domingo, 9 de outubro de 2011

A Operação Historiográfica IV

Continuamos a acompanhar as reflexões de Michel de Certeau sobre a historiografia, dessa vez sobre um fator um pouco traiçoeiro: a escrita. Traiçoeiro por quê? Porque transformar uma pesquisa em texto acarreta algumas mudanças.
O que temos que ter em vista é que o mundo do texto é diferente do mundo da pesquisa: a pesquisa nunca tem fim, ela se movimenta por conta das lacunas (das perguntas sem respostas), enquanto o texto tem um começo e um fim e não deixa espaços vazios. Os espaços vazios (as perguntas que movimentaram a pesquisa) são preenchidos (pelas respostas que foram encontradas durante a pesquisa).
O texto histórico em especial tem mais uma série de pequenas contradições: a cronologia, os conceitos, as citações. Falemos da cronologia: ela é mais do que necessária. Em História devemos sempre contextualizar o recorte temporal que nos propomos a pesquisar. Acontece que na pesquisa começamos pelo presente. Fazemos o movimento contrário, saímos do presente para ir ao passado.

Há ainda o problema dos dados. Certeau diz que devemos entender nossos dados a partir de duas categorias: acontecimento e fatos históricos. Acontecimento seria todo aquele dado êfemero, elementar, enquanto fato histórico seria todo dado com um sentido por trás de si, uma espécie de processo. Os dois são precisos no texto histórico. Por quê? O acontecimento é usado primeiramente como apoio didático (sabemos os limites de tempo e de espaço quando se trata de escrever um artigo, não há como falar tudo o que queremos falar) enquanto o fato histórico carrega em si todo um sentido essencial para o estudo.
Nem só de acontecimentos e fatos vivem os textos históricos. Existem vários outros conceitos que povoam esse mundo: Antiguidade, Cultura, Brasil, Ciências Humanas, etc. Os conceitos servem como códigos. O leitor precisa saber o que eles significam para poder entender aonde o autor está querendo chegar.

O historiador quer expor uma tese, para isso ele se vale de conceitos, eles são como degraus para atingirmos a polpa do texto, a tese do autor. O problema é que nem sempre esses conceitos são homogêneos ou exatos e muitas vezes alguns acabam se auto-excluindo ou gerando associações confusas. Por isso Certeau diz que o discurso histórico é a produção e errosão de unidades de compreensão.
Sim, o historiador francês utiliza muito o conceito "discurso", ao invés de "texto". Isso porque Certeau pertence a uma geração de intelectuais que passaram a contestar a neutralidade da ciência e a detectar subjetividades em todo tipo de produção científica. O texto era entendido como uma estrutura puramente inocente, afinal ela era apenas o meio de um cientista expor seu trabalho. Com esses pensadores, o texto passa a ser visto como um ambiente cheio de pequenos valores e opiniões pessoais camuflados. O texto vira discurso.

O historiador também coloca em seus estudos suas opiniões. O que temos é sua versão dos fatos e ela pode ser limitada pelos valores pessoais desse pesquisador. Afinal, ela já é limitada pelas características próprias da escrita (como mostramos acima). Mas há um espaço no discurso histórico para o Outro. É aí que entram as citações. Citar é mostrar as referências usadas, as fontes com as quais o autor dialogou. Claro que elas não podem se manifestar, elas chegam até nós graças ao pesquisador, ou seja, um pouco da autonomia delas é perdido, mas ainda assim, lá estão elas, dialogando com o autor.
O Outro do historiador pode ser suas fontes, seu leitor ou mesmo a morte. O texto é escrito sempre tentando reiterar a autoridade do historiador. Em outras palavras, ele também é escrito para atender um pouco da vaidade do pesquisador, de provar ao leitor que seu autor é alguém que sabe do assunto diferente de quem está lendo agora.

E a morte, o passado? Como se dá essa relação do historiador com o passado no discurso historiográfico? É uma relação ambígua: por um lado, ele o retira do esquecimento, por outro, o coloca em um lugar útil para o presente. A cronologia ajuda muito nisso: ela usa o passado para explicar o presente. O passado é ressuscitado brevemente apenas para descobrirmos porque estamos aqui. O passado é celebrado ou amaldiçoado, por ter nos legado alguma coisa boa ou algum problema, mas ele também é exorcizado, afinal estamos no presente e "o que passou, passou". As pessoas de que fala o historiador em seu estudo são ressuscitadas para compreender porque elas são importante para o presente.
Enfim, Certeau acredita que essa é uma das características básicas do texto historiográfico. Essa perante todas as outras das quais falamos aqui nas oportunidades anteriores. Só para relembrar: o texto historiográfico está limitado pela subjetividade do seu autor (seu lugar social, sua cultura) e por limitações próprias da ciência histórica (as técnicas para selecionar e interpretar fontes) e da escrita histórica (os meios usados para transformar a pesquisa em texto). Quando estivermos diante de um trabalho de um historiador, portanto, segundo Certeau, devemos levar em conta todos esses fatores.

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