segunda-feira, 18 de abril de 2011

Uma cidade para todos?

Cruzamento da Avenida Eduardo Ribeiro com a Avenida Sete de Setembro, 1900.
Milton Hatoum, na apresentação do livro A Ilusão do Fausto de Edinéia Mascarenhas Dias, revela que o urbanismo é muito mais que uma forma de organizar o espaço, é uma forma de política também. Não podemos ser ingênuos e acreditar que as relações sociais não estão presentes nos planos urbanísticos. Qualquer tipo de intervenção no espaço urbano influi na vida dos cidadãos; o viver urbano é permeado de tensões e alianças.
A historiografia tradicional parece ter apagado essa premissa, considerando as reformas urbanas empreendidas durante o boom da borracha como simples medidas tomadas para embelezar e higienizar a cidade. A mesma historiografia tradicional tece elogios à tais reformas, por enriquecerem a cultura e o lazer da sociedade local.
Se sabemos da complexidade do viver urbano, logo haveremos de convir que esse discurso é no mínimo tendencioso e simplista. Por isso, nos perguntamos como cada grupo social interagia com esse processo de urbanização? Como o viver urbano deles se constituiu com essas mudanças? Encontramos na historiografia recente, dedicada a ver a Belle Epoque com um novo olhar - o olhar da História Vista de Baixo -, um ótimo caminho para chegarmos ás respostas.
Em primeiro lugar, por que Manaus se urbanizou tão profundamente assim? A resposta está na borracha, ou melhor, no látex. A partir de 1880, cria-se uma demanda paraa borracha com a descoberta do processo de vulcanização. Até que enfim essa substância usada pelos Omágua para proteger seus pés dos mosquitos e revelada á Europa pelo cientista La Condamine pode ser então manufaturada. Os grandes seringais se concentravam no Alto Amazonas, sendo assim, Manaus era um ponto privilegiado de extração de látex. O interesse do mercado internacional ajudou a criar na Amazônia o sistema econômico do aviamento, onde se estabelecia uma cadeia de dependência que tinha por base o seringueiro e como topo as grandes firmas inglesas.

Antes a cidade era apenas um entreposto, onde as "drogas do sertão" coletadas no interior da selva principalmente pela mão-de-obra indígena eram exportadas para o Porto de Belém. A cidade se torna de novo um entreposto, mas agora para a borracha. Manaus era, então, uma cidade muito isolada e rudimentar, com uma população predominantemente indígena e pobre. Mas com a chegada de firmas estrangeiras e com o crescimento da economia local, ela deveria ser remodelada. A cidade, antes espaço comum, modifica-se, estratifica-se segundo uma nova configuração, a de classe (DIAS, 1999, p. 30)

O primeiro surto de urbanização ocorre em 1890, obedecendo ao aumento das exportações. O poder público local tinha como modelo, assim como boa parte do país, o projeto urbano de Paris, que primava pela racionalidade do espaço. Assim, os igarapés foram aterrados, as ruas pavimentadas e as taperas sibstituídas pelos prédios de estilo neoclássico. O projeto urbanístico privilegiou o quadro central da cidade, onde estava o seu eixo econômico: as casas comerciais e o porto. As casas que não obdecessem ao padrão artístico estipulado pelo poder público eram desapropriadas.

Teatro Amazonas e a Avenida Eduardo Ribeiro (ainda em fase de aterramento), 1898.
Logo se vê que a urbanização foi liderada pela elite econômica local com o objetivo de "civilizar" a capital da borracha e o principal instrumento desse projeto foram os Códigos de Posturas Municipais que regulamentavam as normas do viver urbano que se tencionava implantar. um dos pretextos para a ação do governo, além do embelezamento, era a higiene. O sanitarismo ajudou a aterrar os igarapés e a derrubar os cortiços e pensões do centro da cidade, como nos aponta no decorrer de todo o seu livro Edinéia Mascarenha Dias.
O modo de vida tapuia, antes predominante na cidade, é perseguido em nome de uma cultura realmente "civilizada". Como parte do processo de segregação espacial, os moradores mais pobres e nativos vão para os bairros mais distantes do centro. A economi gumífera atraiu muitos imigrantes, principalmente vindos do Nordeste. Embora eles tenham se concentrado boa parte do tempo nos seringais, muitos resolveram ficar na capital. A cidade cresce, primeiramente, seguindo a margem do Rio Negro, mas posteriormente se volta para o interior.
Embora surja uma enorme quantidade de profissões agora, principalmente as voltadas para o trabalho doméstico e os serviços urbanos, elas exigiam um rígido comportamento. Exigia-se especialização, mas as massas eram altamente polivalentes; sua especialidade era sobreviver.

