sábado, 4 de agosto de 2012

Parteiro de ideias: uma jornada

PARTEIRO DE IDEIAS: UMA JORNADA
por Rafael Janusky

Estou aqui para falar de um mestre. Um mestre em tudo contraditório.
Lourenzo Alvarez y Uria nasceu em São Lourenço. Seu pais, porém, não eram mineiros. José Uria tinha saído da Venezuela há mais de quatro meses quando se encontrou com Maria Ana Alvarez em Salvador. Ela, filha de um comerciante. Ele, pretendente a caixeiro. Os dois se apaixonaram nos poucos encontros na firma do severo pai de Maria. O namoro era sigiloso como uma trama de espionagem. Mas sempre chega o dia em que o segredo é revelado. E nesse dia os dois fugiram da Bahia. Rumavam para São Paulo, mas encontraram São Lourenço no caminho.

DE COMO OS MUROS DE SÃO LOURENÇO FORAM DEVASSADOS
O Sr. Uria tinha se encantado a tal ponto com os mares de morros de Minas que ás vezes bastava contemplá-los para ganhar o domingo. Tanta admiração explica o nome de seu único filho. Filho que nasceu pelos idos de 196... (se eu contar a data, ele me mata!). Crescido na bucólica cidade que como no verso do itabirano tudo vai devagar, Lourenzo começou a ser alfabetizado pela mãe. 
Dizem que na magia o segredo de tudo está em saber-se o verdadeiro nome das coisas. Pois a magia das letras só se despertou naquele "menino mirrado" quando descobriu o seu nome no papel. O futuro escritor desembestou! Riscava com pedaço de tijolo nas paredes das ruas passagens bíblicas e frases do seu pai. "Perca um minuto da vida, mas não perca a vida em um minuto". A mais icônica. Ainda hoje a recita, inclusive repetindo o sotaque hispânico.

DA CONDIÇÃO HUMANA
A infância é um momento definidor de qualquer ser humano, diz a psicologia. O ser humano é a sua infância, afirma Alvarez y Uria. "Quando se começa a perder a infantilidade, envelhece-se. Para mim não há prova mais concreta de que a vida é inocência e energia". Claro, nem tudo são flores, ou no caso, bolas de gude, futebol e pipas. Enquanto Lourenzo soltava rojões no pátio da Igreja, um motorista tinha perdido o foco por um instante numa das infinitas e congestionadas ruas da capital paulista e alguém perdeu a vida nesse minuto. Acho que aquele pobre diabo nunca entendeu as consequências daquele atropelamento em São Lourenço.
Dona Maria nunca mais se casou. O impacto da morte reacendeu os olhos do menino. As letras e as brincadeiras embaçavam-se. Uma espécie de anti-magia tomava conta de seu mundo: a morte. O canário belga do seu vizinho, as plantas do pátio da Igreja, os peixes do Córrego e até a sua mãe. Todos que são, não mais seriam um dia.

Em Ensaios de Minas, o nosso escritor afirma que "quando a criança toma conhecimento de que aqueles anteriores a seu nascimento não são imunes á mortalidade, aí sim ela entra em um estado de pensamento chamado por alguns de 'condição humana'. E o que é isso? Simplesmente saber que todos somos diferentes no começo e meio, mas iguais no fim. Saber que somos avançados, mas limitados. Enfim, a condição humana carrega em si um pouco de frustração e esperança. Mais um que outro. Não sei ser ser um  porco-espinho ou uma ameba amenizaria a situação, mas ser humano é muito complicado por essa e outras coisas".

DA TERCEIRA REVOLUÇÃO
Voltemos ao garoto melancólico, andando escorado pelos muros. Após a revolução das letras e da morte, seu mundo seria abalado agora pela revolução da cidade. A viúva Sra. Alvarez se mudara para Santa Luzia, cidade pequena encravada no Vale do Paraíba para quem não conhece ou está com preguiça de pesquisar no Google. Lá se foi ela, seu filho e sua louças para a casa de uma prima. Situação nova para o garoto triste.      Ao contrário dos versos de Tom e Vinicius, a tristeza de Lourenzo um dia chegou ao fim. Não foi de repente, mas no cavalgar de uma lesma. Diminuía na proporção em que ganhava amigos.
O brilho da vida ás vezes é acendido por um amigo seu, que por acaso está perto do interruptor. É a frase que seu personagem Anésio dispara no seu romance Copo de Cerveja. Sua sorte foi ter tantos interruptores quanto amigos. Daqueles anos de descoberta ainda guarda poucos, como Acácio Dinamite, radialista, e José Roberto Lopes Guerreiro. A escola foi um período relativamente difícil: desconhecido por todos, só fez realmente amigos nos últimos anos. Aliás, só conheceu realmente a cidade nesse tempo. Os caminhos de Santa Luzia se abriram para a curiosidade do menino e o menino se abriu para os nativos. De repente a cidade era encantada e estes podiam ser seus melhores guias.

