terça-feira, 24 de julho de 2012

O super-herói, o filósofo e a galinha.


A pedido do meu amigo Diego Gatto, retorno o tema do "super-homem" de Nietzsche. Tema que evoquei por conta de uma análise do filme do Homem Aranha. De cara já parece arriscado tal feito. Nietzsche é contra todo tipo de herói. Então, de onde surgiu essa mistura louca que eu fiz?
A minha pretensão era comparar a visão do filme sobre o herói com a visão do filósofo alemão sobre o homem. Eu achei uma semelhança entre ambos: a necessidade de se superar barreiras que construímos. Falando assim parece auto-ajuda, e na realidade, uma análise sobre esse tipo de literatura e as teorias de Nietzsche também renderiam uma boa discussão.
Em O Espetacular Homem Aranha, temos dois personagens assolados por seus próprios fantasmas: Peter Parker é um rapaz franzino que apanha na escola e se pergunta o tempo todo porque seus pais te largaram pouco antes de morrerem; já o Dr. Curt Connors, amigo do pai de Peter, é obcecado em recuperar o braço que perdeu (nas HQs, ele tinha o perdido na Guerra do Vietnã), pois não gosta de ser visto como um homem digno de pena. Todos os dois estão cansados de serem vistos como os "coitadinhos". Mas para se tornarem donos de seu próprio destino e dignos de reconhecimento eles devem vencer suas próprias barreiras.
No filme, essas barreiras seriam a timidez e o passado traumático de Peter Parker e a deficiência física do Dr. Connors. Cada um encontra na ciência meios de superá-las. Para Nietzsche existe todo um universo de coisas que castram nosso potencial como a ideologia. A ideologia sempre está por trás das ditas "verdades universais". Por isso, a religião figura como um dos maiores males do ser humano para o filósofo. Como superá-las? Com a reflexão e com a arte. A reflexão questiona as "verdades", tira a venda de nossos olhos, e a arte faz tudo o que veremos a seguir menos insuportável.

Certo, eu sei que comparar um filme de super-herói com uma tese de filosofia é forçar a barra, porque ao fazer isso excluímos toda a complexidade das ideias de Nietzsche e a proposta fundamental do filme - divertir. Além do ódio de Nietzsche por heróis, que dirá super-heróis então! Não é bem um ódio, mas uma desavença ideológica. O herói é um ser humano excepcional, cuja trajetória de glória e nobreza já é predestinada na maioria das vezes, e que por isso inspira que muitos o sigam ou o utilizem como modelo.
O problema, segundo o filósofo, é que heróis por emocionarem tanto as pessoas podem ajudar manipulá-las. A própria noção de moral manipula as pessoas: seja bonzinho, obedeça seus pais. A moral não deixa que você pense por si próprio. A questão aqui é a autonomia.
Kant já dizia mais ou menos isso: o homem cresce, mas isso não significa que ele amadureça na sua consciência. Ele pode continuar sendo tratado como criança, sempre dependendo do que os outros dizem, se não desenvolver senso crítico. Ou ele pode até usar da razão, mas não em público, por uma série de motivos. A grande questão da filosofia ocidental desde Descartes até Adorno tem sido: como conscientizar as pessoas sobre o mundo e o potencial de si mesmas? A filosofia se impõe como um meio de se libertar das armadilhas do óbvio. Questionar para entender, entender para transformar. E como diria o Tear For Fears, todos querem mudar o mundo.
Outro ponto recorrente na filosofia e no pensamento social como um todo: o homem é excepcional porque diferente dos outros animais possui a capacidade de ir além da sua condição natural. O que isso quer dizer? Ele modifica o seu meio e a si próprio. Não temos asas, mas podemos voar através do avião. Em uma cidade cortada por córregos podemos fazer um terreno plano com aterros. E por que isso? De onde vem essa vontade de transformar tudo? Mário Quintana dizia que o motor do progresso é a preguiça: a preguiça de andar criou o carro, por exemplo. Marx acredita que o homem exercita melhor esse seu potencial transformador no trabalho, porque é ali que ele se utiliza de sua criatividade, sua perícia e sua força, todas conjugadas.
Nietzsche também acreditava no potencial do homem. Qualquer um pode ser excepcional, basta se livrar do que o infantiliza. Qualquer um pode tomar as rédeas de seu próprio destino. Os tiranos só existem porque existem os subservientes. E anos depois, Jean Paul Sartre reafirmaria isso acrescentando que a alienação é muito conveniente pois poupa o indivíduo de uma série de dilemas éticos e existenciais. Por isso, o homem tem que aceitar que está condenado á liberdade e, portanto, se fizer algo, será sua e somente sua responsabilidade.

