segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O negro para Freyre e Caio Prado

Envolvido recentemente em um projeto sobre a participação do negro e do indígena na construção da sociedade brasileira e amazonense, direcione-me a pesquisar e analisar o tema dentro da historiografia e me centrei nestes dois monstros sagrados do pensamento brasileiro.
Vejamos, pois, o pensamento deles primeiro e o que cada um pensava sobre o negro e posteriormente estabeleceremos algumas ligações entre estes autores aparentemente tão diferentes:
Gilberto Freyre, descedente de uma tradicional família pernambucana envolvida visceralmente com os engenhos, era um homem que gostava do passado. Em vários textos manifesta o interesse que tem em preservar o passado. Esse interesse está vinculado a uma imagem que tem sobre a sua região e seu país: aqui temos uma sociedade mais afetiva, pautada pelas emoções, pela aproximação. A imagem se consolidou mais ainda quando foi estudar antropologia na Universidade da Colúmbia nos Estados Unidos, pois lá ele viu uma sociedade mais fria, regulada mais pelos impessoalismos, pelo capitalismo.
Incentivado pela curiosidade e pelo orgulho de sua tradição, Freyre entra na pesquisa sobre a história do seu país, e, principalmente, de sua querida Pernambuco. Desce esforço nasce Casa Grande e Senzala (1933), um livro muito muito ambíguo, revolucionário por um lado e conservador por outro. Até então acreditava-se que o maior obstáculo para o Brasil se desenvolver era a sua origem racial vinculada demais ao negro e ao índio, por meio dos mulatos e caboclos que apinhavam o país. Freyre, influenciado pelos estudos culturalistas de seu professor americano Franz Boas, critica a idéia de raça e coloca o problema na formação social do país - o patricarcalismo e o latifúndio - , enquanto tenta derrubar essa idéia de que o negro é um ser inferior, demonstrando a força de sua cultura, e em determinadas vezes os seus potentes e belos atributos físicos. Essa é a faceta revolucionária de sua obra. No entanto, quando Freyre valoriza nossa miscigenação também defende que a escravidão não foi tão horrível assim, pois o patriarcalismo e o pessoalismo do africano contribuíram para criar canais de aproximação, onde tanto o senhor como o escravo poderiam estar mais próximos, e a prova maior disso seria a grande profusão de mulatos pelo país, a maioria ocupando cargos intelectuais de prestígio como os escritores Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Farias Brito, Lima Barreto, etc... Essa é sua faceta conservadora. Freyre quer preservar esses canais de aproximação, não quer que a modernização, que se esboça agora com a ascensão de Getúlio Vargas, acabe com ela, importe um modelo frio e impessoal como o americano ou o europeu. Só que essas relações são exatamente a clientela, o apadrinhamento, mecanismos para impedir conflitos entre classes e etnias.
Mas vamos á visão que Freyre tem do negro, ponto essencial de sua obra: para o antropólogo pernambucano, o negro fora degradado, não pela genética ou pela geografia, mas pela instituição implantada pelos portugueses chamada de escravidão e pela doutrinação do catolicismo. O negro foi alçado á condição de coisa e infiel, embora dentro do universo patriarcal, onde o senhor é o dono de tudo, ele tenha conseguido, por vezes o status de homem ou mulher, seja como agregado, amante, mucama, capataz, etc...O fato é que no começo do século XX o negro continua degradado, marcado pela escravidão, está no fundo do poço. A única maneira de ascender socialmente é se livrando um pouco de sua cultura, e não há melhor símbolo que isso se não a mestiçagem.
Ao pregar uma campanha pela miscigenação como forma de reabilitar o negro, Freyre coloca-se, consciente ou inconscientemente, á favor da diluição de sua cultura em nome de uma pretendida ascensão social, ou seja, o mulato é a maneira do negro tentar alcançar o mundo permitido aos brancos, o mundo da civilização. Para isso ele terá de se despir um pouco de sua cultura. Raros, dentre os autores citados, são aqueles que não eram doutrinados no eurocentrismo - um exemplo: Machado de Assis era um profundo conhecedor da cultura clássica e se ressentia por ser chamado de mulato, embora tenha lutado pela abolição e muito.