DO POVO DO MAL
Quem arriscar entender Lourenzo Alvarez y Uria sem entender Santa Luzia falhará. É como pensar em Monteiro Lobato sem falar de Taubaté. Ambos possuem uma relação que passa do amor ao ódio muito facilmente. Como se não estivéssemos falando de cidades e escritores, mas de pais e filhos. Lobato só captou a alma de Taubaté quando foi cursar Direito na cosmopolita São Paulo. Já nosso protagonista só reconheceu o provincianismo santa-luziense quando foi obrigado a beber em casa por conta de uma batida policial. Bem, eram os anos oitenta e o chumbo tinha passado e deixado algo no ar. Mesmo assim, a vontade de viver falava mais alto que o medo. Ele e seus amigos cabeludos saíam ás 21h (data em que o toque de recolher imaginário começava) para ir bebendo aqui e acolá. Por "aqui" e "acolá" se entendam o Bar do Martinho e o Clube da Lua. Só haviam esses dois bares abertos á noite toda.

Quais eram as opções de lazer? O Martinho, o Clube da Lua ou fazer um lual em algum sítio de algum amigo. Quando se tem 17 anos, tudo é sempre pouco. Ainda mais se o tudo de uma cidade como Santa Luzia for realmente pouco... Os bichos-grilos tentavam se divertir como podiam: faziam saraus em praças, fumavam em terrenos baldios, jantavam á beira do lago do Horto, etc. Certa vez atravessaram o estreito limite do Bar do Martinho em direção á Praça Roosevelt e foram abordados por um policial. "Tinha um bigode de mexicano, nunca vou me esquecer". O homem saiu de sua viatura (na época, os carros policiais ainda eram fuscas preto e branco) e pediu que os "maluquetes" se retirassem. Alessandra, a mais alegre de todas, decidiu peitar o oficial da lei, para agonia de todos. "A praça é do povo, coroa!" Ao que ele respondeu: "Do povo de bem!" E a mulher quase pula na jugular, já latejante, do policial, não fosse o resto do pessoal ter a segurado.
Mas aquelas palavras ficaram na cabeça do Lourenzo que tinha ouvido Os Mutantes pela primeira vez graças á estranha e fascinante Alessandra Morais: "A praça é do povo de bem" Não bastava ser povo, tinha de ser de bem. E o que significa esse "povo de bem"? Qual o critério para ser taxado assim? Para ele, tudo começava a ficar claro: não somos o "povo de bem" porque queremos celebrar a noite, enquanto o resto da cidade dorme. Resumindo, por ser do contra, somos o "povo do mal".
"A lógica provinciana fabrica consensos gerais. Falsos, porém poderosos". E Lourenzo naquela época tinha adotado o desbunde como projeto de vida, ou seja, era contrário á tudo e á todos. Não gostava do governo, não gostava dos comunistas, não gostava de Roberto Carlos, não gostava de Geraldo Vandré. Ele pertencia á esse pequeno e anárquico clube de jovens que incomodavam e muito os santa-luzienses mais antigos. Quanta dor de cabeça não deu á Dona Maria...

