segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Revolução no mundo árabe

Nasser (1918-1970) falando ao povo, 1961.

Há 50 anos atrás, o oficial do exército egípcio Gamal Abdel Nasser e mais alguns colegas que ficaram conhecidos como o grupo dos Oficiais Livres lideraram uma insurreição no Egito contra o governo do rei Farouk I conhecida como a Revolução de 1952. O monarca foi expulso e os oficiais livres instituíram uma república secular. O movimento obteve forte apoio da população. O motivo? Farouk I, aos olhos de todos, era um "pau-mandado" do governo britânico que controlara o Egito por tantos anos. Os egípcios estavam cansados dessa dominação. Nasser surgiu com um projeto político que respondia essas expectativas: o pan-arabismo.

O pan-arabismo, ao contrário do que muitos pensam, não foi criado por Nasser, mas por intelectuais libaneses, como Michel Aflaq, na década de 1920. Era uma ideologia que apostava na união dos povos que habitavam a Península da Árabia, uma vez que estavam ligados pela história, contra o imperialismo ocidental. A inspiração do movimento era mais secular que religiosa, uma vez que esses intelectuais viam na religião um fator de potencial conflito entre os próprios povos árabes.

Precisamos compreender que o pan-arabismo era uma proposta para mudar o status quo de dominação que os povos árabes vinham sido submetidos desde o enfraquecimento do Império Turco Otomano, uma das maiores potências mundiais da Humanidade. O Ocidente se erguia triunfante com sua Revolução Industrial e os califas turcos, diferente dos séculos XVI e XVII, pareciam caquéticos e carcomidos senhores tentando governar um império que se desafazia em províncias corruptas e rebeldes. Nesse cenário de pobreza e miséria, os governos ocidentais, ávidos por mão-de-obra barata e consumidores, repartiram as sobras do Império entre si. Era um momento de vergonha para o mundo árabe, que fora um dos mais esclarecidos do mundo desde sua formação até a chegada dos mongóis.

Projetos para reerguer o mundo árabe então começaram a serem feitos: existiam primeiramente os que acreditavam que se adequar ao modo de vida ocidental seria a melhor maneira de sobreviver. Do outro lado, haviam aqueles que renegavam o modo de vida ocidental e valorizavam ao máximo o modo de vida local. Claro, que estou simplificando muito as coisas aqui: nem tudo era preto e branco, havia muitos tons de cinza. Estes dois lados são as raízes dos movimentos ocidentalistas e fundamentalistas atuais. Na fronteira entre os dois se desenvolveu o pan-arabismo: defendendo a cultura árabe, mas adotando alguns princípios do mundo ocidental como o governo laico e secular.

Esse debate entre contra e pró-Ocidente também se fazia no Egito. Em 1928, um jovem professor chamado Hassan al-Banna funda com mais cinco pessoas uma organização chamada Irmandade Muçulmana que tinha como proposta justamente uma regeneração do Egito e do mundo árabe através de uma volta radical para o islã dos primeiros tempos. A organização de Banna parecia a mais popular, até surgirem os Oficiais Livres e seu carismático líder Nasser. Nasser impulsiou o pan-arabismo, que parecia até então discussão para um pequeno grupo de intelectuais, com seu carisma e suas habilidades políticas e o transformou em um projeto político extremamente popular.

As primeiras medidas de seu governo, quando foi devidamente empossado, foram atacar o imperialismo ocidental, seja através da nacionalização do Canal de Suez (antes sob domínio da Inglaterra) em 1956 ou pela tentativa de dominar território de Israel, vista pelo mundo árabe de então (e até hoje) como representante local do imperialismo ocidental. A tomada do Canal de Suez levou a uma pequena guerra, em comparação com as posteriores feitas com Israel, na qual participaram inclusive brasileiros. É importante que se diga que Nasser era admirado em muitos países do Terceiro Mundo por representar uma política independente, ou seja, não se submeter nem aos EUA nem á URSS (embora ele tenha contado com a ajuda da URSS em determinados momentos para "peitar" Israel e os EUA).

