sábado, 20 de abril de 2013

Cidade-esfinge


Estava eu sentado num dos milhares de banquinhos que circundam o Largo São Sebastião quando decidi por absoluta falta do que fazer admirar o chão. Sim, o calçamento da Praça é feito de pedras pretas e brancas, simulando as ondas do mar - lembrar muito o calçadão de Copacabana.
Então percebo que não era o único leso contemplando aquele tabuleiro. Do cordão de mangueiras surgiram duas figuras - talvez já estivessem lá e minha miopia não me avisou  - e andaram calmamente até o centro da praça. Lá pararam. O objeto de admiração era outro agora: o monumento de abertura ao portos.
Me chamou a atenção esta dupla pela perfeita união de contrastes que formava: um era mais alto, o outro baixinho; um era negro, o outro brancão; esse era velho, aquele jovem...
Arriscaria dizer que o rapaz era haitiano e o senhor era estrangeiro - possivelmente italiano ou francês. E digo mais: esse velhinho com certeza era um padre. Não precisaria ser um Sherlock Holmes para descobrir: o colarinho denunciou.
Ainda que o sacerdote não fosse de Manaus tenho a impressão de que estava em Manaus já há um tempo, uma vez que era o guia do jovem haitiano. Ele falava do calçamento, do chafariz, as estátuas. Apontava para a nau que representava o continente africano. O rapaz só ouvia. Não disse uma palavra. Seus olhos dissecavam o monumento e a praça acompanhados pela voz cadente do vigário (a essa altura já tinha quase certeza que era vigário... ou então monsenhor?). Espremia os olhos até o bagaço. Um óculos não faria mal, com certeza.
Ousei ir pouco mais longe na minha intromissão e imaginar o que aconteceria daqui há alguns meses: talvez esse mesmo rapaz volte aqui e apresente ao seu primo que acabou de vir do Haiti o calçadão ondulado e o monumento apinhado de sinais. Acreditando que depois disso seu primo poderá ler a cidade sem ter que espremer a visão. O idioma não será mais desconhecido, nem o ambiente tão alienígena. As surpresas, essas sim continuarão. Nem os mais experientes viventes da cidade estão isentos de uma nova lição de Manaus.

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