sábado, 16 de julho de 2011

A espada numa mão e a harpa na outra

No livro Liberdade por um Fio, organizado pelos historiadores João José Reis e Flávio dos Santos Gomes, encontrei um artigo muito interessante de Laura de Mello Souza. Chama-se Violência e Práticas Culturais no Cotidiano de uma Expedição contra Quilombolas: Minas Gerais, 1769.
Nesse artigo, a autora de O Diabo e a Ilha de Vera Cruz fala do outro lado da escravidão: o lado dos feitores e dos apresadores de quilombolas. Essa análise só foi possível porque a historiadora achou o relato de uma dessas expedições, o que é muito difícil (a maioria era informal).

A expedição em questão foi patrocinada pelo governador de Minas como meio de arrendar as terras do norte do sertão de Minas. Essa região era temida, pois ali se concentravam alguns quilombos. Eles floresceram enquanto não houve interesse do governo em destruí-los. Agora havia.
O governador encarregou como o responsável por ela Inácio Pamplona. Uma espécie de desbravador dos sertões, Inácio era um empreendedor: conseguia, por meio de favores e "puxando o saco" de gente importante, cargos para os filhos e terras para si. Mas também era um canalha: o grosso da sua riqueza vinha de negócios ilicítos.

Laura de Mello e Souza
Pamplona criou uma expedição grande, que contava com um cronista e com um capelão, além de uma pequena banda (formada por mulatos e negros). Talvez fosse uma maneira de esbanjar a sua riqueza.
A expedição é recepcionada por onde passa com festas e cantorias. Em um lugar foi até recitado um poema em sua homenagem, glorificando o dono da expedição como um herói civilizador, civilizando a fronteira.
Alguns desistem, principalmente quando se chega perto dos quilombos. Os sons assustadores dos tambores, os gritos. Tudo deixa os homens atentos. A tensão continua na parte do dia. Eles nunca sabem o que os espera atrás de um morro.
Encontram um quilombo, mas ele está abandonado. Parece que eles fugiram deles. Mais adiante encontram uma pequena aldeia, essa povoada, e se apoderam dela. O primeiro passo é renomear tudo (impor o nome do conquistador) e decidir o que será arrendado e para quem.

Nessa expedição que bem poderia se tornar um filme, o que atraiu a atenção de Laura de Mello Souza foi um fato em particular: o ritual antes da expedição partir. Nas primeiras horas do dia eram reservadas para preces, organizadas pelo capelão e celebradas com músicas sacras pela banda. Em ocasiões especiais, quando eram recebidos em alguma vila ou fazenda, além da música do anfitreão existia também a música da banda da expedição. O poema recitado á Pamplona também chama a atenção, por parecer um poema arcade mais pobre.
Laura, que tem grande afinidade com a histórica cultural e das mentalidades, acredita que esse seja um exemplo do que o historiador italiano Carlo Ginzburg chama de circularidade de idéias, a presença de valores culturais de uma classe em outra. Por exemplo, a poesia erudita praticada no centro de Minas podia ser visualizada nos versos pobres de uma área de periferia da região. Algo que ficava até então nos saraus, preso nos casarões e sobrados, foi encontrado ali no sertão, numa festa popular ao ar livre.
A expedição de Pamplona parece usar essa cultura erudita como forma de dominação: a música é tocada para protegê-los do perigo eminente e para lembrar que eles são civilizados. A civilização está sendo levada ao sertão através da música.
Para concluir a historiadora lembra quão ambíguo pode ser o homem: estes bandeirantes, por exemplo, eram homens capazes de trucidar famílias, aldeias inteiras, mas faziam questão de apreciar música sacra, demonstrando uma sensibilidade que não condiz com seus atos violentos. Na história desse outro lado da escravidão, dos escravistas, encontramos em seus personagens essas duas dimensões: a irracionalidade da violência e a sensibilidade da cultura de então. Pelo menos nesse caso. Bárbaro e selvagem se completavam, dentro desses homens, a cada instante.

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