quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Faroeste Caboco: As balas mandam lembranças IV


A mata não tem preferidos. Morre quem vacila. Na cidade não é muito diferente. Embora sempre exista algum jeitinho de escapar, mesmo que mais tarde ou mais seja alguém lhe de um bote.
Toninho estava fora da cidade. O temor pelo seu nome não existia ali naquele matagal. Era só ele e o rapaz. O moleque atrevido que decidiu matá-lo logo no seu sítio. Mas ele teve muita sorte, viu! Pensava. Se estivesse trazendo o resto da turma pra passar um sabadão aí, ele tava fodido. Estaria em desvantagem.
Mas nesse ramo, vocês bem sabem, os amigos nunca estão no lugar certo na hora certa.
Ouviu algo vindo dali. Caminhou. Som de água. Não muito longe do sítio tinha um igarapé. É dos mais afastados. Era nele que rolavam os balneários do esquadrão. Antes, quando era policial, todo sábado. Hoje, uma vez por mês e olhe lá.
As águas do igarapé continuam a rolar. O sol reluzindo nelas, como se esse confronto mortal não estivesse acontecendo por aqui. Mas sempre é assim. A natureza é indiferente com essas lutas. Testemunha e ás vezes some com os vestígios das batalhas. Mas interferir, nunca.
Se bem que aquela cobra coral... Quase fez Toninho rodar.
André Mineiro nem imagina a sua sorte. Pelo contrário, só lhe vem a cabeça o quanto está azarado hoje: não acertou nenhum tiro no cara, está com uma bala na perna sangrando e drenando suas forças em mata aberta. Se esse é um jogo, sua perda já é certa. Mas aquela hora... aquela hora em que ouviu Berto. Parecia que ele estava ali.
Uma pergunta cretina ocupa seus pensamentos: por que Berto lhe mandaria exatamente para cá, para morrer? Está se vingando de quem? De seu matador ou do irmão que sempre lhe renegou? Mineiro não puxou o sangue cearense, nem paraense que corre em suas veias: nunca foi dos meninos mais faladores, sapecas ou safos. Quieto toda vida, quase desconfortável com as palavras e o contato humano. Cresceu assim, querendo viver afastado de todos. O irmão mais velho perturbava-o: "larga disso, maninho, se joga na vida!" E ele nada. 
Berto tinha noivado uma vez e pedira para que fosse o padrinho, mas André fez careta e perguntou se outro podia assumir a função. Não é segredo que isso nunca foi bem digerido pelo irmão falecido. Não que odiasse o mano, mas demonstrações de carinho não eram seu forte. No funeral, arrependia-se disso.
E agora se arrepende da sua vingança mal elaborada. Não levara nem uma semana para traçar o plano. As lições que o pai deu quando era mais novo precisariam ser reforçadas. Perdeu várias oportunidades de ouro. Acabou com o carro do tio. E o pior, em vão! É um pré-defunto á espera do último prego do seu caixão que virá em forma de bala fumegante.
Um brilho ao longe. Estranho. Ah, é um igarapé! Se segui-lo, posso chegar á algum balneário, encontrar gente que possa me ajudar, se iludia. Quando o reflexo da água já tomava completamente o seu rosto, veio a pontada. Era o último prego. Tombou na água. A correnteza arrastava o corpo, mas o tronco caído, só de teimosia, o segurou. O boné continuou o itinerário. De um bolo de galhos e folhas secas quase tocando a água do rio saiu o autor do disparo. Ao se dar conta de sua obra, sorriu. Não se continha em vê-lo ali: tinha que deixá-lo ser carregado pelo rio. Mas antes, precisa saber: quem é esse merdinha?
Estava de bruços, o rosto ainda escondido. Toninho desvirou. Não devia ter feito isso. Mas não deu tempo de pensar em arrependimento: três tiros - dois no pescoço, um na cabeça, perto da maçã do rosto. E agora quem o rio carregava era Antônio Gama Bayma, cão de caça do tráfico e terror do Zumbi.
Não foi morto por Brocales, o carrasco da facção rival, ou por algum matadorzinho tentando fazer fama, mas por um rapaz que tinha a própria morte como certa. 
A promessa feita ao fantasma tinha sido cumprida. As balas encontraram seu destinatário. A vingança foi terminada, mas o sangue continua jorrando da perna e agora do ombro. Se arrastar para a caminhonete do bandidão está fora de cogitação. Segue o plano anterior: seguir o curso do rio. Deixa-se levar pela correnteza. Sente os pés arrastando no fundo do igarapé, revirando as folhas secas e os seixos. Tenta deixar a cabeça por cima da água: á frente, mais mato e rio.
Tem algo ali: o corpo de Toninho, atravessando as plantas aquáticas. Aparentemente sem vida. Mas André continua sua trilha. Água e mais água no caminho. O tempo fecha, não é culpa das nuvens, mas sim da copa das árvores que agora escondem o céu. O fundo do rio some. A força da água se esvai. André não entende.  Nada um pouco. A margem está longe. É uma cacimba: está explicada a surpresa. O rio deu num olho d'água. Como toda cacimba, funda. Próximo das rochas da margem esquerda, Mineiro sente um beliscão na perna. Mas enquanto andava era o que mais sentia na perna moribunda. Novo beliscão. Esse não é impressão. Alguém pegou sua perna. Toninho? Só se ele tiver dentes nas mãos.
Mineiro nunca pensou que no sítio Capa Preta estaria sozinho, sem nenhum parceiro de crime por perto. Pois ali estava um deles estraçalhando o rapaz: o jacaré que que foi apelidado pelo bandido carinhosamente de "Lixão".  Essa era outra razão para os balneários terem sumido do igarapé. Assim que passou a usar a jaquetona preta, sua marca, e os óculos escuros, enquanto a consciência e a ética ficaram escondidas no armário, soterradas de naftlalina, Toninho pensou que precisaria de um lugar para desovar seus "presuntos". O Zumbi não era mais seguro. Pensou no sítio lhe presentado pelo deputado Anderson Brito. A cacimba era funda. No segundo mês se surpreendeu com o novo morador. Depois, lhe deu um emprego: sumir com evidências.
Mineiro era uma evidência agora. Assim como Toninho, depois dessa "refeição".

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