domingo, 29 de julho de 2012

Faculdade da dor - Espaços de aprendizagem da brutalidade durante a ditadura militar



Pau de arara, cadeira do dragão, borrachada no pé, corredor polonês, choques, simulação de afogamento, etc. Palavras que nos parecem estranhas á primeira vista. Depois, percebemos que já temos uma longa história com elas. A ditadura militar não foi o primeiro regime a e utilizar da tortura como instrumento de repressão. Ora, os castigos sofridos pelos escravos nas fazendas e nos pelourinhos podem ser entendidos como o que? Relatos dão conta de casos de tortura na Guerra do Paraguai e no Estado Novo de Vargas.
A tortura é um ato deplorável, mas que sempre acompanhou a Humanidade, assim como outros males. Em quase todos os períodos históricos ela se fez presente. Na maior parte das vezes como ação dispersa, de alguns indivíduos sádicos ou extremistas. No século XX, a tortura passa a ser associada á governos autoritários por conta da experiencia traumática de inúmeras pessoas identificadas como opositoras á esses regimes.
A América Latina, em certo momento, foi um viveiro de ditaduras. Era o tempo da Guerra Fria e o EUA patrocinava ditadores na vizinhança como meio de impedir que a URSS tirasse vantagem de algum furo no bloqueio. O Tio Sam tinha aprendido a lição com Cuba. Dentro desses países, forças conservadoras partiam para o embate com elementos progressistas ou simples opositores. Com o aumento da repressão muitos optaram pela revolta armada. A revolta armada passa a justificar a ação repressiva. Esse círculo vicioso existia somente na cabeça de quem participava da máquina de repressão.

Vejamos o caso do Brasil. Já em 1964, quando as portas para uma possível redemocratização não tinham sido fechadas ainda por um AI-5, temos relatos de torturas. Seguindo a repercussão do golpe, o militante comunista pernambucano Gregório Bezerra é arrastado pelas ruas de Recife, preso á um jipe. O jornalista Márcio Moreira Alves, pesquisando material para a crônica policial carioca, entra em contato com testemunhos de pessoas que foram presas e maltratadas. Reuniu relatos de boa parte do Brasil em um dossiê endereçado ao governo federal que como resposta iniciou uma investigação. Essa foi a chamada Missão Geisel, posto que o general Ernesto Geisel foi encarregado de executá-la. E o general colhe depoimentos não só de presos políticos, mas de torturados que dizem com todas as letras que torturaram. O relatório produzido por Geisel é lido pelo então presidente, Castelo Branco, que, temendo uma reação da linha dura, ignora medidas punitivas aos torturados.

O jornalista Elio Gaspari diz que aí começou o maior acordo do regime: o silêncio do alto escalão e a autonomia cada vez mais os órgão repressores. Muitos oficiais superiores negavam que essa tenha sido uma prática do regime, pois generais não se rebaixariam á uma ação tão vulgar como a tortura. Ou seja, a ação seria exclusivamente de oficiais subalternos ou policiais. Castelo Branco em uma mensagem á Geisel fazia uso justamente desse pensamento: tortura era coisa das delegacias do Estado Novo, dizia ele. Associava assim a tortura com uma prática policial e não militar.
Não há como negar, no entanto, que o Estado Maior tenha sido conivente com esta ação. Se o silencio de Castelo Branco significa isso, o que dizer do apoio explícito de Costa e Silva, Médici e do próprio Geisel á tortura. Geisel acreditava que em uma situação extrema, como a revolta armada das esquerdas, a tortura podia salvar vidas. Na metade dos anos 60, a repressão aumenta. O AI-5 é a certidão de nascimento dos anos de chumbo. A escalada da violência começa. A noção de que os militares e o esquerdistas mais radicais tinham na época era de que estávamos dentro de uma guerra civil subterrânea. No entanto, numa guerra há limites. Pelo menos é o que a Convenção de Genebra garantia.
Limites que não foram obedecidos pela tortura. Não me deterei aqui nos métodos usados. Prefiro me dedicar a um outro aspecto: a formação dessa classe infame, os torturadores. Se na afirmação de Castelo Branco há muito de preconceito, há de se reconhecer também que há nela um pouco de verdade. Cláudio Guerra, membro de um serviço paramilitar auxiliado pelo governo na época, revela em depoimentos que os militares buscaram principalmente no meio policial os membros para formarem seus quadros repressores, porque não tinham experiência no combate.

A guerra não é uma vocação das Forças Armadas brasileiras. Participamos de dois grandes conflitos externos (Guerra do Paraguai e Segunda Guerra Mundial), sem falar de outras batalhas em que a participação foi por meio de pequenos contingentes (como quando enviamos tropas brasileiras pela ONU para participar da Guerra de Suez em 1956). Isso não quer dizer que somos um povo pacífico, como queriam os intelectuais românticos do Império. A quantidade de guerras civis que colecionamos demonstra bem isso. Seja como for, as Forças Armadas ainda não estavam devidamente constituídas em muitos desses eventos e não dispunha de bons recursos na maioria dos casos. O Exército, por exemplo, só foi se consolidar como uma instituição militar poderosa após 1930. No entanto, ele era mais um ator político que uma corporação bélica.
Outra solução viável era a troca de informações com países amigos. Palestras de enviados dos EUA na Escola Superior de Guerra eram frequentes. Não raro era um correspondente pertencer a CIA e o motivo real de sua palestra ser ensinar técnicas modernas de repressão. Mas os norte-americanos não foram os únicos a nos "ajudar". A França, o berço da democracia liberal, tem uma contribuição gigantesca com a difusão da tortura. Oficiais franceses que participaram das guerras de descolonização, como a Batalha de Argel e os conflitos na Indochina, visitaram muitos países latino-americanos para compartilhar as experiências que acumularam.

