sábado, 9 de abril de 2011

Fronteiras


A Conquista da Amazônia, Antônio Parreiras, 1907.

O historiador Auxiliomar Ugarte no seu texto Os Filhos de São Francisco no País das Amazonas: Catequese e Colonização na Amazônia do Século XVII trabalha com o conceito de fronteira. Fronteira é um conceito muito caro aos norte-americanos, foi muito bem trabalhado pelo historiador Frederick Jackson Turner (falaremos dele outro dia).
Oficialmente, fronteira é o limite entre dois territórios, mas há uma segunda noção, construída nas Ciências Sociais, que coloca a fronteira como um limite não só físico, mas também mental. A Amazônia, por exemplo, era uma imensa fronteira para os colonizadores espanhóis que saiam de Quito. Quito era o limite entre dois mundos: o conhecido e o desconhecido. A fronteira, portanto, vai se expandindo a medida que o colonizador vai se familiarizando com o local e com os povos que o habitavam.
Ugarte usará essa noção, mas principalmente o aspecto mental. Seu objetivo é entender como essa fronteira se fazia presente no confronto entre colonizador e o nativo, através do relato de uma missão franciscana no Alto Amazonas no século XVII.

Antes disso, o autor busca contextualizar a colonização da região. Os primeiros desbravadores, dentre eles Francisco de Orellana e Lope de Aguirre, eram espanhóis que saíam do Peru á procura dos reinos de Eldorado ou do País da Canela. Pelo Tratado de Tordesilhas, a maior parte da Amazônia era da Coroa Espanhola. Como, então, a maior parte da Amazônia passou a pertencer aos portugueses em questão de dois séculos depois de seu descobrimento?
Os portugueses só entram na Amazônia depois que expulsam os franceses localizados no Maranhão, acabando assim com a França Equinocial em 1615. No mesmo ano, Francisco Caldeira Castelo Branco é encarregado de explorar as terras acima do Maranhão, expulsando eventuais invasores. Durante essa expedição ele funda, num ponto estratégico, um forte - o Forte do Presépio, onde se erguerá ao seu redor o povoado de Nossa Senhora do Belém, futura capital do Estado do Pará - e nomeia esta nova terra como Feliz Lusitânia.

Fundação de Belém do Pará, Theodoro Braga, 1908.
Nas décadas de 1620 e 1630 várias expedições são feitas para expulsar invasores da Amazônia pelos portugueses. Quando Feliz Lusitânia é fundada já estamos num momento curioso na história de Portugal e Espanha: ambos os países haviam se fundido, com a falta de herdeiros ao trono causada pela morte prematura de D. Sebastião e de seu tio, sob o nome de Filipe III, formando assim a União Ibérica (1580-1640). Os portugueses do Maranhão passam a ser súditos também de Filipe III, por isso sua entrada nos territórios espanhóis (segundo Tordesilhas) é permitida. Ugarte destaca o descontentamento dos portugueses e luso-brasileiros em se tornarem súditos da Espanha, uma espécie de sentimento nativista existia entre eles, e como eles se aproveitaram dessa oportunidade de ouro de entrar nos domínios espanhóis. A expedição de Castelo Branco é um exemplo disso. Seu objetivo era explorar os territórios ao norte e expulsar os invasores (ingleses, franceses e holandeses tinham penetrado na Amazônia de formas diferentes e criado entrepostos comerciais com os índios). Mais emblemática será a expedição de Pedro Teixeira.
Homenagem á Pedro Teixeira na ilha de Cametá, Pará.
Pedro Teixeira foi encarregado pelo governador do Maranhão de conquistar as terras acima de Feliz Lusitânia em 1637. Sua viagem seria justificada como uma expedição contra os invasores estrangeiros, mas o interesse real era se apossar das terras não demarcadas pelos espanhóis. Saindo do Forte do Presépio, o capitão português atravessou todo o rio Amazonas, no sentido contrário, chegando por fim em Quito seis meses depois, onde as autoridades espanholas, desconfiadas, abriram uma comissão para saber suas reais intenções. Mas El-Rei não viu nenhuma malícia em seu ato. Mesmo assim, dois cronistas foram designados para acompanhar (espionar) Pedro Teixeira em sua viagem de volta á São Luis: o jesuíta e reitor do seminário local Cristóbal de Acuña e o frade André de Hertiade.

