terça-feira, 12 de abril de 2011

O Silêncio dos Inocentes

ENTRE ÁRVORES E ESQUECIMENTO: História Social no Sertão do Brasil. Victor Leonardi. Brasília: Editora Paralelo 15, 1996.

Fernando Pessoa queria expressar o desejo de se afastar de um mundo frenético e neurótico quando escreveu "E ir ser selvagem/ entre árvores e esquecimento", mas Victor Leonardi se apropria dessa frase para denunciar a situação do indígena na sociedade brasileira. Ele se encontra entre árvores e esquecimentos.
Todo esquecimento é uma espécie de silêncio, silêncio sobre algo, sobre alguém. Tal idéia explica a origem do título dessa resenha (além da ótima oportunidade para um trocadilho), mas, veremos que na história, ninguém é tão inocente assim.

Victor Leonardi
Leonardi identifica um silêncio na cultura brasileira sobre a questão indígena, ela ainda continua sendo objeto de preocupação de meia-dúzia de almas, entre elas os próprios indígenas. Por que? A resposta, segundo o autor, estaria na construção de uma mentalidade. Durante a colonização, o interesse em se apropriar das terras e da força de trabalho do índio era disfarçado com o ideal do progresso ou da catequese e sempre vinha acompanhado de um preconceito contra os povos nativos - ou eram inferiores, sem alma ou preguiçosos. E o que temos hoje? Embora não se deseje mais a mão-de-obra indígena, mas somente suas terras, o discurso continua sendo quase o mesmo: o índio não pode deter o progresso, não pode atrapalhar a soberania nacional etc.

Essa mentalidade nos impede de ver o quão manchados de sangue estão nossos livros de história. Além da escravidão negra, temos ainda as guerras de conquista contra os indígenas e sua escravização. Ora, costuma-se pensar que nossa colonização foi pacífica no que tange ao índio, mas esse é mais um discurso. Construído sobre a hipocrisia dos colonialistas e a falta de um relato indígena sobre o processo, dando sua versão dos fatos - uma vez que as sociedades indígenas brasileiras são ágrafas, ou seja, não possuem escrita.

Mesmo sem uma outra versão do fato, podemos pescá-la nos não raros episódios de violência que foram patente na nossa colonização. Sim, os bandeirantes são apenas a ponta do iceberg. A situação é muito mais complexa: seringueiros na Amazônia, pecuaristas e senhores de engenho no Nordestes e até imigrantes alemães no Sul estão envolvidos nessa guerra milenar, isso sem falar dos próprios indígenas. A rivalidade entre etnias, já existente antes dos colonizadores, foi muito bem explorada pelos europeus.

Se o colonialismo envolveu os mais variados grupos sociais e étnicos, também pode ser dito que envolveu os mais variados países. Os produtos cultivados em terras indígenas foram a riqueza das Metrópoles e dos demais países europeus. O capitalismo é assim, envolve vários países, várias regiões, ele constrói e destrói. O resultado é que temos uma modernidade, construída em cima de tanta violência, que prometia a redenção da humanidade, mas apenas lhe deu mais violência.

O Brasil passa uma imagem de paraíso das raças, de acolhedor de todo tipo de cultura. Leonardi reconhece a simpatia do brasileiro e sua alegria perante a vida (com a autoridade de quem rodou o mundo, mas se apaixonou cada vez mais pelo seu país). Não se trata de esquecer nosso pontos positivos ao abordar estes lados sombrios de nossa formação, mas de trabalhar justamente esses aspectos negativos e transformá-los em algo melhor. Se trata de transformar o preconceito e a arrogância para com o indígena em respeito e diálogo. O primeiro passo, como em todo problema, é reconhecer que há algo de errado. O fato é que nós não pensamos em nossos indígenas e quando o fazemos é exatamente em cima de idéias pré-concebidas, arrastadas há anos em nossa cultura.

Uma vez reconhecido nosso preconceito e arrogância devemos partir para a solução e a solução é simples: compreensão. Nenhum preconceito resiste á compreensão, afinal ele é construído em cima de seu oposto. A sabedoria sobre os povos indígenas, contida na antropologia e na história, deve ser divulgada, só assim percebermos o quanto são diversas as sociedades nativas. Só assim perceberemos que o índio não é um povo sem história. Só assim perceberemos que o índio não é preguiçoso, mas apenas possui seu ritmo de trabalho próprio. Só assim perceberemos que o índio não é contra a soberania nacional, mas apenas tenta valorizar sua cultura que reside justamente nessa diversidade.

Compreendendo, estamos aptos a sugerir mudanças. Devemos rever essa idéia de soberania nacional que não prega o multiculturalismo, mas que não admite a diversidade cultural. Devemos rever as políticas rurais, incluindo aí a demarcação de terras indígenas e a reforma agrária. Mais as maiores mudanças, contudo, devem ser em nosso cotidiano, no fim de certos preconceitos e na aceitação dessa diferença. Quem sabe assim construíremos uma modernidade que realmente revigore nossa humanidade.

Basicamente essa é a mensagem de Victor Leonardi, exposta com muita coerência no decorrer dos capítulos de seu livro. São páginas e mais páginas de silêncios finalmente quebrados de nossa história, por todo o Brasil. São capítulos que servem á proposta de Leonardi de transformar a história do Brasil em uma casa de vidro, onde possamos ver os segredos colocados debaixo do tapete.

Se o foco recai nesses milhares de massacres, não é por sadismo, mas para combater a mentalidade e o silêncio. Meu capítulo preferido, por exemplo, "Com As Asas Presas na Tempestade", faz uma discussão teórica e artística sobre a modernidade e os indígenas. Nele Leonardi demonstra como nossa arte foi revigorada pela sensibilidade dos "primitivos", quando nossas vanguardas buscavam por formas mais sintéticas e mais atraentes e as encontraram na cultura oriental, africana e indígena. Não só a a arte, mas muito ainda pode ser revigorado com a ajuda da cultura indígena, por exemplo, a questão ecológica (afinal, a sustentabilidade é uma das maiores marcas dos povos indígenas) e sociais (uma forma de trabalho mais humana ligada ao lazer, uma educação menos dogmática e mais lúdica e difusa, uma filosofia de vida menos angustiante e mais serena, são apenas alguns exemplos). Esses "primitivos" ainda tem muito a nos ensinar sobre "ser civilizados" realmente.

Entre Árvores e Esquecimento foi uma leitura agradável, seja pelo estilo ou pela temática, e extremamente realizadora intelectualmente tamanha a quantidade de reflexões úteis que nele podemos encontrar. Graças á esse livro tornei-me fã desse sagaz historiador e aprendi a desconfiar de silêncios.


(Resenha publicada no Recanto das Letras em 10 de abril de 2011 - link)

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