quarta-feira, 18 de abril de 2012

Água, fibras e trabalho: Notas sobre História Social do Trabalho na Amazônia


Nas aulas que tenho com o Prof. José Vicente Aguiar sempre me surpreendo com seus relatos sobre a vida dos trabalhadores da juta no interior do Estado, principalmente em Manacapuru. Para mim o cultivo da juta já tinha acabado. Ela movimentou a região no período pós-boom da borracha e pré-zona franca: 12% da arrecadação tributária do Estado vinha dela em 1966. Em relação aos dias atuais, falar em economia da juta para mim soaria anacronismo, uma vez que essa planta era cobiçada justamente por ser a matéria -prima para sacos e com o surgimento das fibras sintéticas ela se tornaria um pouco obsoleta. Mas a juta continua em demanda, menos que antes é verdade, mas ainda assim há uma demanda.
Voltemos ás origens: essa planta asiática foi introduzida na Amazônia por uma Missão Japonesa,um grupo de agrônomos da Terra do Sol Nascente reunidos pelo governo nipônico tinham como objetivo adaptar o cultivo de algum produto conhecido dos asiáticos nesse rincão do Brasil para consolidar a colonização japonesa na região. Depois de várias tentativas eles conseguiram adaptar a juta.
Do ponto de vista empresarial, tudo começou quando industriais paulistas, dentre eles Mário Audrá (não confundir com o Mário Audrá Jr, o Marinho), cientes do sucesso da iniciativa, resolveram fazer um acordo com as poucas colônias de trabalhadores de juta que existiam então, sendo a Vila Amazônia (em Parintins) uma delas. Surgia assim a Fiação e Tecelagem da Amazônia S.A., mais conhecida como Fitejuta. Existiam duas fábricas, uma em Manaus e outra em Taubaté (quem diria!).
Nas fábricas a fibra era prensada, transformada finalmente em sacos, mas a maior parte do trabalho era feito no interior da Amazônia pelos juticultores. Primeiro busca-se uma região da várzea onde possa-se cultivar a planta, então limpa-se o terreno e faz-se a semeadura. Depois é preciso capinar sempre o local, mesmo quando a juta já ter crescido, para que outras plantas na sufoquem as frágeis raízes da juta.
Na hora certa deve-se cortar as hastes, bem rente á raíz, e então deixá-la de molho na água do próprio rio, para que a água e suas bactérias separem o miolo dos talos da fibra, que é o que nos interessa. Após isso, retira-se as hastes da água, bate-as para que saiam as impurezas do rio e seca-as. A partir de então, a juta está pronta para ser mandada para a fábrica, ou no caso de um agricultor autônomo, vendida á algum negociante.

Sobre o trabalho é interessante observar como ele se constitui como um saber familiar muitas vezes, passando de pai para filho. É sempre bom lembrar que muitos juticultores não vivem mais em colônias de trabalho, mas ás suas próprias custas entre as várzeas, perto das plantações, nas curvas dos rios. A dispersão geográfica pode atrapalhar a união do trabalhador e consequentemente a sua consciência de classe, como Barbara Weinstein percebeu ao abordar a vida do seringueiro, mas ela também tinha suas vantagens: a autonomia em relação á um patrão.
Cabe também nos questionar até que ponto essa dispersão hoje impede uma consciência de classe nessa categoria, afinal já existem cooperativas de juticultores, como por exemplo em Manacapuru. Além disso, hoje o próprio isolamento do homem amazônico que vive no interior é relativo diante da presença de meios de comunicação. Já na década de 1940 e 1960 o rádio conseguia conectar famílias ribeirinhas com seus parentes tentando ganhar a vida na cidade grande. O rádio fazia o interiorano entrar em contato com o resto do mundo. Hoje então esse contato deve ser muito maior diante do rádio, do celular e da TV.
O trabalhador da juta conta como ferramente, além do terçado (facão) o próprio corpo. É uma exploração das mais explícitas, pois se percebe seus efeitos na aparência física de seus trabalhadores. O juticultor tem que usar as mãos para medir, colher, carregar a juta e passa a maior parte do seu dia com metade do corpo dentro d'água. Tal condição permite que ele adquira doenças como infecções por fungos ou bactérias, como é o caso de uma espécie de micose chamada popularmente como "rói-rói", sem falar das ameaças do rio: arraias, sucuris, piranhas, jacarés. 

