quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Rio 40 Graus



É hora de falar sobre um assunto marcante desse ano que está se acabando, talvez, para os brasileiros, um dos mais marcantes do ano: a guerra contra a violência no Rio de Janeiro.
Como historiador, não posso abordar o assunto sem antes dar um panorama histórico que desembocou nesse evento. Como carioca, sou impelido a não só dar meu depoimento e minha opinião sobre o assunto como também propor algumas soluções. Mas, daremos aqui um passo de cada vez; primeiro, um rápido painel histórico.
A violência existe em toda cidade grande e geralmente é fruto de uma série de fatores presentes na construção do espaço urbano, como as políticas públicas de urbanização. Caso clássico: o projeto urbanístico da cidade não contempla os grupos mais carentes da sociedade, pelo contrário, procura os esconder o máximo. Em Manaus, eles foram escondidos nos igarapés, no Rio nos morros. Mas, atenção, a marginalização urbana não determina a violência, é apenas um dos seus fatores mais gritantes; a proliferação da violência depende, por exemplo, das más condições educacionais e econômicas.
O Rio de Janeiro previsto pelo prefeito Pereira Passos era uma nova Paris, no entanto, para viabilizar seu sonho os pobres foram empurrados para os morros de onde surgiram as favelas. Favela, como se sabe, vem das favas, um tipo de feijão com gsoto de carne que eram plantados principalmente nesses morros por seus moradores. Seus habitantes costumavam vendê-las nas feiras na cidade, aliás, por causa das plantações no alto dos morros que veio o nome de uma das mais emblemáticas favelas da cidade, a Rocinha. Ou seja, tal fato demonstra que o morro e o asfalto estavam separados e ao mesmo tempo ligados.
Os imigrantes, principalmente do Nordeste, engrossam os barracões das favelas. A cidade, durante todo o século XX, por ser a capital, enche-se, melhor, incha-se. Mas esse inchamento não foi devidamente tratado pelas políticas públicas. Um grande exemplo pode ser a própria Cidade de Deus, construída para abrigar os moradores pobres do centro do então Estado da Guanabara que teriam suas terras originais tomadas para construir um belo condomínio residencial. Essa medida, diferente da de Pereira Passos (operada entre os anos de 1900 no Rio), foi feita nos anos 60 pelo governador da Guanabara Carlos Lacerda.
Correndo o risco de cair em generalizações, quase todos os governos cariocas parecem repetir a mesma atitude ambígua para com os morros: endossar sua ocupação e ao mesmo tempo desprezá-la. O morro deixou de ser tabu a pouco tempo. Na década de 30, quando o cineasta Humberto Mauro tentou filmar uma história sobre moradores do morro, foi preso e acusado de comunismo. Mesmo os diretores do Cinema Novo foram repreendidos pela própria população da cidade por mostrarem os morros em seus filmes, no entanto, eles contribuíram para a quebra desse tabu.
Os morros não representavam um perigo, apenas um inconveniente. Essa situação muda a partir dos anos 70 quando começam a surgir as primeiras organizações criminosas como o Comando Vermelho. Essas organizações, a partir dos anos 80, saem dos assaltos a bancos e entram em um negócio muito mais rendoso: o tráfico. Contudo, nesses primeiros anos, o Rio era apenas um entreposto comercial para a rota das drogas (a maioria ia para os EUA ou para a Europa). Mas pouco a pouco, a cidade passa a ser uma consumidora também, a tal ponto que o objetivo das drogas agora não são tanto os EUA, mas a própria cidade.
Agora, se me permitem, darei meu depoimento sobre a violência no Rio nos anos 90, porque foi neles em que eu fui criado. Na época não tinha nenhuma noção do que representava o tráfico, mas sabia muito bem associar as imagens dos bandidos e de seus ataques á violência. Na época sempre aparecia nos jornais o nome do Escadinha, um dos mais famosos membros do CV, responsável por uma fuga de helicóptero da cadeia de Ilha Grande. Além disso, haviam notícias sobre o Morro de Santa Marta a toda hora; muitas batidas policiais violentas foram documentadas ali. E havia ainda o espectro da Chacina de Vigário Geral. Mesmo não sabendo o que significava chacina já podia perceber que era uma palavra que mudava a expressão das pessoas instantaneamente.
Esses são apenas alguns casos dos quais me lembro, mas existem muitos outros que tomei melhor conhecimento hoje, seja por curiosidade, seja por histórias da família. Mas uma coisa é interessante: essas notícias, pelo menos na minha memória, vinham sempre acompanhadas de denúncias de corrupção por parte dos políticos locais. Era a época de Luís Paulo Conde, Marcelo Alencar, César Maia, Leonel Brizola, Garotinho. A política também não ficava atrás: o secretário de segurança do Rio, Nilton Cerqueira, se tornou folclórico por matar Lamarca e pela criação da "medalha Bangue-Bangue", uma premiação para o policial que mais bandidos matasse.
Esse triste painel que peguei em minha infância e que acompanho desde então produziu em mim, e não só em mim como na maioria das pessoas que conheço, a desilusão com qualquer tipo de mudança na política e sociedade da cidade. A corrupção já havia se enraizado no poder público e na polícia, a ponto de se tornar, como muitos analistas dizem, cultural. Onde o Estado não estava, crescia o tráfico e a violência. As organizações criminosas se proliferaram: ADA, Comando Vermelho, traficantes independentes. Além, é claro, dos grupos de extermínio, mantidos por policiais, e as milícias.
Nosso pessimismo dizia que uma mudança que viesse para solucionar o crime no Rio só viria quando a situação estivesse insustentável. A onda de violência em que a cidade mergulhou desde que as Unidades Pacificadoras da Polícia tomaram alguns bairros nos fez tremer, mas não imaginássemos que algo seria feito. Então, temos a tomada da favela do Cruzeiro e a imagem emblemática dos traficantes fugindo naquela estrada de terra. Logo depois a tomada do Complexo do Alemão. Confesso que tanques andando pela favela eram mais ou menos aquilo em que eu imaginava no dia que resolvessem acabar com o tráfico no Rio, tal o ponto de periculosidade e força atingira os traficantes.