Quando a União Ibérica termina, os portugueses reclamam a terra conquistada por Teixeira como sua. Os espanhóis relembram o Tratado de Tordesilhas. O fato é que nem um nem outro haviam ocupado realmente essas terras, a conquista era apenas simbólica, ela continuava nas mãos dos povos locais, embora Teixeira tenha livrado ela dos invasores destruindo muitos entrepostos ingleses e holandeses. A contenda irá durar até 1715 com a criação do Tratado de Madrid, onde as duas partes chegam a um acordo.

Onde entram os franciscanos nessa espécie de guerra fria pelo controle da Amazônia? Tanto os franciscanos, como os mercedários, carmelitas e jesuítas faziam parte do projeto colonizador, seja espanhol ou português. Mesmo contestando algumas vezes os colonos, seus objetivos eram também colonizar, mas o imaginário (na expressão de Serge Gruzinski). As ordens religiosas na Amazônia representavam instituições de fronteira também, pois elas buscavam conhecer esse novo espaço e essa nova cultura e com isso impor os signos de sua civilização.

Peguemos o caso da missão coordenada e relatada pelo frei Laureano de La Cruz: ela tinha como objetivo catequizar os Omágua. Por que logo os Omáqua? Dentre todas as nações indígenas, eles se destacavam, segundo o próprio Laureano, pela sua numerosidade e pelos seus hábitos "mais civilizados". Os Omáqua tinham uma das maiores "províncias" do Alto Amazonas, sendo considerados um dos cacicados complexos (com um rígida hierarquia e controle sobre nações menores locais) mais imponentes da região.

Omágua em ilustração do livro Viagens Filosóficas ao Rio Negro e Amazonas de Alexandre R. Ferreira.
A missão demorou a partir, pois dependia da doação dos particulares para obter recursos. Os colonos espanhóis estavam mais interessados em achar prata, segundo o frei, mas finalmente financiaram sua missão em 1647. Os franciscandos guiados por De La Cruz se estabeleceram na ilha de Piramota, rebatizada por eles de São Pedro de Alcântara (chegaram nela no dia desse santo). A maioria das aldeias Omágua se localizavam nas ilhas fluviais descendo o rio, mas Piramota era sua base para a evangelização.
No dia seguinte a chegada, os tradutores fugiram deixando os frades em maus lençóis. A falha de comunicação perduraria até o fim da missão. Logo, eles também descobriram o incomôdo da vida amazônica: desde os perigos mortais representados pelos animais até as epidemias. A maior reclamação era sobre os mosquitos. Por isso, eles insistiam para que os Omágua se mudassem para a terra firme; não compreendiam que na várzea eles já haviam se adaptado ao regime das águas e á fartura que ela trazia.

Laureano se entusiasma quando homens da ilha de Caraúte o procuram, pedindo que plante uma cruz, como havia feito em Piramota, em sua aldeia. Esse pedido pode ser entendido não como uma vontade de ser catequisado, mas como parte da disputa política interna entre os Omágua: Caraúte não poderia ficar atrás de Piramota, ela precisa de sua cruz também.
O entusiasmo de Laureano acaba com as enchentes de três em três meses, uma frente fria, verdadeira monção, que durou quatro dias e uma epidemia de varíola entre os Omágua. O frei volta á Piramota e descobre que o Provincial da ordem pede que continue seu trabalho, mas Laureano, em suas andaças, sabe que as aldeias não são tão próximas como pensava. Haviam poucos Omágua também. O que diziam os cronistas da década anteriora era mentira. Será?
Laureano não percebe que os Omágua diminuíram, para ele esses povos não tem história, estão sempre no mesmo estágio. O que estava acontecendo naquele momento era o começo do fim dos Omágua e podemos perceber isso com a epidemia de varíola devastadora de que fala o próprio frei.
Enfim, três anos entre os Omágua não foram capaz para que ele compreendesse esse povo. Ainda existia a falha de comunicação, além disso os missionários atacavam seus hábitos festivos, suas bebedeiras, e tentavam convencê-los de deixarem a várzea. Os Omágua já demonstravam sua insatisfação com algumas ameaças de vida. Não adiantava mais insistir, Laureano reconhece o fracasso e sai de Piramota em 1650.

Ugarte toma essa missão como um exemplo da relação europeu-indígena; a alteridade não é reconhecida. Esse desencontro foi marca da construção da Amazônia moderna e ainda é um traço presente na nossa cultura. Se a fronteira foi diluída, ainda preservamos uma fronteira maior ainda com relação aos povos indígenas, não conseguimos aceitar sua cultura, eles ainda permanecem (por falta de interesse) um mundo desconhecido para nós.

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