Voltemos ao herói aracnídeo: o que impedia Peter de ser um cara popular na escola e de sair com a garota mias bonita dali? Aparentemente, não tinha força para lutar com os valentões e nem coragem para convidá-la pra sair. E desse estado ele não saiu. Foi preciso que uma aranha geneticamente alterada o picasse para que pudesse superar esses problemas. Com Dr. Connors foi uma injeção que prometia a regeneração de seu braço. As barreiras de Parker são mais fáceis de ser escapar que as de Connors - afinal força pode ser cultivada com exercícios físicos, coragem pode vir com desenvolvimento de uma auto-estima, mas e um membro amputado? Pode ele voltar?

Connors precisaria mudar radicalmente seu modo de vida. Em outras palavras, diferente de Parker que poderia simplesmente mudar, ele tem aceitar sua limitação física. Aqui lembro-me novamente de Leonardo Boff que em seu livro já citado dizia que o ser humano precisa equilibrar o seu potencial transformador com a sua visão pragmáticas das coisas. Ele exemplifica isso com uma pequena história sobre uma águia que foi criada por galinhas e que quando se descobriu águia já era tarde, se espatifou no chão por que ainda se considerava uma galinha. A galinha mantém os pés no chão, a águia já vive no céu. Em outras palavras, é a dimensão prática e sonhadora da vida de que estamos falando aqui. Não se pode ser sonhador demais, nem prático demais. O sujeito prático se acomoda com as condições que lhe aparecem, ele se adapta. Connors precisaria se adaptar mais, enquanto Parker poderia "voar mais alto".

Mas enfim lá está a ciência para fazer os sonhos da vida humana se transformarem em realidade. Como uma poção mágica, Parker é alçado a condição de um super-herói e Connors de um super-vilão. Connors é tomado pela megalomania. Vamos reconhecer: o ser humano nunca foi de ser equilibrado, vivemos mesmo é de excessos. Quem tenha experimentado o poder de mudar o mundo pode perfeitamente se achar um deus vivo. Sonhadores podem se tornar arrogantes. Connors se torna o Lagarto e vai desenvolvendo a ideia de que só podemos ser perfeitos se deixarmos de sermos humanos. A deficiência e a fraqueza sumiria se todos se tornassem reptilianos como ele. O sonho de um mundo sem fraquezas se torna um pesadelo.

Nessa parte do outro post, comparei a ideia do bichão com o velho conceito de eugenia. Eugenia significa aperfeiçoar a raça (hoje sabemos que se trata de espécie) humana, livrando-a de fraquezas físicas e intelectuais. Qual é mesmo o sonho dos filósofos? Uma sociedade de indivíduos conscientes. Há quem acredite que se possa realizar esse sonho por meio da eugenia. Ora, Adolf Hitler era uma delas. Mas até que ponto "conscientes"? Confunde-se aqui "consciência" com "disciplina". Obedecer é ser consciente de seu papel no mundo. Isso é completamente o contrário do que afirmava Nietzsche.

O super-homem idealizado por Nietzsche não é a montanha de músculos, mas o sujeito consciente e agente. Ele não respeita classes ou pudores, ele apenas é sincero com seus princípios. O homem consciente está acima do bem e do mal. Ele é humano, apenas humano. Pode aspirar ser mais que isso, mas será ainda humano. A grande tragédia, diria o filósofo, seria essa nossa condição limitada, marcada pela morte. Tentamos enganar nossa mortalidade produzindo obras primas, peças que possam perdurar por muito tempo com nosso nome. O homem que não aproveitar o pouco de vida que tem é um alienado.

Apesar dessa diferença abissal, o super-homem foi apropriado pelos pensadores nazistas e reformulado como sinônimo da raça ariana. Devemos boa parte dessa deturpação á irmã do filósofo, Elizaberth Förster-Nietzsche, a quem ele confiou suas obras, e que nutria muitas simpatias com o nazismo. O super-homem nada mais é que alguém ciente de seus limites, mas que mesmo assim saiba aproveitar deles.
Nietzsche, como todos sabem, não era homem dos mais otimistas com os destinos da humanidade. Assombrava-se com o grau de alienação das pessoas com a religião e com a ciência, que na época estava mais do que determinada a mudar completamente o mundo e transformá-lo numa utopia tecnológica e social. O tempo mostrou que ele estava certo. A religião nos deu mais guerras santas e a ciência, guerras nucleares e biológicas.  Como dissemos antes, o potencial do homem é tremendo, ainda que seja limitado pela morte, portanto, ele pode influenciar tanto para o bem quanto para o mal o resto do mundo. Grandes poderes trazem grandes responsabilidades. Já ouvi isso em algum lugar...

Para os interessados na relação entre Nietzsche e o nazismo, recomendo esse ótimo artigo de Rubem Antonio Silva Filho: Nietzsche e o nazismo - nas asas da mentira.

Um comentário:

  1. Não acho que comparar Nietzsche com super-heróis seja forçar a barra. Nietzsche teve um grande poder, e junto veio uma grande responsabilidade. [trocadilho infame com o filme, porém real]
    Poder de persuasão, e capacidade de argumentar (e muito bem) suas teses.
    A responsabilidade de fazer o mundo (ou uma parte dele) acordar para o real potencial humano.
    Muito bom o texto. :)

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