalados nas gavetas do governo. Venha comigo.

Zizinho recusou:

— Compadre, careço de competência para pisar chão tão mimoso. Vou quedar do lado de fora, assuntando compadre.

O compadre sumiu pela larga porta de entrada enquanto Zizinho, instalado num bom cigarro de palha, ficava vendo aquele entrar e sair de gente em formato de formiga de correição. Alcimaco, depois de desencravar seus papéis, voltou e quis saber a opinião de Zizinho Pinto:

— Compadre, gostou do Catete? Coisa assim não tem em Pirapora.

E Zizinho de Pirapora:

— Eta, compadre, lugarzinho bom de especial para um varejo, para um comercinho de cachaça e rapadura!

E mais não disse nem lhe foi perguntado.

Porque Lulu Bergantim
não atravessou o Rubicon


Lulu Bergantim veio de longe, fez dois discursos, explicou por que não atravessou o Rubicon, coisa que ninguém entendeu, expediu dois socos na Tomada da Bastilha, o que também ninguém entendeu, entrou na política e foi eleito na ponta dos votos de Curralzinho Novo. No dia da posse, depois dos dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos atirados no rosto de Lulu Bergantim pela professora Andrelina Tupinambá, o novo prefeito de Curralzinho sacou do paletó na vista de todo mundo, arregaçou as mangas e disse:

— Já falaram, já comeram biscoitinhos de araruta e licor de jenipapo. Agora é trabalhar!

E sem mais aquela, atravessou a sala da posse, ganhou a porta e caiu de enxada nos matos que infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca aberta, não lembrava em cem anos de ter acontecido um prefeito desse porte. Cajuca Viana, presidente da Câmara de Vereadores, para não ficar por baixo, pegou também no instrumento e foi concorrer com Lulu Bergantim nos trabalhos de limpeza. Com pouco mais, toda a cidade de Curralzinho estava no pau da enxada. Era um enxadar de possessos! Até a professora Andrelina Tupinambá, de óculos, entrou no serviço de faxina. E assim, de limpeza em limpeza, as ruas de Curralzinho ficaram novinhas em folha, saltando na ponta das pedras. E uma tarde, de brocha na mão, Lulu caiu em trabalho de caiação. Era assobiando "O teu-cabelo-não-nega, mulata, porque-és-mulata-na-cor" que o ilustre sujeito público comandava as brochas de sua jurisdição. Lambuzada de cal, Curralzinho pulava nos sapatos, branquinha mais que asa de anjo. E de melhoria em melhoria, a cidade foi andando na frente dos safanões de Lulu Bergantim. Às vezes, na sacada do casarão da prefeitura, Lulu ameaçava:

— Ou vai ou racha!

E uma noite, trepado no coreto da Praça das Acácias, gritou:

— Agora a gente vai fazer serviço de tatu!

O povo todo, uma picareta só, começou a esburacar ruas e becos de modo a deixar passar encanamento de água. Em um quarto de ano Curralzinho já gozava, como dizia cheio de vírgulas e crases o Sentinela Municipal do "salutar benefício do chamado precioso líquido". Por força de uma proposta de Cazuza Militão, dentista prático e grão-mestre da Loja Maçônica José Bonifácio, fizeram correr o pires da subscrição de modo a montar Lulu Bergantim em forma de estátua, na Praça das Acácias. E andava o bronze no meio do trabalho de fundição quando Lulu Bergantim, de repente, resolveu deixar o ofício de prefeito. Correu todo mundo com pedidos e apelações. O promotor público Belinho Santos fez discurso. E discurso fez, com a faixa de provedor-mor da Santa Casa no peito, o Major Penelão de Aguiar. E Lulu firme:

— Não abro mão! Vou embora para Ponte Nova. Já remeti telegrama avisativo de minha chegada.

Em verdade Lulu Bergantim não foi por conta própria. Vieram buscar Lulu em viagem especial, uma vez que era fugido do Hospício Santa Isabel de Inhangapi de Lavras. Na despedida de Lulu Bergantim pingava tristeza dos olhos e dos telhados de Curralzinho Novo. E ao dobrar a última rua da cidade, estendeu o braço e afirmou:

— Por essas e por outras é que não atravessei o Rubicon!

Lulu foi embora embarcado em nunca-mais. Sua estátua ficou no melhor pedestal da Praça das Acácias. Lulu em mangas de camisa, de enxada na mão. Para sempre, Lulu Bergantim.

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