segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Faroeste Caboco: As balas mandam lembranças III


O silêncio. Nem canto de pássaro nem zumbido de mosca. Então, veio aquele som. Lembrava um mugido de boi. Mas não. Era o rugido de raiva do motor de um Opala 77 prestes a destruir o portão de madeira do Sítio Castanheiras. O carro atravessou não só aquelas ripas de madeira como também a varanda da casa.  Só parou quando destruiu a porta, deixando seu para-choque a meio metro do sofá onde Toninho estaria dormindo.
Mineiro, se recuperando do impacto, vê o que sobrou da porta caído no capô.
-PUTA MERDA! O tio vai me comer vivo!
Um estampido. Lá se foi o retrovisor. Do corredor alguém saíra atirando. Dois, três, quatro tiros. André dá a marcha ré. Sem se preocupar para onde ia, esbarra na caminhonete de Toninho. Sai do carro e se joga para baixo da picape do seu inimigo. Destrava o 38 do pai, procura pela faca. Está na bainha em sua cintura. Não vê mais Toninho, não ouve mais tiros. Novamente o silêncio. 
Procura agora pelo outro pente com as balas. São poucas, não vai desperdiçar. Atirar, só quando ter certeza. Da janela da casa vê uma coisa. Vai arriscar: é a cabeça de Toninho. Atira, mas acerta somente o parapeito da janela. Capa Preta não perdoa e solta dois balaços na direção dos carros. Não sabe onde está o cara, não sabem nem se é um só.
Mineiro não está mais debaixo do carrão batido. Ele se embrenhou no mato e vai dar a volta na casa, tentar entrar pelos fundos. O matador se irrita com a falta de tiros. Talvez já estejam na casa.
Quase rastejando, André chega no quintal. Ouve algo. Se refugia debaixo do tanque de lavar roupas. Encontra duas camisas manchadas num balde e algumas camisinhas. Cheiro nojento. Novamente ouve algo. Um baque quase surdo. Ele está na cozinha. A qualquer momento pode abrir aquela porta e meter um tiro na cabeça de Mineiro.
Olha á sua volta: o que fazer? pra onde correr? Um garrafão perto do balde atrai o olhar desesperado do garoto. Abre ele. Cheiro de gasolina. Gasolina...
Toninho se apóia na pia da cozinha tentando olhar discretamente pelo vasculhante. O suor cai nos olhos. Barulho vindo do banheiro. Algo quebrou. Quando vai ver a cortina do box está pegando fogo. Liga o chuveiro. A janela está quebrada. Ruídos na cozinha: no chão uma camisa e mil pedaços de vidro ardendo no fogo. O filho da puta está fazendo coquetel molotov, pensava. Outra janela, quebrada, essa na sala. Toninho distribui tiros e amaldiçoa o dia em que esqueceu aquele garrafão de gasolina lá fora.
Mineiro, pra completar, joga o resto da gasolina no balde e com ele o seu isqueiro. Deixa debaixo do tanque e volta para o mato. Agora é só esperar o cara sair. A não ser que ele consiga apagar tudo.
Mas o homem estava muito afobado. Apagou o fogo na sala com o tapete, mas descuidou da cozinha. O fogo tinha alcançado o butijão de gás. Estrondo poderoso sai de lá dentro. Imensas labaredas chegam na sala. Toninho sai pelo buraco deixado pela batida, assustado. Há uma chama insistente no seu short.
Mineiro ainda o espera sair de casa, mas pela porta dos fundos. Só então, ele se toca que seria muito mais fácil ele sair pela nova porta que ele abriu com seu Opala. Quando chega lá na frente, encontra o matador tentando ligar a caminhonete. Atira. Pega de raspão no braço de Toninho, que se abaixa, mas continua pisando no acelerador. A porra da chave quebrou, concluiu com o estalo. O garoto se aproxima. Capa Preta recarrega a arma. Espera ele chegar mais. Mais um pouco. Pronto!
Mineiro cai, mas rasteja pra trás do que sobrou do carro do tio. A dor é terrível. Nem quando quebrou a perna pulando no rio a dor foi tanta. A bala está na perna. Na batata da perna.
A porta da picape se abriu. Mineiro espera pelo pior. Nada. Alguém está correndo. Toninho fugiu. Se chegar á estrada nunca mais vai vê-lo.
Com a força que nem sabe de onde tirou, André Mineiro se levanta e anda pela trilha. O matador não está muito longe. Ainda bem que não é muito bom de corrida. Toninho na verdade está morto de fome. A pança também não ajuda.
O garoto dá um tiro que pega na cerca. O matador se jogou no mato. Assim fica mais difícil de vê-lo.
Agora calcula; só viu um rapaz, na verdade um menino. Isso não é execução, é uma piada. Toninho Capa Preta fugindo de um moleque? Não, não é possível. A estrada que se dane, Toninho só sai daqui depois de matar esse garoto burro.
Mineiro também se embrenhou na mata. Não ouve, nem vê mais o matador barrigudo. Arrasta a perna machucada e melada de sangue entre as folhas secas. Tenta não fazer o menor ruído, mas nem pisando leve adianta. Sente que está por perto. Ouve por um instante a voz de Berto.
Na moita a quase dois metros dali, um homem espera que um rapaz perdido entre na sua mira. A ferida no braço arde, os pés estão frios. Mais que frios, estão gelados. E o que é isso? Escamas? Toninho olha pra baixo: uma cobra coral está entre a tira da sandália e seu calcanhar. Muita calma nessa hora: se mexer a cobra pode morder e denunciar sua posição, se continuar assim, mas cedo ou mais tarde, ela vai picá-lo. Se prepara. Dá um chute, jogando o réptil longe. Voltando a mira... cadê o moleque?

(Continua...)

Um comentário: