Desde que o amado coronel deixou
de servir á geladeira para ser servido na mesa de jantar um clima melancólico e
filosófico pairava no ambiente. E a inquietação cheirava a queijo gorgonzola.
O que será de nós? Qual nosso
destino: a barriga ou a lata de lixo? As perguntas se multiplicavam, os
alimentos se angustiavam. Então, algo ocorreu: um belo dia um visitante
apareceu na geladeira. Chamava-se Leite Desnatado. Ao contrário do seu primo
integral, esse era muito simpático. Mesmo assim todos desconfiavam de sua
bondade. “Nunca confie em um latícinio sem nata!”
Dias depois o gorgonzola foi
substituído por um parente sem gordura. A Abobrinha confessou ao Pepino que
sentia saudade até do fedor. Esse novo morador parecia correto e light demais.
O Sanduba natural vivia rindo. Os refrigerantes se tornaram espécie rara. Em
seu lugar, sucos de tomate e energéticos.
Logo, ficou claro aos moradores
antigos que se tratava de uma invasão. A invasão dos sem sabor! Assim proclamou
aos quatro ventos o profeta mofado. Em reação, o Sanduba se pronunciou:
-Melhor sem sabor que ser cheio
de gordura e colesterol!
-Mano, eu posso ter um monte de
defeito, mas ainda sou gos-to-sa!, respondeu a fatia de bacon rebolando.
O refrigerante passou a atacar o
suco natural de limão – é natural e só dá afta!
-Eu dou afta pelo menos e você
que dá câncer!
-Isso é calúnia! Nada foi
comprovado! Aqueles estudos foram feitos pela Pepsi!
-Ah, fica quieto e vai lá com a
sua pipoquinha! Sua colega aí, Fanta Laranja, precisa chacoalhar pra ficar
gostosa, senão fica o pozinho todo no fundo. E ainda vem falar de mim?
-E você por acaso é muito limpa?
Tá precisando de uma peneirada urgente, fulaninha!
O energético de tão hiperativo
não conseguia completar nenhuma frase. O iogurte e o leite desnatado trocavam
farpas e natas. Até o gengibre se
manifestou! O chá de boldo ficou do lado dos colesterentos:
-Afinal, se ninguém comer eles,
fico sem trabalho!
A baderna generalizou-se e sobrou
até para os calados. A picanha encarava o kiwi:
-E você, peludinho, não vai falar
nada?
-Ele é verde por dentro, só poder
ser um espião!
-Vai dizer que o Kiwi é feito de
soja? Me poupe!
Ao ouvir o nome “soja”, o profeta
mofado soltou um berro:
-A soja dominará a geladeira!
Foi a única previsão certeira em
toda sua carreira profética. Mas a batalha se alongou por horas. O peito de
frango ameaçava sair da bandeja para dar uma lição na ricota. Emboscado por
integrantes da gangue da Sopa Verde, o chocolate nunca mais foi visto. O leite
condensado de tão esquentado se tornou doce de leite. A banana era toda
potássio e tranquilidade: podia ser frita ou simplesmente descascada, fosse
como fosse ainda teria espaço para ela aqui.
As coisas só se aquietaram quando
as mãos apareceram. Pegaram justamente a fatia do bacon que deu uma risadinha
debochada para seus desafetos saudáveis. Mal sabia ela que não seria digerida,
mas descartada. Para o lixo foram a maioria dos gordurosos e habituais
alimentos ao fim de uma semana. Despediam-se ás lágrimas, mas em breve se
reencontrariam na lata de lixo para compartilhar as mágoas.
Quando o Pão Mofado foi retirado
detrás da panela de pressão pelas mãos começava assim o reinado dos sem sabor.
Eles já tinham chegado á todas prateleiras. Agora finalmente iniciaram seu
governo utópico. Os melhores alimentos
fariam dessa a melhor geladeira, assim pensava-se. Os intocáveis da gaveta de
legumes e algumas frutas não apoiavam de todo o novo regime.
-Nós dependíamos deles, cara. Sem
o pão de hambúrguer e a carne ninguém se lembra de nós. Sozinhos não somos
nada! – confessava o tomate ao alface em tom de lamento. O parceiro tentava
consolar:
-Calma, calma! Nós sempre teremos
a salada...
A banana, uma das frutas mais
assanhadas, já sentia falta de suas relações:
-Ah, como eu sinto saudade de ser
amassada ao feijão. Como era bom eu ser derretida ao açúcar e a canela e ser
coberta todinha pelo mel. Ah, bons tempos...
E em pouco tempo os novos
alimentos encontraram seu novo guru: o Pimentão. Quando ele repentinamente
mudou de cor – de verde para vermelho – todos na geladeira ficaram pasmos. “Conte-nos
seu segredo, mestre leguminoso”, exigiam. Foi a chance que encontrou para sair
do esquecimento e doutrinar seus colegas. Logo ele que reclamava tanto do
coronel berinjela...
O guru light podia ser verde por
dentro, mas ainda assim era dos mais amargos. Não demorou para que alguns o
desprezassem e outros se lançassem em sua defesa. Assim, a sociedade perfeita
de alimentos perfeitos se via já comprometida por toda sorte de fofocas, rixas
e panelinhas. As mãos podiam ter envelhecido, mas as brigas dentro da geladeira
continuavam as mesmas. A panela de pressão quase apitou quando descobriu atrás
de si, para sua surpresa, um pão que já desenvolvia alguns fungos.
Ele perguntou se incomodava. Se
fosse o caso poderia mudar de lugar.
-Não, meu jovem, não saia de onde
está por nada! Há um mundo perigosíssimo lá fora. Que mal lhe pergunte, mas
você já teve alguma visão?
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