Caio Prado Júnior também vinha de uma tradicional família, sendo esta paulista e envolvida no comércio de café. No entanto, Caio não era muito contaminado pelo barrismo que dominava na época de sua juventude o estado paulista. Ele tinha uma enorme curiosidade em conhecer o resto do Brasil. Enquanto estudava para se tornar bacharel entrou em contato com a obra de Karl Marx e viu nele um grande gênio. Desde então Caio se tornou um grande divulgador de sua idéias. O interesse por entender o seu país encontrou um grande companheiro no materialismo dialético do filósofo alemão. Assim, Caio escreve o primeiro trabalho de história do Brasil a utilizar o pensamento marxista no Brasil com Formação do Brasil Contemporâneo (1945).
No livro Caio identificava a razão de nosso subdesenvolvimento, pergunta capital para todos no momento que estivessem envolvidos na análise e interpretação da história do Brasil, no sentido da nossa colonização: abastecer a metrópole. Ou seja, o Brasil, desde sua formação até a sua independência foi orientado para suprir exclusivamente outro país de tal forma que essa medida se tornou parte visceral de nossa sociedade. Desde a independência até hoje (anos 40) o Brasil continua a fazer isso, a transferir capital para o estrangeiro e depender tanto economicamente como culturalmente dele - haja visto a importação da moda e do estilo de vida francês que imperava nos primeiros anos do Brasil República.
o interesse de Caio Prado não era necessariamente o negro na formação da sociedade brasileira, mas a economia colonial, por isso ele não falou dele com muito afinco como Freyre, mas é possível identificarmos seu pensamento sobre ele em algumas passagens de seu livro. Caio acredita que a escravidão degradou o negro ao transformá-lo em coisa e o envolvê-lo numa cortina de preconceitos. Esta instituição, instrumento do mecanismo colonial, criou uma sociedade estamental, onde era impossível um senhor se relacionar com o escravo a não ser pela exploração e pelo ódio. O negro estava impelido de ter voz pelo colonialismo, através da escravidão, tanto que a abolição não partiu dele, mas de um fração da elite dirigente. Com a República sua situação não mudara muito, a cor ainda era um impecilho para a ascensão social. Essa era a herança maldita da escravidão, a incapacidade de ascensão social. Este era um dos grandes obstáculos para a modernização do país.
Agora, veremos as semelhanças e diferenças entre o antropólogo pernambucano e o economista paulista: Perceba, tanto Freyre como Caio Prado enxergam na escravidão a palavra-chave para a degradação do negro, no entanto, um considera que a natureza orgânica da sociedade brasileira amenizou um pouco esse entrave, enquanto outro diz o contrário, isto criou uma sociedade inorgãnica, profundamente hierarquizada. Quanto ao remédio eles também diferem: Freyre prega a valorização da miscigenação, enquanto Caio fala de uma revolução social, apoiada não nas armas ou em um partido político, mas em uma série de reformas na educação, na saúde e na economia, para acabar com a sociedade hierarquizada brasileira, e com ela, evidentemente, o preconceito racial.
Fontes:
COSTA, Emília Viotti da. Da escravidão ao trabalho livre. in COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia á República: momentos decisivos. Cia das Letras: São paulo, 1999.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. José Olympio: Rio de Janeiro, 1975.
LAPA, José Roberto do Amaral. A Formação do Brasil Conteporaneo - Caio Prado Jr. in MOTA, Lourenço Dantas (org.) Uma introdução ao Brasil: um banquete nos trópicos. Cia das Letras: São Paulo, 1999.
PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Brasiliense: São Paulo, 2000.

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