Estivadores.
Manaus tinha que importar tudo que consumia e os serviços urbanos eram feitos por empresas inglesas que, por monopolizarem o ramo, não costumavam cumprir seus contratos. O preço do aluguel também era alto (um dos mais altos do país) o que explica a presença de tantos cortiços. A má alimentação e a moradia precária eram terrenos férteis para doenças. Contribuía para fragilizar o cotidiano do manauara menos abastado as duras jornadas de trabalho, principalmente no caso da categoria mais importante, os estivadores, que, no dizer Maria Luiza Ugarte Pinheiro, carregavam a cidade sob seus ombros. Tal painel tão desolador pode explicar porque muitos trabalhadores se queixavam na imprensa ou entravam em greves como foi o caso dos catraieiros em 1885 e 1887 e o caso dos estivadores em 1899, por exemplo.

Carnaval em Manaus, início do século XX.
O lazer também não estava livre de tesnões também: temos de um lado uma elite que revelava seus anseios em ser européia, principalmente através de seus piqueniques, passeios pelo Roadway e óperas, e do outro, uma massa de origem diversa, mas que encontavam prazer em pequenas festas - religiosas ou não - e em  práticas ligadas ao seu universo cultural, seja ele tapuia ou nordestino. Vale dizer que ainda nesse aspecto eram mal vistas pelo poder público, pelas elites e pela imprensa, como se fossem atividades primitivas e imorais. Ugarte revela o preconceito para o estivador, por exemplo, por este se divertir geralmente em botequins e bordéis.

Canoas no Porto de Manaus, 1900.
A cidade tinha seu ritmo ditado pela produção nos seringais e a demanda externa o que significa que essa sazonalidade também se refletia no cotidiano dos seus habitantes. Quando do escoamento da borracha, a cidade assistia á entrada de inúmeros vapores e pessoas. Todo esse fluxo de pessoas atribuía um "caráter alegre e festivo" a Manaus que via ampliar internamente a circulação monetária e as oportunidades de lazer (PINHEIRO, 1999, p. 38). O mesmo fluxo de pessoas também tinha um caráter preocupante: o inchamento da cidade por homens á procura de trabalho que culminava em mais miséria ainda. Esse "ritmo da cidade" e suas consequências, de certa fora, representam o viver urbano durante a Belle Epoque manauara: alegria e tristeza, opulência e miséria.

Não se trata aqui de fazer uma história revanchista que coloque toda a culpa no poder público e nas elites e de se heroicizar os trabalhadores e outros grupos sociais silenciados pela historiografia tradicional. Trata-se apenas de tentar oferecer ao leitor uma visão geral sobre o viver urbano manauara durante o auge de economia gumífera, esse período tão cheio de brumas de fantasia e idealização. Não enxergamos harmonia, mas enxergamos tensões. O novo sistema econômico que se instala na região gera novos conflitos, sejam eles políticos, sociais ou mesmo culturais. Esse painel, contudo, não nos é muito estranho hoje. A questão das políticas públicas urbanas ainda são atuais, pois ainda existe a segregação espacial, ainda há periferia e centro e mais uma vez por conta da economia. Como os habitantes da cidade da Belle Epoque, nós sabemos disso e vivemos no meio desse cenário. Mas não propomos ainda nenhuma alternativa para esse estado de coisas. Toda proposta parte de uma observação e nossa observação parte de uma pergunta muito simples: o que podemos fazer hoje para viver melhor nessa cidade?

Referências:
DIAS, Edinéia Mascarenhas. A Ilusão do Fausto (Manaus 1890-1920). Manaus: Editora Valer, 1999.
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A Cidade sobre os Ombros: Trabalho e conflito no Porto de Manaus (1889-1925). Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1999.

Um comentário:

  1. Creio que a foto do carnaval no início do século foi retratada no Rio de Janeiro e não em Manaus como afirma a legenda (vêem-se logo atrás o Teatro Municipal e a Academia de Belas Artes)

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