domingo, 4 de agosto de 2013

Vinte e quatro horas

VINTE E QUATRO HORAS
Vinicius Alves do Amaral

A noite passava por nós. Com a cara emburrada, devo acrescentar. Também não era pra menos: por mais de três horas só fazíamos discutir. Contudo, todos sentados, encarando argumentos com os olhos vidrados enquanto a cerveja esquentava. E tudo por causa de uma mosca.
Explico: Pouco antes de chegar ao bar do fim da esquina tinha lido um ensaio do Enrique Vila-Matas[1]. Conheces? Enfim, era um ensaio sobre uma escritora para qual  se escreve para ver uma mosca morrer. Como de costume, apresentei minha última leitura com ironia e Nagle aparou meu sarcasmo com suas colocações.
Concordava com ela por causa disso, disso e isso. O gole afoito que dei apenas alimentou minha sanha demolidora. Quer dizer que você escreve para matar moscas? E eu achando esses anos todos que fumacê e inseticida resolvia esse problema.
Ávila sentiu os raios se formarem na retina de Nagle e dirigiu-se ao balcão onde achou alguns amigos instantâneos.  Sempre respeitoso, meu colega de debate de mesa de bar alegou que não tinha entendido a verdadeira essência da frase da nobre colega escritora: o que ela queria dizer é que a escrita serve para captar momentos da vida. Questionei se a morte de uma mosca era um momento adequado.
-Justamente aí que está a questão: o que é um movimento adequado? Quem pode dizer isso? Você? Eu? Qualquer um pode dizer. A literatura é extremamente livre para firmar qualquer fato, por mais banal que nos pareça, como singular. Aliás, é essa capacidade extraordinária dela que permite que reaprendemos a prosa do mundo.
Sempre me incomodou o jeito como Nagle fala: como se estivesse ditando, como falasse para ser escrito. Evocava sempre Proust, Dotoievsky, Lispector, Pessoa. Pra quê esse exército? Mas para mim a questão sempre foi outra. Para mim, singularizar o banal não bastava por si só. Para mim, brincar com palavras não define essa estranha arte de escrever. Para mim, literatura sempre foi autoconhecimento. Escrevemos para sermos lidos, não para aprendermos a ler.
-Mas quem disse que não se trata de autoconhecimento também? Quando você transforma a morte da mosca em uma tragédia você está apresentando-se a si e aos outros, mas de forma muito mais sutil. Vamos fazer esse exercício. Descreva a morte da mosca.
-Nagle, por que me obriga a essas coisas? Maior mico...
Enfim, depois de insistir por longos dois minutos aceitei o desafio.  Revolvi meus neurônios por alguns instantes e saiu mais ou menos isso:
-Cansada sobre a parede, pensei qual seria a próxima parada – a lixeira ou a pilha de pratos sujos – quando fui surpreendida pelo peso da morte. Esmigalhada, só pude ver vagamente seu contorno: retangular e vazada por pequenos furos...
-Viu? A sua morte da mosca é bem a sua cara. Descritiva, meio cínica...
Como você mataria a mosca, ó guru das letras?
-Vejamos... Nagle pensou, saiu do nosso mundo e só voltou com uma resposta.
Asas pesadas, olhos cansados.
O mundo a me esmagar.
Ao terminar seguiu um breve mais profundo silêncio na rua – um desses momentos bizarros em que o barulho tira uma folga – e Nagle, resoluto após seu ponto final, proferiu de forma mística: Preciso escrever isso!
Enquanto anotava no guardanapo os trechos futuros de sua morte da mosca, perguntei qual seria o título dessa “obra-prima”. Vinte e quatro horas, respondeu.



[1] Trata-se do ensaio Escreve-se para olhar como morre uma mosca de Enrique Vila-Matas sobre a escritora francesa Marguerite Duras.

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