O corte da juta demanda muito tempo e está muito ligado ao clima. Diante das mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global está ficando cada vez mais irregular a colheita da planta, que deve ser feita antes da época das chuvas pesadas. A meteorologia  ajuda o agricultor a se antecipar algumas vezes, mas em via de regra a natureza continua desequilibrada e com ela o regime de cultivo. Em relação ao meio ambiente, a juta sendo uma monocultura (aliás, a própria estrutura física da planta lhe demanda isso ao contrário da cana) empobrece o solo, mas estamos falando do rico solo da várzea amazônica. Adicione a essa plantation em pequena escala a poluição do rio e consequentemente de suas margens pelo mercúrio dos garimpos ou pelo combustível dos barcos e temos um silencioso desastre ambiental.
O que me chamou mais a atenção nesse tema é que ele é muito pouco explorado. Quase nada se ouve falando sobre o juticultor. Parece que a historiografia amazonense está focada em duas categorias de trabalho: o seringueiro ou qualquer trabalhador integrado ao seringal, no interior, e o trabalhador urbano na capital. Dentro da perspectiva do trabalho urbano em Manaus salienta-se os estivadores, os carroceiros, gráficos e até as profissionais do sexo. A categoria dos condutores e motoristas, seja de bondes, ônibus ou táxis, que teve uma união e uma importância muito grande na cidade, ainda está carente de uma boa pesquisa. O mesmo pode se dizer do juticultor ou de qualquer trabalhador amazônico que viva no meio rural.

Claro que em se tratando deste último é muita ingenuidade esperar que se possa encontrá-lo em documentos. Aqui devemos nos usar dos métodos da História Oral, uma vez que estamos falando de experiências de homens e mulheres que não tiveram o privilégio de se alfabetizarem, mas que nem por isso perderam a preocupação em transmitir seu conhecimento para as novas gerações.
Digo isso tudo, pois muito me interessa a História Social do Trabalho e em se tratando de Amazônia vejo que temos aqui um campo muito rico para esta tendência.Claro, tenho minhas opiniões sobre como fazer História Social do Trabalho, todo mundo tem. Antônio Luigi Montenegro e Flávio Santos lembraram muito bem que Thompson, considerado o papa dessa corrente historiográfica, tinha um certa ojeriza com o termo História Vista de Baixo, que se ocupa com todos os grupos sociais que foram marginalizados pela História Oficial, estando, óbvio, os trabalhadores dentre eles. Ojeriza por quê? Porque segundo Thompson isso desprezaria o papel das classes sociais mais abastadas e poderosas no rumo da trajetória dos trabalhadores, afinal se trata de História Social, ou seja, todo homem se relaciona com outro homem e disso decorre que toda classe se relaciona com outra. Portanto, uma História Vista de Cima é o complemento adequado para uma História Vista de Baixo, desde que ela seja crítica.
Qual a importância disto para nós? Ora, não podemos entender a trajetória do juticultor se não entendemos como o seu patrão chegou a ser o seu patrão. Em outras palavras, uma História Social do Trabalho precisa se amparar numa história empresarial local, diante da pequena expressividade desse campo aqui. Outro ponto interessante: também devemos compreender a economia como algo fluído e heterogêneo. A economia regional não está só ligada á economia nacional, mas á outras economias regionais. No nosso caso, a juta interliga duas economias completamente diferentes naquele momento: o extrativismo amazônico com a industrialização paulista da década de 1930 e 1940.

Em relação ao trabalhador em si, creio que devemos documentar dos mais diferentes meios possíveis o seu universo: seja no cotidiano, nas práticas culturais ou na sua afetividade. História hoje não é apenas processos, mas sensibilidades também, enfim, tudo o que compreende a experiência humana. Logo o relato oral é importantíssimo, mas existem outras fontes também: a fotografia, por exemplo. O pesquisador pode se utilizar de uma câmera para adentrar no mundo do juticultor e captar o seu drama social e suas alegrias.
Se focar somente no engajado é um erro que boa parte da historiografia operária reconhece hoje. Não existe dominação absoluta, já dizia Marx. A História hoje relativiza muito bem os conceitos de dominação e resistência, indo além da hegemonia e da rebeldia explícita, manifestada por atos políticos. O trabalhador não precisa ser politicamente engajado para ser um sujeito histórico, essa é a lição que nos fica.
O trabalhador é um sujeito histórico e também é heterogêneo. Mesmo dentro de uma categoria há níveis de hierarquização, alguns impostos pelos patrões outras não. A subjetividade também se faz presente. O que isso tudo significa? Generalizar, nem pensar.
O trabalhador amazônico vivente no coração da mata demanda um outro cuidado historiográfico: não desvincular o meio ambiente do processo de trabalho. Todo trabalho, voltamos á Marx, é uma tentativa de dominar a natureza e remodelá-la ás nossas vontades. Mas entre os povos indígenas o trabalho não possuía esse objetivo maior, até porque a sua cosmovisão entendia a natureza e o homem como parceiros. É de se esperar que essa mentalidade ainda sobreviva em muitos rincões da nossa Amazônia. Além disso, como não considerar a matéria-prima mor da economia amazonense nestes últimos séculos: a natureza amazônica. Em se tratando de um sistema extrativista, as exigências do meio e as mudanças climáticas são essenciais para se entender as condições de trabalho de certa pessoa.

Enfim, não são leis que devem ser seguidas á ferro e fogo. Estas são apenas sugestões de diretrizes para se entender uma História Social do Trabalho preocupada com o trabalhador do interior da Amazônia. Espero dar uma contribuição mais sólida á essa discussão historiográfica, mas no momento é o que tenho a dizer sobre esse tema.

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