A população cansada de guerra apoiava dessa vez os policiais e militares. Todos estão cansados desse status quo, de viver com medo, essa é a verdade. Nós tínhamos medo de demorar muito em nossas visitas aos parentes, preocupados em ser atacados por bandidos, policiais, quem quer que fosse. Toda semana notícias de mortes na Avenida Brasil, além das habituais vítimas, inocentes, nos tiroteios entre a polícia e os bandidos.
A tomada dessas favelas representou, especialmente para mim, um ato tão inesperado quanto o contato com extraterrestres. Recuperei um pouco da minha esperança nas mudanças, no entanto, minha desconfiança logo retornou. A imprensa mostrava uma luta do bem contra o mal, apareciam políticos discursando na tv sobre a necessidade de ser firme contra o crime. Alguns reconheciam que a tomada dos territórios do tráfico era apenas o primeiro passo. Concordo. O segundo passo é uma reestruturação desses territórios, tornar acessível educação e saúde á essas pessoas que sofreram tanto. O terceiro e o mais difícil seria uma reestruturação da própria política e da política, de forma a extirpar a corrupção de seus quadros. Ora sem esses dois passos o tráfico pode voltar facilmente, pois, não sejemos íngênuos, os traficantes foragidos ainda estão por aí e planejando.
Minha apatia, creio que seja algo que compartilho com a maioria dos cariocas, com a política e a polícia, me diz que o terceiro passo, e mesmo o segundo, estão muito longe de serem concretizados. Mas essa é uma hora para refletir nossos pessimismos, não só as atitudes do governo, mas de nós mesmo. Será que nossa apatia não permitiu a consolidação desse status quo também? Fica a pergunta.

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