O maior inimigo interno de Nasser era a Irmandade Muçulmana que via nesse governo secular um embrião de corrupção e imoralidade diante das leis do Profeta. Muitos atentados foram feitos contra Nasser e seus conselheiros. Com a morte de Banna, nos anos 50, um novo líder surge. Mais radical e mais influente que Banna, Sayd Qutb elegia como o "Grande Satã" os EUA devido á seu desrespeito para os seus próprios preceitos morais (ele se referia á religião cristã) e do Islã e apoiava toda sorte de atentados terroristas. Qutb foi preso e executado pelo governo de Nasser em 1966, o que lhe garantiu uma onda de violência. Mas a influência de Qutb já era grande demais: a direção que ele imprimiu á Irmandade Muçulmana pode ser responsável pela criação, nos anos seguintes, de grupos como o Hamas, Jihad Islâmica e o Hezbollah.

A derrota para Israel na Guerra dos Seis Dias (1967), a execução de Qutb e os fracassos da Liga dos Países Não-Alinhados e de uma República Árabe Unida com a Síria pesavam contra Nasser que faleceu no começo dos anos 70. O mundo árabe ficou órfão de um líder influente como ele (Yasser Arafat tentou em vão ocupar esse posto anos depois). Seu seguidor, Anwar Sadat ocupou o governo do Egito e decidiu levantar o país da inflação e do caos político. Sadat percebeu que a solução para o seu país passava pela paz e iniciou um diálogo com as autoridades israelenses. O diálogo resultou numa visita ao Parlamente israelense (Knesset) em 1977 e o Acordo de Paz de Camp David entre Sadat e Menachin Begin, premiê israelense de então. A aproximação com Israel custou a vida de Sadat, assassinado por membros da Jihad Islâmica em 1981. Seu sucessor foi Muhammed Hosni Mubarak, então membro do Estado Maior de Sadat, que desde sua posse demonstrou seu interesse em continuar a colaborar com o mundo ocidental e reprimir as organizações terroristas em seu país. Mubarak foi contudente e conseguiu diminuir e muito o alvo de atuação dos terroristas. Durante seu governo, a Irmandade Muçulmana renegara um pouco a imagem de Qutb, tornando-se mais moderada, mas mesmo assim defensora aguerrida do Islã.

Mubarak tornara-se um importante aliado tanto para os EUA quanto para Israel nesses últimos 30 anos, como podemos ver. Há anos no poder, Mubarak tem investido no turismo e no comércio, mas mesmo assim o país não tem se conseguido reerguer desde a crise financeira de 2008. Mubarak tornou-se símbolo de um pan-arabismo frustrado, que não conseguiu alcançar seu objetivo: desenvolver o mundo árabe. O Oriente Médio se encontra atualmente dividido em ditaduras e regimes fundamentalistas, onde pobreza, corrupção e violência são palavras-chaves, sede dos conflitos mais sangrentos de nossa época. O que aconteceu? Essa situação foi provocada pela combinação de fatores externos (guerra fria) e internos (grupos terroristas, pequenos movimentos nacionalistas, pan-arabismo, etc).

No entanto, protestos iniciados na Tunísia por causa de um jovem que ateoou fogo ao próprio corpo por ter perdido tudo que tinha culminou na expulsão do ditador Muhammed Zine Ben Ali e a formação de um novo governo popular em janeiro desse ano. A revolta se transformou em onda, espraiou-se pelo Iemên, Síria, Argélia, Marrocos, Mauritânia, dentre outros, e encontrou seu caso mais emblemático no Egito. Há dias manifestações na praça Tahrir, região central do Cairo, pedindo a saída de Mubarak do poder tem conquistado a atenção do mundo. A oposição, articulada entre setores mais liberais e a Irmandade Muçulmana, tem atacado o dirigente, que fez até algumas concessões, mas não arreda a idéia de fazer uma transição "lenta, segura e gradual". Negociações começaram essa semana, entre os líderes da oposição, destacando o premiado cientista Mohammed El-Baradei, e o governo, tendo como principal articulista o Exército (que conquistou essa posição de força com a chegada dos Oficiais Livres em 1940).

Por que devemos acompanhar essas mudanças? Estamos presenciando uma transformação que pode mudar a cara do Oriente Médio, para bem ou para o mal. Interessante é como essa transformação tem um caráter original: diferente das outras "revoluções" no mundo árabe, nessa muito dos atores políticos locais e internacionais que manobravam a política regional agora são, como disse um analista, meros espectadores. Daí o medo de Israel, EUA e até do Irã. O cenário no Egito é tão inovador, tendo em vista o que acontece na região nos últimos 30 anos, que ninguém sabe onde isso irá parar. Além disso, o Egito tem um caráter de vanguarda na região. É possível que as transformações ocorridas ali se alastrem para a maioria do Oriente Médio.

Nenhum comentário:

Postar um comentário