(Resenha de Panorama da Filosofia Brasileira, Ricardo Vélez Rodríguez, acesso aqui.)
Roberto Schwarz chamou a atenção, em um já antológico artigo, para o status de nossa história intelectual, onde as idéias estão sempre fora de lugar, onde o pensamento anda em descompasso gritante com a realidade. Maria Sylvia Carvalho Franco respondeu em outro artigo propondo que as idéias estão exatamente no lugar, pois a construção de nossa sociedade foi feita para ser assim: culturalmente deslocados da realidade o pensamento e a reflexão. Afinal, onde estão as idéias?
Pode ser que o painel da filosofia brasileira exposto pelo filósofo e pesquisador colombiano Ricardo Vélez Rodríguez nos ajude a responder essa questão. Velez nos fala de nossa origem vinculada á segunda fase do tomismo, essa mais rígida e dogmática por conta da Contra-Reforma, na qual não se sobressai a crítica, mas a transmissão de um conhecimento dogmático nos colégios jesuíticos. É um saber muito barroco ainda.
No entanto, surge no século XVIII o que o autor chama de empirismo mitigado, por guardar algumas características do pensamento de John Locke. O empirismo mitigado queria transformar a filosofia em ciência aplicada, Portugal o irradiava para a sua colônia, criando uma elite formada nessa corrente meio cientificista. É bom que se diga que essa corrente partiu das idéias do grande reformador português, o temido Marquês de Pombal, e teve uma má recepção entre os (muitos) defensores do tomismo no Brasil. No entanto, é bom que se diga, o empirismo mitigado tornou-se o escopo ideológico dos nossos homens públicos desde a vinda da Família Real para o Brasil.
O liberalismo chega ao Brasil por meio do ministro de D. João VI, Silvestre Pinheiro Ferreira, que ajuda a formular o sistema representativo (mais tarde institucionalizado pelo Visconde do Uruguai) nacional, extirpando dele o liberalismo radical, aquele praticado pelos líderes da Revolta Praieira e pelos revoltosos de 1842. O problema da liberdade será abordado depois por Eduardo França e Domingos Gonçalves Magalhães, dois pensadores que falam num momento de construção da nação e por isso escrevem sobre a importância da família e da pátria, principalmente o último (conhecido como um dos pioneirosdo romantismo brasileiro).
O autor fala que era comum nossos pensadores unirem as diversas correntes, principalmente o espiritualismo, e tentar extrair delas um pensamento síntese. Classifica estes de pensadores ecléticos. Os ecléticos seriam ofuscados a partir das últimas décadas do século XIX por um "surto de idéias novas" que estavam entrando nos meios acadêmicos agora e que eram contrárias ao espiritualismo, como, por exemplo, o darwinismo, o monismo e o positivismo.
O positivismo se torna o hegemônico e o autor nos fala que, graças ás singularidades de alguns setores que o adotaram, ele se dividiu em 3 tipos: o positivismo ortodoxo, praticado pela Igreja Positivista Brasileira de Teixeira Mendes e Miguel Lemos; o positivismo ilustrado, aquele que dá enfâse á construção de uma nova ordem social, a última etapa da evolução da humanidade; o positivismo político, praticado principalmente por Júlio de Castilhos, no qual, ao contrário do que dizia Comte, o Estado forte deveria moldar a sociedade, construir a nova ordem; e, por fim, o positivismo militar, que unia o pombalismo ao positivismo, elegia o Exército como o elemento que traira a nova ordem social.
Apesar da hegemonia, o positivismo sofreu duras críticas dos pensadores reunidos ao redor da Escola do Recife, gente como Tobias Barreto, Sílvio Romero, Clóvis Bevilacqua, dentre tantos outros. A maioria deles se dedicou a estudar a epistemologia e a praticar um kantismo meio transcendente.
Descendente distantes do liberalismo radical, os liberais das últimas décadas do século XIX criticam não só o positivismo, mas também nosso sistema representativo por ter sido construído em cima de ideais conservadores do liberalismo, anti-democráticos. Seu grande representante foi o Partido Liberal (entre 1860-1870). Os conservadores também foram importantes no campo das idéias, inspirando-se principalmente nos tradicionalistas franceses, embora fossem muito mais tolerantes que eles, como observam muitos pesquisadores. Sua crítica era ao racionalismo e sua apologia á Igreja Católica, a monarquia e a família.
Vem o século XX e o castilhismo, que conquistara então o Rio Grande do Sul, torna-se nacional com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder em 1930. O positivismo ortodoxo se esvai, o ilustrado passa a defender a democracia liberal e o militar se funde, a partir de 1930, com o castilhismo. O espiritualismo, representado na figura de Farias Brito, volta a crescer e influencia e muito os pensadores tradicionalistas e ultramontanistas (ligados ao projeto de ortodoxia da Igreja Católica no começo do século).
Duas novas correntes aparecem aqui: o culturalismo e o marxismo. O culturalismo, herdeiro da Escola do Recife, privilegia a ação do homem e o que ela produz, principalmente a cultura.O maior representante dessa escola seria Miguel Reale, por muitos considerados o maior filósofo do Brasil. O marxismo aqui chega com Caio Prado Jr., mas torna-se cada vez mais dogmático, apesar das ações de muitos de seus pensadores, incluindo o próprio Caio, para tentar torná-lo mais crítico.
O existencialismo aqui também aparece, em dois momentos: o primeiro com a visita de Sartre ao Brasil e com os estudos sobre Heidegger nos anos 70. Neste momento, inclusive, o existencialismo se ligará com a tradição espiritualista.
O autor salienta o papel das instituições para fomentar a filosofia no Brasil,basta lembrarmos que as escolas mais profícuas foram aquelas que tinha instituições próprias para o debate, como a Escola do Recife, o ISEB, o Centro D. Vital, etc. Com a chegada dos programas de pós-graduação a situação parece estar mudando, ficando cada vez mais frutífera para o pensamento nacional.
Uma vez exposto todo esse imenso e colorido quadro intelectual de nosso país, voltemos á pergunta inicial: as idéias estão fora ou não de lugar? Ora, a maioria das correntes que vimos foi bastante influenciada por correntes estrangeiras, principalmente as francesas. Ponto para Schwarz. No entanto, é bom lembrarmos disso, é dinâmica própria do pensamento, seja onde for, ele evoluir a partir da influência externa, de demais centros de produção de conhecimento, e das mudanças de sua própria sociedade. O fato é que na nossa sociedade, graças ao nosso modelo de colonização, temos uma dependência muito grande para com os grandes centros, afinal o mecanismo da colonização foi feito para criar centros e periferias e mantê-los assim. Nossa entrada no capitalismo modificou muito pouco isso.Ponto para Maria S. Carvalho Franco.
Mas isso não quer dizer que não há originalidade no que produzimos, muito pelo contrário. A união de idéias modernas com as tradicionais, como vimos, foi responsável pelo nascimento de inúmeras correntes importantes, como o culturalismo ou o ecletismo. Vélez enfatiza muito isso, até na metodologia em que usa. Aliás, o fato das idéias estarem fora de lugar, olhando pela ótica do pensamento político, também tem sido o propulsor de mudanças sociais no nosso país nos últimos anos, como bem lembra Bernardo Ricupero. A falta de coerência entre a teoria e a realidade motivou quantas e quantas reformas, manifestações, golpes, projetos e processos, enfim, nas últimas décadas? O lugar das idéias, como vimos, é um tema importantíssimo.
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