sexta-feira, 22 de junho de 2012

Dissecando os porões da ditadura


Cláudio Guerra é um nome pouco conhecido fora do Espírito Santo. Ou pelo menos era, porque depois que   ele decidiu dar um depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros ganhou fama nacional. Já concedeu várias entrevistas, uma delas, a de maior repercussão, foi ao jornalista Alberto Dines no Observatório da Imprensa.
Dines teria dito em um artigo que Hannah Arendt estava certa: tinha acabado de conhecer a banalidade do mal ambulante. Isso porque Guerra parece uma pessoa comum e até simpática, em nada lembra a nossa imagem dos torturadores sádicos da ditadura militar. E olha que nem torturador ele era: Cláudio Guerra era um matador do regime. Dines sentiu o mesmo espanto de Hannah ao descobrir que Adolf Eichmann, que mandou vários judeus para os campos de concentração, não passava de um homem comum e não um monstro.

Preso por assassinatos posteriores ao fim do regime militar, Guerra encontrou a religião, se tornou evangélico. Decidiu que o melhor a fazer era revelar o que fez, não sei se por culpa. Em suas entrevistas ele não conta todas as suas execuções como se delas orgulhasse ou sentisse vergonha, mas como se fosse um interrogatório formal. Talvez, num momento em que tanto se fala em descobrir a verdade, Guerra tenha sentido o desejo de contribuir para entendermos o que aconteceu de fato no país.
Seu livro, Memórias de uma Guerra Suja, me surpreendeu e muito. As histórias poderiam render um bom filme a la Tarantino. São tantos e tantos dados que não sei por onde começar. Deixarei para falar dos mais impactantes outro dia, hoje tentarei falar dos mais interessantes para quem estuda esse período:

a) A comunidade de informações agia perfeitamente de acordo com os aparelhos repressores. Os nomes eram conseguidos através de grampos telefônicos, missões de tocaia e até pela tortura. Alguns eram investigados ou executados pelos grupos clandestinos. Todas as peças se encaixando.

b) Esses grupos clandestinos são uma equipe de espiões e matadores, comandados por um oficial superior ligado ao governo. Ou seja, a maior parte do grupo não pertencia á alta esfera do governo, mas estava ligado á ele.

c) Quem fazia as vezes de espiões e matadores eram os policiais. Essa talvez seja a revelação mais interessante: os militares, segundo Guerra, não tinham familiaridade com o mundo da repressão tão bem quanto os policiais que nele se infiltraram há décadas.

d) As operações secretas de extermínio começaram na década de 1970, segundo Guerra, e os fundos para essas ações eram arrecadados entre artistas, bicheiros e empresários. Todos simpáticos ao regime, seja pela ideologia ou simplesmente por motivos práticos - defender os seus interesses.

e) Como já foi dito, os matadores eram recrutados entre os esquadrões da morte e as delegacias civis. O detalhe maior é que para manter o sigilo eles eram utilizados muitas vezes em ações longe da sua terra natal. Cláudio Guerra, por exemplo, é do Espírito Santo, mas atuou em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

f) Havia intercâmbio não só entre os estados, mas entre os países da América do Sul. O livro apenas confirma a Operação Condor, ou seja, a colaboração entre os governos militares do continente como o Chile, Argentina, Brasil e Uruguai na tortura e morte de seus opositores.

g) No começo, as procuradorias federais serviram como sede provisória para o Serviço Nacional de Informações (SNI). Isso abala um pouco o papel que as instituições jurídicas desfrutavam de oposição velada ao governo e defensora do regime democrático durante a ditadura.

h) Os corpos eram jogados ao mar, enterrados em terrenos baldios ou incinerados, como o grupo de Guerra fazia em uma usina em Campos (RJ).

i) Nem todos os membros dos grupos eram entusiastas do regime militar: o livro constrói uma imagem do temível delegado e torturador paulistano Sérgio Fleury como um homem oportunista e ganancioso, que por isso se envolveu com o crime organizado.

j) Havia uma confusão interna no governo - tanto na comunidade de informações como nos aparelhos repressores. Não temos essa impressão porque os militares sabiam como esconder essa anarquia por meio da censura. Os interesses de alguns setores do governo e de seus funcionários conflitavam muitas vezes. Isso sem falar que muitos se aproveitaram das novas ferramentas do regime para se beneficiarem.

l) Após a decisão da abertura essa confusão aumentou, porque as alas mais radicais e mais beneficiadas com o governo não queriam que a situação toda mudasse. Daí muitos grupos de linha dura terem tentado atrapalhar a redemocratização com atentados e notícias falsas.

m) Quando perceberam que a redemocratização era um caminho sem volta, começou a queima de arquivo. Os envolvidos nas operações que não respeitassem o voto de silêncio eram mortos, como foi o caso de Fleury segundo o depoimento do delegado capixaba. Muitos escolheram sobreviver no crime organizado, como foi o caso do próprio Guerra que se tornou bicheiro. Outros criaram mais grupos de extermínio e continuaram na polícia.
Esse é Cláudio Guerra atualmente.

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