quarta-feira, 30 de março de 2011

Os Bilontras na Capital Tribofe

Achei interessante um texto utilizado pelo Prof. João Rozendo na disciplina Brasil República que pode nos ajudar a repensar a presença popular nos primeiros anos da República: Repensando política e cultura no início da República: existe uma cultura política carioca? de Marcelo de Souza Magalhães (UERJ).

Charge de Angelo Agostini sobre a Proclamação da República (1889).
O texto faz uma avaliação historiográfica dos primeiros anos da República e descobre pontos comuns na fala de nossos historiadores e outros dissonantes. Todos concordam numa coisa: os primeiros anos da República foram conturbados (sobre o motivo há múltiplas visões: a ausência de um modelo político republicano e os conflituosos interesses dos atores sociais envolvidos parecem ser dois tópicos muito utilizados).
A discordância está no cárater dessa mudança de regime: ora é vista como fase necessária e inevitável no desenvolvimento nacional, ora como mudança superficial (o regime é o mesmo, só mudou de nome). As visões sobre esse processo geralmente estão associadas ás ideologias dos historiadores, assim temos monarquistas defendendo que a República representou a continuação dos vícios de antes e republicanos defendendo que esse foi um dos maiores passos para modernizar o Brasil.

Aristides Lobo
O autor utiliza como símbolo dessa diversidade de interpretações o termo bestializado, popularizado pela historiografia e por ela resignificada das mais diferentes formas. Aristides Lobo, quem cunhou a expressão, o fez no calor da hora. Quando ele diz que o povo assistiu á tudo bestializado, segundo Marcelo, estaria se referindo á surpresa da ação e não ao movimento em sim. A historiografia tradicional se apropriou do bestializado como símbolo do povo indiferente e apático e de uma República que começa já autoritária. Chegamos em José Murilo de Carvalho que critica essa visão: para o cientista político, o povo não participou da República porque não quis e não porque não sabia. O povo, como falamos aqui antes, era "bilontra", esperto, e sabia que esse novo regime seria como o anterior, seria elitista e autoritário; a política era "tribofe", impenetrável, sendo assim, bestializado era quem a levasse a sério.

José Murilo de Carvalho
Dialoga com a visão de José Murilo de Carvalho o trabalho de Maria Tereza Chaves de Melo quando afirma que o povo, doutrinado pela propaganda progressista e republicana, já havia consentido com a mudança do regime, ou seja, ele não estava desinformado, o que o pegou de surpresa (na realidade, pegoua  todos de surpresa) foi a ação inesperada da "mocidade militar". A interpretação de José Murilo é marcante justamente por quebrar com aquela visão do povo enquanto espectador passivo dos acontecimentos de nossa história. Marcelo considera fantástica essa interpretação, mas tem suas ressalvas e uma delas é a idéia de que a política era tribofe.
Com base em pesquisas recentes sobre o Rio de Janeiro, o autor encontrou uma cidade politizada e o povo participando da política.O povo podia pedir diretamente ao intendente ou prefeito e até mesmo ao Conselho Municipal. A comunicação existia e, com efeito, muitas de suas queixas foram solucionadas (por pressão ou por politicagem).

Largo de S. Francisco de Paula, Rio de Janeiro. Fonte: Marc Ferrez, 1890.
Sendo assim, o Rio de Janeiro, como nos diz o subtítulo, tinha uma cultura política? Em primeiro lugar, o que se entende por cultura política? Estas pesquisas recentes tomam como referencial teórico Serge Berstein e sua concepção de cultura política; para ele, seria uma visão de mundo, comprometida com um certo passo comum, orientando as ações políticas e não um conjunto de práticas liberais e democráticas, como se costuma afirmar.
Se olharmos para as elites políticas, como estas pesquisas vem fazendo, então temos sim uma cultura política carioca que pode ser resumida em uma tensão entre intervenção e autonomia. O Rio de Janeiro carregava o peso de ser a capital do Brasil, o que acarretava mudanças estratégicas do governo federal, e de não deixar de ter que representar seus habitantes. O dilema na política local era: obedecer aos interesses da União ou dos cidadãos desta cidade?E muitos políticos lutavam entre si tendo esse dilema como motivo: prefeitos eram pressionados pelos habitantes, intendentes pelos prefeitos, o Conselho Municipal pressionava prefeitos e intendentes, e vice-versa.
No entanto, se olharmos para os habitantes da cidade veremos, segundo Marcelo, que eles encontraram outros canais, que não os da política oficial, para se manifestar. E seus interesses eram os mais diversos. Quando se envolviam na política oficial era para pedir algo que os ajudasse a sobreviver (melhor moradia, melhor alimentação, etc) e não para realizar o seu projeto político. Ora, se os paulistas, pernambucanos, amazonenses, dentre tantos outros, faziam o mesmo, como podemos chamar isso de uma cultura política carioca? Antes de tudo, estamos falando de uma negociação entre o povo e o governo, onde o primeiro buscar melhorar suas condições de vida e o segundo conseguir mais legitimidade popular (se bem que Marcelo aponta para uma revisitação do clientelismo).
Se uma cultura política não engloba a maioria da população de uma cidade, então temos uma cultura política? Não, essa é a resposta de Marcelo. De qualquer forma, é interessante como ele se apropria de premissas de José Murilo de Carvalho (o bilontra) e dessa historiografia carioca recente (a política não-tribofe). Nos faz repensar no descompasso/compasso do governo e do povo na República e ainda hoje.

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