Um desses oficiais era Paul Aussaresses que foi adido militar francês no Brasil entre 1973 e 1975. O general Aussaresses participou do serviço de espionagem francês, sem falar que foi paraquedista e combatente na guerra da Indochina. Nos seus anos como adido militar poderíamos encontrá-lo nas salas do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), em Manaus, ensinando como infligir uma dor inimaginável em um guerrilheiro sem matá-lo. Aussaresses revela inclusive que durante uma sessão de tortura em Manaus as coisas saíram do controle e uma mulher, suspeita de ter vindo ao país para matar o então chefe do SNI (general João Figueiredo), morreu.

O Centro de Instrução de Guerra na Selva foi criado no começo dos anos 70 justamente como meio para preparar os oficiais para o conflito armado no meio rural. Afinal, o medo era que houvesse mais Guerrilhas do Araguaia pelo Brasil e a Amazônia parecia ser o terreno perfeito para que mais focos guerrilheiros proliferassem. Agora ressalte-se que dentre as preocupações do Centro, que incluíam geopolítica e sobrevivência em ambientes extremos, esteja a tortura. Só a presença de Aussaresses no CIGS faz a imagem da tortura como atitude deplorada pelo governo militar e praticada somente pelos policiais cair por terra. Aqui vemos um esforço de se corromper a ordem militar. Transformar oficiais em torturadores. Aliás, a Operação Condor já denuncia esse esquema. Países vizinhos atuando juntos na eliminação de seus opositores. Maior prova do comprometimento da ditadura militar com atrocidades não há. 

Concordo com o historiador Carlos Fico quando este diz que a tortura é um aspecto essencial para se entender esse novo regime. Por que ela dá a medida de como essa nova ordem que se constituiu no Brasil após 1964 se deixou ser moldada pelo autoritarismo. As propostas ideológicas de modernização e moralização do país só foram executadas diante de uma política repressiva. Na economia, a indústria cresce:  o salário é reduzido para se utilizar esse dinheiro em outros setores. E o trabalhador não faz nada? Quando faz leva porrada na greve ou bronca do patrão. Na política, quem discordasse de um projeto de lei com aval das esferas mais altas do poder era taxado como comunista e corria o risco de ser espionado pelo SNI.
A tortura é apenas o aspecto mais visível desse novo regime. É um meio para um fim. O meio: a brutalização, a violência. O fim: a unanimidade, o apoio incondicional. A tortura ajuda a acabar com a divergência, seja eliminando seus membros ou dando o exemplo para aqueles que pensarem em mudar de lado.
E não se enganem. A brutalização não acabou. Ela só mudou de cara. Pode ser que muitos considerem a violência como instrumento do governo como algo impensável hoje, como se apenas traficantes e esquadrões da morte a utilizassem. Mas pensemos mais um pouco. Pensemos no caso de Pinheirinhos, da reintegração do Bairro da Paz em Manaus, na Marcha pela Maconha, enfim, pensemos em movimentos sociais discordantes do governo, seja ele municipal, estadual ou federal, que foram reprimidos com uma certa força desproporcional á sua ameaça. A polícia, por mais avançada que esteja hoje, continua sendo usada ainda como jagunçada. E isso é preocupante.

Uma das maiores heranças da ditadura militar foi essa brutalização da vida política. O Brasil antes já sofria nas mãos dos coronéis, mas eram poderes localizados. Agora, a repressão é muito mais articulada. E muito mais eficiente, pois não se faz ser sentida como antes. Ora, se nossa participação política fosse maior com certeza ela seria mais explícita. Afinal, diante da indiferença não há porque ela se preocupar.
É sempre oportuno lembrar que a situação sempre é mais complexa do que parece ser. Hoje temos muitos outros canais de expressão, muito mais direitos que naqueles tempos. Em outras palavras, temos a faca e o queijo na mão, ou no caso a água e o esfregão na mão para limpar essa mancha da nossa sociedade.
E no passado, apesar de tudo parecer tão bem articulado, nem tudo era preto no branco. Haviam oficiais realmente contrários á tortura, assim como hoje existem militares que não celebram o golpe de 64. Colocar tudo num mesmo saco também é um grande erro. Temos condições de enxergar a complexidade que foi esse período essencial de nossa história. Tentar enxergar o policial para além do estereótipo do "agente truculento da lei" e desvincilhar o termo "torturador" da palavra "militar" faz parte de toda uma reflexão sobre um século de repressão e política no Brasil.

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