terça-feira, 10 de maio de 2011

O coronel e o matuto

Coronelassauro, minha autoria, 2007.
Não há figura que mais tenha predominado na sociologia ou historiografia brasileira que a do coronel. Aliás, não só nelas como também na arte (penso, na hora, na figura folclórica de Ponciano Azeredo Furtado do Coronel e o Lobisomem de José Cândido de Carvalho ou no autoritário Xisto Vacariano de Incidente em Antares de Érico Veríssimo).

Membros da Guarda Nacional trajando uniforme em uma ilustração de Debret.
Coronel é todo aquele líder regional que consegue ser respeitado ou pelos seus atos bondosos ou pela sua violência (sua ou de seus jagunços). A associação com a patente do exército vem dos tempos do Império quando existia a Guarda Nacional - instituição paramilitar da qual só participava membros das elites provinciais - e a obtenção deste posto era acessível graças á um bom pagamento. A patente de coronel era uma das mais altas e via com uniforme e tudo mais.
Coronelismo, Enxada e Voto, Victor Nunes Leal.
Mas o conceito que deriva desse personagem made in Brazil, o coronelismo, é um dos temas no qual mais nossas Ciências Sociais se debruçaram. O estudo mais emblemático sobre esse fenômeno continua sendo o de Vitor Nunes Leal: Coronelismo, Enxada e Voto. O nome do livro na verdade deixa encobrir uma reflexão muito mais profunda sobre a relação entre o poder local e o poder central desde a colonização. 
Vitor não fala do coronel, mas de coronelismo; seu objetivo é falar dessa sistema política que surgiu com o fim do centralismo político do Império e se torna poderosa com a República Velha. O coronelismo é uma tentativa das elites locais decadentes se reerguerem, trocando favores com a União. Enquanto Vitor Nunes Leal enxerga o coronelismo como um fenômeno específico da República Velha, outros pesquisadores o considera como parte de uma estrutura social mais longa e quase imutável.


Floro Bartolomeu, líder politico cearense.

Flores da Cunha, general gaúcho.
Aqui entramos num campo meio espinhoso, o da semântica. Coronelismo tem se confundido com mandonismo e clientelismo. Segundo José Murilo de Carvalho, mandonismo inicialmente indicava essa relação de poder local exercido por determinado personagem e clientelismo uma prática, a troca de favores entre um líder político local e a população - geralmente por votos. Assim, coronelismo podia ser entendido como uma forma de mandonismo próprio da República Velha que utiliza a prática do clientelismo.

Charge de Storni.
Bem, a conclusão de muitos é de que o mandonismo é algo herdado da Península Ibérica (a América Latina também compartilha dessa herança) e se faz presente no país inteiro das mais variadas formas: desde o coronel de barranco na Amazônia até os caudilhos militares dos pampas. De nomes nós estamos bem nutridos: Floro Bartolomeu, o coronel de Padre Cícero; Flores da Cunha, o general gaúcho que ajudou Getúlio Vargas a ascender; Delmiro Gouvêia, o empreendedor do sertão pernambucano; Visconde de Tremembé, o polêmico líder taubateano; Silvério Nery, político amazonense dos primeiros anos de República, etc.
E se engana quem acha que o mandonismo morreu. Ele continua por outros meios. Muitos pesquisadores pensaram que a modernização (a industrialização e a urbanização) matariam os coronéis e potentados locais, mas eles continuaram a existir. Houve, numa expressão muito utilizada, uma modernização conservadora: de um lado se modernizou a economia, mas nas relações sociais as mesmas práticas (clientelismo) foram mantidas. Nas cidades, por exemplo, o "novo coronel" pode ser aquele sujeito que em troca de votos faz ótimos serviços para a comunidade (um líder comunitário, um vereador dito popular, esse tipos)

Orson Welles em Cidadão Kane: símbolo da manipulação da mídia.
A questão não é se não houve dominação, isso está mais do que claro, como nos lembra José Murilo de Carvalho. A verdadeira questão é de que forma se deu essa dominação: se pela luta de classes ou pela modernização conservadora. Séculos e séculos de clientelismo - essa relação que envolve muito paternalismo - podem ter criado uma população que não se acostumou a ser ativa na política, ou seja, esse é o maior entrave para o povo brasileiro se tornar realmente cidadão.

No entanto, estudos recentes tem contestado essa idéia de clientelismo enquanto alienação das massas. Ainda que essa seja realmente a sua intenção, ele pode ter sido reaproveitado. Estes estudos partem do princípio que nenhuma dominação é absoluta (como diria Marx na Ideologia Alemã) e que tudo pode ser resignificado (Roger Chartier, por exemplo, é um dos maiores defensores do conceito de apropriação, principalmente no campo cultural). Membros do povo podem utilizar desse sistema para atender suas necessidades, ainda que imediatas, sem cair no discurso do seu "padrinho político". Aliás, a ascensão social veio para muitas pessoas através do clientelismo - construindo uma carreira política seguindo certo líder, mas depois se desvincilhando, deixando bem claro que seu verdadeiro objetivo era defender seus próprios interesses.
Resumindo, o mandonismo é patente na nossa história, mas temos que entender que o clientelismo é uma estrada de mão dupla. Há a alienação e a dominação, mas não há apenas isso. Há também a apropriação dessa situação, há aqueles que tem consciência desse sistema e dançam conforme a música para sobreviver ou para simplesmente se aproveitar dele. Talvez devessemos, ao falar de coronelismo e mandonismo, questionar um pouco a imagem daquele coronel bem-amado (como nossos Odoricos Paraguaçus) ou mesmo tirânico (como o coronel Juca Tristão d'A Selva) e do matuto enquanto vítima (caso de Fabiano em Vidas Secas) ou mesmo de seu fiel seguidor (como Dirceu Borboleta).

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