DO FRACASSO SEGUNDO RATÃO
Uma noite, sentado na rodoviária, com uma garrafa de cerveja pela metade com o amigo de todos os porres, Bernardo Marinho, teve uma ideia.
-Bernardinho, vamobora!
-Pra onde, Lourenzo? Tu dá doido?
-Sei lá, cara! Vamos embora pra qualquer lugar! Aqui não podemos ficar. Essa cidade me estrangula todo dia e eu finjo que tá tudo bem. Quero respirar!
-Tá certo...
E os dois pegaram um ônibus. No outro dia estavam na Paulicéia. Alice tinha acabado de cair pelo buraco do coelho num país de maravilhas. Enxugavam os olhos. Restaurantes chiques, shows de rock, metrô, neon. As maravilhas modernas hipnotizam aqueles dois jovens lisos. No mesmo dia retornaram á cidade natal, mas  seus espíritos não. Precisavam desesperadamente voltar. Lourenzo enganou a mãe: disse que faria faculdade lá. Nos primeiros meses passou tão perto de uma faculdade quanto uma formiga passa do sol. 
Mas o dinheiro acabou. Os empregos não eram duradouros. Em pouco tempo tinha feito doutorado de sarjeta. "Arrastava-se pelo esgoto ao lado de outras criaturas como depressivos, drogados e bandidos". As paredes de sua casa eram cheias de infinitos hieroglifos - frutos dessa fase também esotérica. Escrevia todo dia sobre uma forma nova do fracasso de sempre.
Seu personagem Ratão, um artista marginal, acreditava que o fracasso é o melhor projeto de vida numa terra de sucessos. Não há altos e baixos. Não há quedas, quando já se está caído. Mas nunca subestimemos a inércia. Afinal se da água parada surgem epidemias de dengue... O fato é que Lourenzo tinha sido enganado pela metrópole convidativa. "Não era tão esperto quando julgava. Repeti a sina dos garotos medíocres que tanto criticava. Só que ao invés de dar meu sangue por um carro, dei-o pela vida cultural. Essa foi minha breve carreira como artista marginal e até que ela teve muitas mulheres, digo vantagens".

DO RETORNO DO FILHO PRÓDIGO
Então, uma bela manhã a faculdade lhe pareceu atraente. Alguns caras que conheciam tinham vindo de lá e falavam loucuras sobre o campus. Passou, mas no segundo vestibular. Interessava-se por cinema, história, antropologia e dramaturgia, mas letras não tinha comparação. Escrever já era um vício. "Não queria diploma de escritor; não acredito que o talento seja produzido por um canudo, mas sim que ele possa ser trabalhado, melhor explorado. E ali também entraria em contato com grandes ídolos".
A cidade grande e terrível que tinha quase moído o rapaz interiorano - ó coitadinho! - o apresentou á gente como Antônio Cândido, João Antônio, Chacal, Antônio Bivar, Glauco Mattoso, enfim, uma rapaziada que era blindada pela genialidade. Ainda assim não se sentia completamente realizado. O que faltava era uma dose a mais de carinho. Não que ali não houvesse, mas era um tipo muito raro de carinho que só nasce nas encostas do Morro do Judeu em Santa Luzia. A tão odiada cidade estranguladora de destinos tomava a forma de um hipotético Jardim do Éden com Jeca Tatu no lugar de Adão e Eva. O jambo era a maçã. A fruta não do conhecimento, mas da afetividade.

Eis que o maior inimigo da pequenez das cidades, agora as defendia : "No provincianismo, como em tudo, há um lado bom que é essa aproximação maior, mesmo que a cidade tenha o tamanho da Bélgica, entre as pessoas. Algo que o capitalismo estraga muito fácil nas metrópoles. Não estou fugindo do capitalismo, se acalmem. Só estou tentando preservar algum foco de resistência á ele. A comunidade pode oprimir e libertar. Pode parecer presunção, mas cuidarei para que ela não escolha sempre a mesma opção aqui fazendo o que o bom intelectual faz: cutucando as feridas".
Sua tese se chamou "Aspectos da Mediocridade Urbana". Mais tarde tornou-se livro e hoje é referência obrigatória em estudos sobre Literatura e Urbanismo. Ali afirma que mesmo as grandes cidades podem ser medíocres quando apostam na massificação das relações. Assim, temos as pequenas glebas onde o diferente é repudiado e as grandes cidades onde o diferente é vulgarizado. Claro, o cosmopolitismo, assim como o provincianismo é sempre relativo. Taí a globalização para provar isso. 
Após ganhar elogios das maiores cabeças pensantes do país, Lourenzo volta á Santa Luzia sendo recebido com uma recepção festiva de mais de 20 mil pessoas. Tá certo, eu inventei isso. A mãe e duas primas o esperavam na Rodoviária. E Dona Maria estava resmungando sobre a falta que um carro faz na vida do filho.

CONTINUA...



...OU NÃO?

Nenhum comentário:

Postar um comentário